Gadamer (VM): princípio hermenêutico

No entanto, Schleiermacher declara que esses fios condutores dogmáticos não podem reivindicar nenhuma validez prévia, e por isso, são apenas restrições relativas do círculo. Em princípio, compreender é sempre um mover-se nesse círculo, e por isso é essencial o constante retorno do todo às partes e vice-versa. A isso se acrescenta que esse círculo está sempre se ampliando, já que o conceito do todo é relativo, e a integração em contextos cada vez maiores afeta sempre também a compreensão do individual. Schleiermacher aplica à hermenêutica esse seu procedimento tão habitual de uma descrição dialética polar, e com isso presta conta da provisoriedade interna e da infinidade da compreensão, na medida em que o desenvolve a partir do velho princípio hermenêutico do todo e das partes. Não obstante, a relativização especulativa que o caracteriza representa mais um esquema descritivo de ordenação para o processo do compreender, do que se ela fosse intencionada fundamentalmente. Isso mostra-se no fato de que, ao introduzir a transposição adivinhatória, ele admite algo como uma compreensão completa: “Até que, finalmente, todo particular, de repente, recebe sua luz plena”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Uma reflexão clara e metódica sobre isso não se encontra expressa obviamente em Ranke, nem no arguto metodólogo que foi Droysen, mas somente em Dilthey, que toma conscientemente a hermenêutica romântica e a amplia até fazer dela uma historiografia e até uma teoria do conhecimento das ciências do espírito. A análise lógica de Dilthey do conceito do nexo na história representa, segundo a questão em causa, a aplicação do princípio hermenêutico, segundo o qual as partes individuais de um texto só podem ser entendidas a partir do todo, e este somente a partir daquelas, sobre o mundo da história. Não somente as fontes chegam a nós como textos, mas também a realidade histórica é em si um texto que deve ser compreendido. Com essa transferência da hermenêutica para a historiografia, Dilthey torna-se o intérprete da escola histórica. Ele formula o que Ranke e Droysen, no fundo, pensavam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Aqui também se percebe, como em Droysen, que o modo de proceder da hermenêutica romântica está subentendida, e que ele experimenta agora uma expansão universal. O nexo estrutural da vida, tal qual o nexo de um texto, está determinado [228] por uma certa relação entre o todo e as partes. Cada parte expressa algo do todo da vida, e tem, portanto, uma significação para o todo, do mesmo modo que seu próprio significado está determinado a partir deste todo. É o velho princípio hermenêutico da interpretação dos textos que vale também para o nexo da vida, porque nele se pressupõe de um modo análogo a unidade de um significado que se expressa em todas as suas partes. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

