Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de "vivência", podemos concluir do que precedeu que o conceito de vivência de Dilthey contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a vivência e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma consequência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo linguístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da vivência e a fome de vivência, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra "vivência" alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da vivência em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na "perception clara e distinta", que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de vivência de Dilthey . VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Havemos de ver que para o pensamento de Dilthey é de decisiva importância que não se denomine a "sensation" ou a percepção, como a última unidade do consciente, o que era natural para o kantianismo e mesmo para a teoria do conhecimento positivista do século XIX, até Ernst Mach, já que Dilthey chama a isso de "vivência". Ele delimita, assim, o ideal construtivo de uma estrutura do conhecimento a partir de átomos de percepção e contrapõe a ele uma versão mais aguda do conceito do dado. A unidade da vivência (e não elementos psíquicos, sob os quais ela pode ser analisada) compõe a unidade real do dado. Dessa maneira, apresenta-se na teoria do conhecimento das ciências do espírito um conceito da vida que limita o modelo mecânico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
No fundo, temos de agradecer, antes de mais nada, à crítica fenomenológica aplicada à psicologia e à teoria do conhecimento do século XIX a liberação dos conceitos que impediam uma adequada compreensão do ser estético. Foi isso que demonstrou que nos enganamos em todas as tentativas de se pensar o modo de ser do estético, a partir do ponto de vista da experiência da realidade e de entendê-lo como uma modificação da mesma. Todos esses conceitos, como imitação, aparência, desrealização, ilusão, magia, sonho pressupõem uma relação com um ser verdadeiro, do qual se diferencia o ser estético. No entanto, o retorno fenomenológico à experiência estética ensina que esta não pensa, de forma alguma, com base nessa relação, mas, antes, naquilo que ela experimenta, vê a genuína verdade. A isso corresponde o fato de que a experiência estética, por sua natureza, não pode ser enganada por uma experiência genuína da realidade. Ao contrário disso, o que caracteriza todas as modificações da experiência da realidade, citadas acima, é que a estas corresponde, por necessidade de sua natureza, uma experiência de engano. O que era aparente, se desvenda, o que foi desbalizado, torna-se real, o que era magia, perde sua magia, o que era ilusão, abre-se à vista, o que era sonho, disso nós despertamos. Se a estética fosse aparência, nesse sentido, sua validade poderia então — tal como os horrores do sonho — somente exercer seu domínio enquanto não se duvidasse da realidade do fenômeno, já que iria perder sua verdade ao despertarmos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Uma reflexão clara e metódica sobre isso não se encontra expressa obviamente em Ranke, nem no arguto metodólogo que foi Droysen, mas somente em Dilthey , que toma conscientemente a hermenêutica romântica e a amplia até fazer dela uma historiografia e até uma teoria do conhecimento das ciências do espírito. A análise lógica de Dilthey do conceito do nexo na história representa, segundo a questão em causa, a aplicação do princípio hermenêutico, segundo o qual as partes individuais de um texto só podem ser entendidas a partir do todo, e este somente a partir daquelas, sobre o mundo da história. Não somente as fontes chegam a nós como textos, mas também a realidade histórica é em si um texto que deve ser compreendido. Com essa transferência da hermenêutica para a historiografia, Dilthey torna-se o intérprete da escola histórica. Ele formula o que Ranke e Droysen, no fundo, pensavam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Por isso, ainda que se faça abstração da enorme influência que, a princípio, o empirismo inglês e a teoria do conhecimento das ciências da natureza exercem sobre Dilthey como se eles deformassem suas verdadeiras intenções, não é fácil de apreender essas intenções em uníssono. Devemos a Georg Misch um passo importante nessa direção. Mas como o propósito de Misch era confrontar a posição de Dilthey com a orientação filosófica da Fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger, é a partir dessas contraposições contemporâneas que se descreve a discrepância interna da orientação de Dilthey , de uma "filosofia da vida". E a mesma coisa pode-se dizer da meritória exposição de Dilthey , de O.F. Bollnow . VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
As ciências históricas conferem agora ao problema da teoria do conhecimento uma nova atualidade. Isso já se pode comprovar na história da palavra, na medida em que a expressão "teoria do conhecimento" aparece somente na época pós-hegeliana. Começou a ser usada quando a investigação empírica havia desacreditado o sistema hegeliano. O século XIX se converteu no século da teoria do conhecimento, pois somente com a dissolução da filosofia hegeliana ficou definitivamente destruída [225] a correspondência óbvia de logos e ser. Na medida em que Hegel mostrava a razão em tudo, inclusive na história, foi ele o último e mais universal representante da filosofia antiga do logos. Agora, frente à crítica da filosofia apriorista da história, viram-se jogados novamente para o campo de forças da crítica kantiana, cuja problemática se colocava agora também para o mundo histórico, uma vez