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Luijpen: Corpo e Mundo
quinta-feira 1º de junho de 2017
Evidentemente, para quem concebe o corpo humano como uma coisa entre coisas, como pertencendo ao grande grupo "dos" corpos, permanece de todo ininteligível o que acabamos de dizer. O mesmo se diga de quem quer exprimir-se mais subtilmente e pensa que o corpo humano, como humano, pode ser objeto das ciências. Enquanto, contudo, se fala do corpo humano à maneira como as ciências o fazem, é preciso que a gente se contente com a afirmação de ser totalmente incompreensível que o mundo tenha um sentido, aderente ao corpo como encarnação do sujeito, sentido já "sabido" e "afirmado" pelo corpo. Mas nesse caso, de novo, não se compreende o fato de que toda afirmação das ciências positivas sobre o corpo pressupõe um "saber" mais profundo e mais original, ou seja, o "saber" em que minhas mãos e meus pés se tornam "desocultos" para mim quando manejo instrumentos e percorro o mundo. [1] Numa concepção cientista das ciências, esquece-se e desconhece-se a origem da qual procedem.
Vale a pena, talvez, demorar-nos ainda um pouco no misterioso "saber", que é o próprio corpo humano. O corpo é humano por ser o corpo-de-um-sujeito. O sujeito está imerso no corpo e este participa do sujeito. Descrevemos acima o sujeito como cogito. Mas, se o corpo participa do sujeito, também ele deve ser chamado certo cogito-no-mundo. Isso evidentemente é o que acontece. Antes de eu conseguir enunciar qualquer juízo intelectual sobre o espaço, já me orientei no espaço: basta "ter olhos" e "ver". Se pretendo desenvolver [58] uma ciência sobre as cores, cumpre supor que meus olhos já as "conhecem" e "distinguem". Meu corpo "sabe" muito melhor que eu o que significam duro, mole, agudo, viscoso, frio, quente, pesado, oloroso, saboroso etc. [2] As pernas de um grande futebolista, ou antes, todo o seu corpo, "sabe" muito mais acerca do campo, da bola, do gol, dos companheiros, do espaço e do tempo que o próprio jogador. Enquanto pode confiar nesse misterioso "saber" é um excelente futebolista. Assim que começa a "refletir", está no momento de pensar em ser técnico. Meus pés "conhecem" muito melhor que eu pessoalmente as escadas que todos os dias subo e desço, e meu corpo "sabe" muito mais que eu a respeito da minha bicicleta. Aquele que puxa a reza numa grande comunidade só evitará atrapalhações se puder confiar em que seus lábios "conhecem" melhor as orações que ele mesmo. O corpo humano como sexualmente diferenciado significa um cogito e volo corporais do outro sexo, sobre os quais se funda toda iniciativa sexual da pessoa.
"Sob" o sujeito pessoal há, pois, em ação um sujeito pré-pessoal, [3] suposto por todo cogito pessoal e cuja pré-história é acolhida pelo cogito-no-mundo, pessoal. [4] Esse sujeito pré-pessoal, quase se diria "anônimo", é o corpo humano, [5] o qual já firmou um pacto com o mundo, antes de completar o sujeito pessoal a sua história. [6] Tal pacto não se torna supérfluo em nenhuma história pessoal. [7] Trata-se, entretanto, de um pacto firmado em semi-obscuridade, mas do qual nada mais se compreende quando substituído pelos "processos puramente corporais", de que falam as ciências. Eis a profunda verdade [59] contida na psicanálise, embora o próprio Freud não a tenha talvez notado claramente. [8]
O pacto entre o corpo e o mundo é também o "lugar" de muitíssimas perturbações psíquicas. [9] Estas não são causadas por processos unilaterais e determinantes oriundos de estímulos do mundo exterior", nem tampouco podem ser entendidas como exteriorizações de uma desorganização no "mundo interior". São antes uma ruptura entre o corpo e o mundo, quase sempre de caráter afetivo, ruptura que não pode ser restaurada por um esforço pessoal de ordem intelectual ou por uma decisão da vontade, mas há de sê-lo por uma nova abertura do corpo para o mundo e os outros, com o auxílio de meios psicoterápicos. [10]
Ver online : SER-NO-MUNDO
[1] "Reaprendemos a sentir nosso corpo, tornando a achar, sob o saber objetivo e distante do corpo, este outro saber que dele temos, porque está sempre conosco e porque somos corpo. Será preciso, da mesma forma, despertar a experiência do mundo, assim como este nos aparece enquanto estamos nele por nosso corpo, enquanto o percebemos com nosso corpo. Mas, retomando assim contacto com o corpo e com o mundo, é igualmente a nós que vamos reencontrar, porque, se a percepção se faz com o corpo próprio, este é um eu natural e como que o sujeito da percepção". Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 239.
[2] Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 275-276.
[3] "Há, pois, um outro sujeito por baixo de mim, para quem um mundo existe antes que eu seja aí e que nele marcava meu lugar. Esse espírito cativo ou natural é meu corpo, não o corpo momentâneo que é o instrumento de minhas escolhas pessoais, fixando-se sobre este ou aquele mundo, mas o sistema de ’funções’ anônimas que envolvem toda fixação particular num projeto geral". Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 294.
[4] Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 293.
[5] "A percepção está sempre no modo do ’a gente’. Não é um ato pessoal pela qual eu mesmo desse um sentido novo à minha vida". Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 277.
[6] "… urge que minha primeira percepção e minha primeira apreensão do mundo me apareça como a realização de um pacto mais antigo estabelecido entre X e o mundo geral". Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 293.
[7] Veja-se também: R. C. Kwant, De geslotenñeid van Merleau-Ponty’s wijsbegeerte, em: Tijdschrift woor Philosophie, XIX (1957), pp-217-272.
[8] "Quaisquer que possam ter sido as declarações de princípio de Freud, as pesquisas psicanalíticas chegam, de fato, a não explicar o homem pela infraestrutura sexual, mas a reencontrar na sexualidade as relações e as atitudes que antes eram tidas na conta de relações e atitudes de consciência, e a significação da psicanálise não é tanto tornar biológica a psicanálise, como descobrir em funções que se julgavam ’puramente corporais’ um movimento dialético, reintegrando a sexualidade no ser humano". Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 184.
[9] Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, pp. 180-199.
[10] Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 192.