Já em 1934, na crítica acertada de Moritz Schlick ao dogma das proposições protocolares, via com clareza que as ciências da natureza incluem uma problemática hermenêutica. Todavia, quando as ideias desse livro se desenvolveram, nos anos trinta, anos em que as circunstâncias temporais trouxeram consigo um crescente isolamento, a concepção que se impôs formalmente foi o fisicalismo e a unity ofsáence. O linguistic turn da investigação anglo-saxônica ainda não havia despontado no horizonte. Só pude estudar a obra tardia de Wittgenstein depois de ter atravessado minha própria trajetória de pensamento. E também foi só bem mais tarde que comprovei na crítica de Popper ao positivismo motivos muito próximos à minha própria orientação. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Ora, a filosofia prática não é certamente, ela própria, esta racionalidade. Ela é filosofia, isto é, uma reflexão, e uma reflexão sobre aquilo que deve ser a configuração da vida humana. No mesmo sentido, a hermenêutica filosófica não é ela própria a arte do compreender, mas a sua teoria. Contudo, tanto uma quanto a outra forma de conscientização surge da praxis, e sem esta não é nada mais do que um mero processo vazio. Este é o sentido específico de saber e ciência, que se há de legitimar novamente a partir da problemática hermenêutica. Este foi o objetivo a que tenho dedicado meu trabalho, mesmo depois da conclusão de Verdade e método I. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Essas poucas regras gerais da hermenêutica, apresentadas preliminarmente nessas “hermenêuticas”, apoiadas na antiga retórica, por certo não justificam um interesse filosófico por esses escritos. Não obstante a profunda problemática filosófica, que viria a aflorar plenamente só em nosso século, já se reflete na história inicial da hermenêutica protestante. É certo que o princípio luterano da sacra scriptura sui ipsius interpres contém uma clara recusa da tradição dogmática da Igreja Romana. Mas, uma vez que essa frase não quer defender uma teoria ingênua da inspiração e sobretudo que a teologia de Wittenberg, seguindo a tradução da Bíblia do grande intelectual Lutero, lançava mão de um rico aparato filológico e exegético para justificar o próprio trabalho, a problemática de toda interpretação teve de assumir também o mote da sui ipsius interpres. O paradoxo desse princípio era por demais evidente e não houve como evitar que os defensores da tradição magisterial da Igreja católica, o Concílio de Trento e a literatura contra-reformista descobrissem a debilidade teórica do mesmo. Não havia como negar que também a exegese bíblica protestante não trabalhava sem diretrizes dogmáticas, em parte resumidas sistematicamente nos “artigos de fé” e, em parte, sugeridas na escolha dos hei praecipui. A crítica de Richard Simon a Flacius é para nós hoje um documento decisivo para conhecer a problemática hermenêutica da “compreensão prévia”, o que torna patente a existência de implicações ontológicas que só foram explicitadas pela filosofia de nosso século. Por fim e ainda no contexto da recusa à doutrina de inspiração verbal, também a hermenêutica teológica dos primórdios do Iluminismo busca estabelecer regras gerais para a compreensão. Especialmente a crítica histórica da Bíblia encontra então sua primeira legitimação. O tratado teológico-político de Espinosa foi o acontecimento principal. A sua crítica ao conceito de milagre, por exemplo, legitimava-se no postulado da razão de se reconhecer somente o que é racional, isto é, o que é possível. Não era só [97] crítica, continha também uma virada positiva, à medida que exigia uma explicação natural das passagens da Escritura contrárias à razão. Isso acarretou uma virada em direção ao que é histórico, ou seja, uma virada da presumida (e incompreensível) história dos milagres em direção à fé (compreensível) nos milagres. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A hermenêutica teológica característica da época inaugurada com a fundamentação geral de Schleiermacher acabou igualmente enredada em suas aporias dogmáticas. Já o próprio editor do curso de hermenêutica de Schleiermacher, Lucke, sublinhou de modo decisivo seu momento teológico. Toda a dogmática teológica do século XIX retornou à problemática da hermenêutica dos primórdios do protestantismo, dada com a regula fidei. O postulado histórico da teologia liberal, que criticava toda dogmática, enfrentou-se com ela, resultando numa crescente indiferença com relação à tarefa específica da teologia. Por isso, na época da teologia liberal, não houve fundamentalmente nenhuma problemática hermenêutica especificamente teológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Também a retórica testemunha verdadeiramente a estrutura universal da linguagem universal. Em outro sentido, essa estrutura constitui a base essencial para o elemento hermenêutico, representando [234] para a arte da interpretação da linguagem algo assim como o positivo para o negativo. Os nexos relacionais entre retórica e hermenêutica, que mencionei em meu livro, podem ser ampliados em muitos aspectos como mostram as excelentes contribuições e correções feitas por Klaus Dockhorn no Gottingischen Gelehrten-Anzeigen. Mas a estrutura de linguagem está tão profundamente inserida na sociabilidade do ser humano que mesmo o teórico das ciências sociais deve ocupar-se com o direito e os limites da problemática hermenêutica. Assim o próprio Habermas confrontou recentemente a hermenêutica filosófica com a lógica das ciências sociais, avaliando-a a partir dos interesses cognitivos desta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