rechaçada a pretensão de uma construção racional pura da história do mundo e uma vez que também o conhecimento histórico estava limitado à experiência. Se tanto a natureza, como a história não são pensadas como uma forma de manifestação do espírito, então se torna problema para o espírito humano o modo como deve conhecer a história, da mesma forma que o conhecimento da natureza se lhe tornara problemático em virtude das construções do método matemático. Assim, junto à resposta kantiana sobre o modo como é possível uma ciência pura da natureza, Dilthey tinha de procurar uma resposta à sua questão, qual seja: como a experiência histórica pode se converter em ciência? Em clara analogia com o questionamento kantiano, também irá perguntar pelas categorias do mundo histórico que possam sustentar a construção do mundo histórico nas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O problema epistemológico deve ser colocado aqui de uma forma fundamentalmente diferente. Já mostramos acima que Dilthey chegou a compreender isso, porém, não conseguiu superar os liames que o fixavam à teoria do conhecimento tradicional. Seu ponto de partida, a interiorização das "vivências", não pode construir a ponte para as realidades históricas, porque as grandes realidades históricas, sociedade e estado, são sempre, na verdade, determinantes prévios de toda "vivência". A auto-reflexão e a autobiografia — pontos de partida de Dilthey — não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história é reprivatizada. Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nem mesmo Nicolau de Cusa se refere com sua palavra natural à de uma linguagem originária, anterior à confusão das línguas. Uma tal linguagem de Adão, no sentido de uma doutrina do estado originário, lhe é completamente alheia. Ao contrário, seu ponto de partida é a imprecisão fundamental de todo saber humano. Nisso consiste, reconhecidamente, sua teoria do conhecimento, na qual se cruzam motivos platônicos e nominalistas: todo conhecimento é pura conjectura e opinião (coniectura, opinio). É essa doutrina que ele aplica à linguagem. Isso lhe permite reconhecer a diversidade das línguas nacionais e a aparente arbitrariedade de seu vocabulário, sem ter que cair necessariamente numa teoria convencionalista e num conceito instrumental da linguagem. Assim como o conhecimento humano é essencialmente "impreciso", isto é, admite um mais e um menos, o mesmo ocorre com a linguagem humana. O que, numa língua, possui sua expressão autêntica (própria vocabula) pode ter, noutra, uma expressão mais bárbara e distanciada (magis barbara et remotiora vocabula). E-xistem pois expressões mais autênticas ou menos autênticas (própria vocabula). Todas as denominações fácticas são, de um certo modo, arbitrárias, e, no entanto, têm uma relação necessária com a expressão natural (nomen naturale), que corresponde à própria coisa (forma). Toda expressão é congruente (congruum), mas nem todas são precisas (precisum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Ao sair das profundezas do hegelianismo epigonal e do materialismo acadêmico da metade do século, a filosofía passou a se afirmar sob o signo de Kant e de seu questionamento epistemológico pela fundamentação da ciência. Na Crítica da razão pura, Kant respondeu à questão pela possibilidade de uma ciência pura da natureza. Isso agora foi ultrapassado na medida em que se pergunta pela possibilidade da ciência da história. Ao lado da Crítica da razão pura, procurou-se colocar uma Crítica da razão histórica (para usar uma expressão de Wilhelm Dilthey ). O problema da história apresentou-se como o problema da ciência da história. Como esta adquire seu direito de ser uma teoria do conhecimento? Perguntar desta forma, porém, significou medir a [29] ciência da história nos moldes das ciências da natureza. O livro clássico da lógica neokantiana da história traz um título bem característico: "Os limites da formação conceitual das ciências da natureza". Nele, Heinrich Rickert procura demonstrar o que caracteriza o objeto da história, e porque na história em lugar de se procurar leis universais, como na ciência da natureza, reconhece-se o singular, o individual. O que é que transforma um mero fato numa realidade histórica? A resposta é: Seu significado, isto é, sua relação com o sistema dos valores culturais humanos. Neste questionamento, apesar de todas as restrições, o modelo de conhecimento das ciências da natureza continua sendo o determinante. O problema da história resume-se inteiramente no problema epistemológico sobre a possibilidade de uma ciência da história. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
Wilhelm Dilthey , professor de filosofia em Berlim durante muitos decênios, na Alemanha guilhermina, foi o famoso e reconhecido historiógrafo do espírito alemão que descobriu e pensou com muita clarividência o problema da historicidade, na época do predomínio da teoria do conhecimento. Seus contemporâneos e até muitos de seus alunos e amigos viram nele apenas o genial historiador, o herdeiro digno da grande tradição historiográfica alemã, que contribuiu com uma nova e esplêndida produção no âmbito da história da filosofia e da história do espírito. Seus escritos dispersaram-se por muitos lados, tendo sido publicados somente como artigos e tratados acadêmicos. Depois da Primeira Guerra Mundial, porém, apareceu sua obra completa em muitos volumes, que se multiplicaram em virtude dos importantes trabalhos póstumos. Desde então, Dilthey começou a ser visto como filósofo, como pensador do problema da historicidade. Ortega y Gasset foi tão longe nesse sentido, chegando a considerá-lo o maior pensador da segunda metade do século XIX. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