É próprio da universalidade do princípio hermenêutico precisar ser observado também pela lógica das ciências sociais. Assim, Habermas utilizou-se das análises da “consciência da história dos efeitos” e do modelo da “tradução”, presentes em Verdade e método I, reconhecendo-lhe uma função positiva para a superação da rigidez positivista da lógica das ciências sociais e para sua fundamentação nos processos da linguagem, a qual historicamente continua irrefletida. Essa referência à hermenêutica portanto está expressamente a serviço dos pressupostos da metodologia das ciências sociais. Essa proposta distancia-se certamente da base tradicional da problemática hermenêutica formada pelas ciências do espírito estético-românticas, distância tomada por uma decisão prévia de grande alcance. É verdade que o estranhamento metodológico que constitui a essência da ciência moderna é usado também nas “humanities”, e Verdade e método I jamais considerou como excludente a contraposição implícita em seu título. Mas o ponto de partida da análise foram as ciências do espírito, porque convergem com experiências onde não estão em questão método e ciência, mas experiências que se encontram fora da ciência, como a experiência da arte e a experiência da cultura cunhada pela sua tradição histórica. Em todas elas a experiência hermenêutica atua de modo igual, e como tal ela própria não se converte em objeto de estranhamento metodológico, mas precede-o na medida em que abre as perguntas à ciência, possibilitando assim o emprego de seus [239] métodos. Caso se reconheça a reflexão hermenêutica como indispensável (como ficou demonstrado em Verdade e método para o caso das ciências do espírito), as ciências sociais modernas, segundo Habermas, reivindicam, por intermédio de um “estranhamento controlado”, elevar a compreensão “de um exercício pré-científico para o nível de um procedimento reflexivo”, por assim dizer pelo “desenvolvimento metodológico da inteligência” (172-174). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Vejamos, pois, como se impõe a problemática hermenêutica no âmbito da teoria das ciências sociais e quais as perspectivas opera desde lá. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Mas a questão continua de pé. Se quiser afirmar-se tanto frente à universalidade da retórica quanto frente à atualidade da crítica da ideologia, a problemática hermenêutica deve fundamentar sua própria universalidade, e isso frente à pretensão da ciência moderna de assumir em si a reflexão hermenêutica e colocá-la a serviço da ciência (pela “formação metodológica da inteligência”). O que só será possível se ela não ficar presa à imanência inapreensível da reflexão transcendental, mas se puder dizer em que essa reflexão contribui para a ciência moderna — e não só dentro dela. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
“O mais importante é a intenção primordial e o ponto de vista central, ou, como dizemos nós, a finalidade do discurso”. Melanchton introduz, assim, um conceito que é determinante na hermenêutica tardia de Flacius e que ele toma emprestado da introdução metodológica à ética aristotélica. É claro que, ao afirmar que os gregos costumavam interrogar desse modo ao iniciar seus livros (sid), Melanchton não se refere ao discurso em sentido estrito. O conhecimento da intenção básica de um texto é essencial, segundo ele, para uma compreensão adequada. Esse ponto é essencial também para a principal teoria exposta por Melanchton, que é sem dúvida sua doutrina sobre os loci comunes. Introduz essa doutrina como parte da inventio, seguindo assim a antiga tradição da tópica. Ele está, porém, plenamente consciente da problemática hermenêutica que nela se aloja. Ele acentua que esses capítulos mais importantes, “que contêm as fontes e o resumo de toda a arte” , não é apenas um grande cabedal de opiniões, cujo conhecimento seria muito proveitoso para o orador e o mestre — porque na verdade uma boa compilação desses loci constituiria a totalidade do saber. Implicitamente, isso significa uma crítica hermenêutica à superficialidade de uma tópica retórica. Ao contrário, busca a justificação de seu próprio proceder. Isso porque Melanchton foi o