Para lembrar sumariamente qual o conteúdo que a reflexão filosófica sobre a história considerou no passado como essencial e que problemas assumiu como fundamentais, vou considerar a filosofia da história desenvolvida no sudoeste da Alemanha, ou seja, na escola neokantiana de Heidelberg (se é que se pode chamar de filosofia da história à teoria do conhecimento das ciências históricas) e a filosofia da história de Dilthey (se é que se pode chamar de filosofia da história à dissolução da metafísica em história). A reflexão epistemológica que o neokantismo de Heidelberg, em ultrapassando Kant , expandiu até a ciência historiográfica aborda a seguinte questão: O que distingue um objeto da investigação histórica e o modo de doação que constitui o objeto de investigação das ciências naturais. O que transforma um fato em fato histórico? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
O pano de fundo da "retórica" adquire um interesse temático especial quando se busca compreender o destino epistemológico e científico das Humaniora — até sua constituição metodológica na configuração das ciências do espírito do romantismo. O que interessa realmente nesse ponto não é tanto a função desempenhada pela teoria hermenêutica nesse contexto — que é mais ou menos secundária — , mas a antiga tradição medieval e humanista da retórica. Como parte do trivium, a retórica apresentava-se como uma obviedade quase inadvertida, por impregnar tudo. Mas isso significa que a mudança imperceptível do antigo, aos poucos, foi abrindo caminho para as ciências históricas. A historia da teoria hermenêutica, forjada na defesa contra os ataques dos contra-reformistas e tridentinos ao Luteranismo — desde Lutero até Melanchton e Flacius, passando pelo racionalismo incipiente e seu oponente, o pietismo, até o surgimento da visão histórica na era do romantismo — , não se desenvolveu sob a perspectiva da teoria do conhecimento e da teoria da ciência, mas sob a urgência das controvérsias teológicas iniciadas com a Reforma. Essa historia, na verdade, foi escrita por Wilhelm Dilthey e Joachim Wach, sob a problemática da pré-história das modernas ciências históricas do espirito. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher , administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel : a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto "cultura", convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher , demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da "facticidade" do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey , seguindo a Schleiermacher , introduziu a expressão "círculo hermenêutico" em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão "círculo hermenêutico" sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa "hermenêutica da facticidade" que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey . VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Temos assim, de um lado, a semiótica e a linguística, que criaram novos conhecimentos sobre o modo funcional e a estrutura dos sistemas de linguagem e dos sistemas de signos. E, de outro, a teoria do conhecimento, segundo a qual a linguagem fornece a todos o acesso ao mundo. Ambas as correntes atuam conjuntamente para fazer-nos ver desde uma nova ótica os pontos de partida de uma justificação filosófica de acesso científico ao mundo. Seu pressuposto era de que o sujeito domina a realidade empírica com uma autocerteza metodológica, graças aos recursos da construção racional matemática, expressando-a em forma de enunciados de juízo. Desse modo, realizou sua autêntica tarefa cognitiva, realização que culmina no simbolismo matemático, que serve para conferir uma validez geral à formulação da ciência natural. O mundo intermediário da linguagem fica idealmente em suspenso. Quando a linguagem se torna consciente como tal, então apresenta-se como a mediação primeira para o acesso ao mundo. Assim, se esclarece o caráter insuperável do esquema de mundo formulado na linguagem. O mito da autocerteza, que em sua forma apodíctica passou a ser a origem e a justificação de toda validez, e o ideal de fundamentação última, disputado pelo apriorismo e o empirismo, perdem sua credibilidade ante a prioridade e ineludibilidade do sistema da linguagem que articula toda consciência e todo saber. Nietzsche nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência. Freud nos fez conhecer as admiráveis descobertas científicas que levaram a sério esta dúvida. E, da [339] crítica radical de Heidegger ao conceito de consciência, aprendemos a ver os pressupostos conceituais que procedem da filosofia grega do logos e que na guinada moderna elevaram o conceito de sujeito ao primeiro plano. Tudo isso confere a primazia à "estrutura da linguagem" própria de nossa experiência de mundo. Frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do real, do dado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey , que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia "descritiva e analítica", purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Quem representou uma primeira introdução na arte de pensar conceitual para mim foi Richard Hönigswald, cuja dialética bem cinzelada defendia com elegância, embora não sem uma certa monotonia, a posição idealista transcendental do neokantismo contra todo psicologismo. Tomei caligráficamente e transcrevi mais tarde seu curso sobre Grundfragen der Erkenntnistheorie (Questões fundamentais sobre a teoria do conhecimento). Mais tarde remeti os dois cadernos ao Hönigswald-Archiv, criado por Hans Wagner. Era uma boa introdução à filosofia transcendental. Desse modo, cheguei a Marburgo em 1919 com um certo preparo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.