primeiro a fundamentar a dogmática do protestantismo antigo numa escolha e compilação significativas de passagens decisivas da Sagrada Escritura; os lociprecipui editados em 1519. A crítica católica tardia ao princípio bíblico protestante não é totalmente justa quando denuncia uma inconsequência no princípio bíblico dos formadores à luz da apresentação desses enunciados dogmáticos. De certo, toda seleção de textos inclui uma interpretação, apresentando assim implicações dogmáticas, mas o postulado hermenêutico da teologia protestante primitiva consiste justamente em legitimar suas abstrações dogmáticas através da própria Escritura e a intenção desta. Uma outra questão é saber até onde os teólogos reformadores seguiram realmente o princípio da Escritura. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Há uma pergunta que me inquieta desde vários decênios: O que pode significar hoje a opção a favor dos anciens? Essa opção está comprometida em todo caso com a hipoteca de que seu defensor não vê e pensa simplesmente com os olhos dos anciens, mas que como historiador atual vê essa visão e pensa esse pensamento. Assim o próprio Jaeger vê-se imerso numa problemática hermenêutica que o diferencia dos anciens pelo menos pelo fato de repudiar com feroz sarcasmo a hermenêutica contemporânea. Não se pode negar seriamente que uma investigação, como a que ele apresenta, [300] lança mão dos pressupostos da era pós-romântica, quer dizer, da consciência histórica. Isso significa que ele, como qualquer outro, pertence aos “modernos”. Isso não significa de modo nenhum que com esse reconhecimento se projetem no passado as teorias específicas da “hermenêutica recente”. Tampouco cabe negar aqui que a distância histórica que separa o cristianismo do tempo de Agostinho da cultura nômade da era dos patriarcas tenha constituído um verdadeiro problema hermenêutico para o próprio Agostinho. A assimilação religiosa dos escritos veterotestamentários pelo cristianismo não esteve livre de problemas. Nesse sentido, o De doctrina Christiana possui uma dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann”, adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma “pré-compreensão” inerente à [430] existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst Fuchs, com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um “acontecimento de linguagem” próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Há, porém, um último aspecto que pode servir inclusive para as sciences “verdadeiras”. Muito embora tenhamos que fazer algumas distinções ali. Quando na microfísica moderna não se pode eliminar o observador dos resultados de suas medições e assim ele próprio deve aparecer nos enunciados da mesma, isto tem um sentido muito preciso e que pode ser formulado em expressões matemáticas. Na investigação moderna sobre o comportamento, quando o investigador descobre estruturas que determinam também o seu próprio comportamento a partir da determinação do que herdou historicamente de seus predecessores, isso fará com que [451] aprenda algo também sobre si mesmo. O que só acontece porque está vendo a si mesmo de modo diferente do que via por sua “praxis” e sua autoconsciência, e na medida em que isso não o subjuga a um pathos de glorificação nem de humilhação do homem. Ao contrário, quando, em todos os seus conhecimentos e avaliações, o historiador mantém presente seu próprio ponto de vista, isso não representa uma objeção contra sua cientificidade. Com isso ainda não se decidiu se o historiador, em virtude dessa vinculação com o seu ponto de vista, se enganou ou compreendeu e avaliou mal a tradição, ou se conseguiu trazer à luz o que até então não havia sido observado, justamente porque seu ponto de vista lhe permitiu observar algo análogo na experiência imediata e histórico-tempo-ral. Encontramo-nos aqui em meio a uma problemática hermenêutica. Mas isso ainda não significa que não são meios metodológicos da ciência que servem de referência a alguém para decidir sobre o que é falso ou verdadeiro, para isolar o erro e alcançar o conhecimento. Nas ciências “morais” isso não faz nenhuma diferença em relação às sciences “verdadeiras”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Mas isso não expressava toda a dimensão do problema. Também as ciências naturais comportam de certo modo uma problemática hermenêutica. Seu caminho tampouco é o do progresso metodológico, como demonstrou posteriormente Thomas Kuhn. Este pensamento de Kuhn coincidia na verdade com as ideias sugeridas sobretudo por Heidegger em Die Zeit des Weltbildes (A época da imagem de mundo) e em sua interpretação da física de Aristóteles. O “paradigma” é decisivo para o emprego e a interpretação da investigação metodológica e não é evidentemente o simples resultado da mesma. O próprio Galileu já havia expressado essa ideia com o mote mente concipiom. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.