2.1. A elevação da historicidade da compreensão a um princípio hermenêutico VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso somente seria legítimo a partir dos pressupostos de Hegel, na medida em que a filosofía da historia está consagrada aos planos do espirito universal e pode, a partir deste saber consagrado, designar certos indivíduos como indivíduos universal-históricos, nos quais se daria uma real coincidência entre suas ideias particulares e o sentido histórico universal dos acontecimentos. Não obstante, desses casos caracterizados pela coincidência do subjetivo e do objetivo na historia, não se pode extrair nenhum princípio hermenêutico para o conhecimento desta. Frente à tradição histórica, a doutrina de Hegel só possui, evidentemente, uma verdade particular. A infinita trama de motivações que perfaz a história, somente raras vezes e em segmentos muito breves, alcança a claridade de um padrão de planejamento em um indivíduo único. O que Hegel descreve como um caso excepcional, repousa sobre um fundo geral do mal-entendido existente entre a ideia subjetiva de um indivíduo e o sentido do decurso total da história. Em geral experimentamos o curso das coisas como algo que nos obriga continuamente a alterar nossos planos e expectativas. Aquele que procura manter rigidamente seus planos é justamente quem acaba sentindo a impotência de sua razão. São muito raros os momentos em que tudo anda “por si mesmo”, em que os acontecimentos saem espontaneamente ao encontro dos [378] nossos planos e desejos. Então sim é que podemos dizer que tudo está transcorrendo conforme o plano. Mas aplicar esta experiência ao todo da história implica realizar uma tremenda extrapolação que contradiz estritamente a nossa experiência da história. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O vocabulário conceitual da hermenêutica do antigo [96] protestantismo nasceu da antiga retórica. Neste sentido, marcou época a aplicação que Melanchthon faz dos conceitos retóricos fundamentais ao correto estudo dos livros (bonis auctoribus legendis), que tinha como paradigma a retórica da Antiguidade tardia e sua literatura (Dionisio de Halicarnaso). A exigência de se compreender o individual a partir do todo retoma a relação de caput e membra, que a retórica antiga tinha como paradigma. Em Flacius, esse princípio hermenêutico alcança sua aplicação mais conflituosa, uma vez que a unidade dogmática do cânon, de que ele lança mão contra a interpretação individual dos escritos neotestamentários, restringia em muito o princípio luterano do primado da Escritura. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Esse é o interesse dogmático positivo que cunha a conceituação de Bultmann e não o interesse por um Iluminismo progressista. Seu conceito de mito é um conceito puramente descritivo. Traz consigo algo de histórico e casual e, por mais fundamental que seja o problema teológico alojado no conceito de uma desmitologização do Novo Testamento, trata-se de uma questão de exegese prática, que não atinge em hipótese alguma o princípio hermenêutico de toda exegese. Seu sentido hermenêutico restringe-se sobretudo a constatar que não se pode fixar dogmaticamente nenhum conceito determinado de mito, pelo qual se pudesse determinar de uma vez por todas o que o Iluminismo científico poderia e o que não poderia expurgar da Sagrada Escritura como mero mito para o homem moderno. Não é a partir da ciência moderna, mas positivamente a partir da aceitação do querigma, a partir da reivindicação interna da fé, que se deve determinar o que seja um mero mito. Um outro exemplo dessa “desmitologização” é precisamente a grande liberdade que possuía e promovia o poeta grego diante da tradição mítica de seu povo. Também essa liberdade não é “Iluminismo”. O poeta exerce sua força espiritual e seu direito crítico baseado num fundamento religioso. Basta lembrar-nos de Píndaro ou de Ésquilo. Isso explica a necessidade de se refletir sobre a relação entre fé e compreensão, à luz da liberdade do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

É próprio da universalidade do princípio hermenêutico precisar ser observado também pela lógica das ciências sociais. Assim, Habermas utilizou-se das análises da “consciência da história dos efeitos” e do modelo da “tradução”, presentes em Verdade e método I, reconhecendo-lhe uma função positiva para a superação da rigidez positivista da lógica das ciências sociais e para sua fundamentação nos processos da linguagem, a qual historicamente continua irrefletida. Essa referência à hermenêutica portanto está expressamente a serviço dos pressupostos da metodologia das ciências sociais. Essa proposta distancia-se certamente da base tradicional da problemática hermenêutica formada pelas ciências do espírito estético-românticas, distância tomada por uma decisão prévia de grande alcance. É verdade que o estranhamento metodológico que constitui a essência da ciência moderna é usado também nas “humanities”, e Verdade e método I jamais considerou como excludente a contraposição implícita em seu título. Mas o ponto de partida da análise foram as ciências do espírito, porque convergem com experiências onde não estão em questão método e ciência, mas experiências que se encontram fora da ciência, como a experiência da arte e a experiência da cultura cunhada pela sua tradição histórica. Em todas elas a experiência hermenêutica atua de modo igual, e como tal ela própria não se converte em objeto de estranhamento metodológico, mas precede-o na medida em que abre as perguntas à ciência, possibilitando assim o emprego de seus [239] métodos. Caso se reconheça a reflexão hermenêutica como indispensável (como ficou demonstrado em Verdade e método para o caso das ciências do espírito), as ciências sociais modernas, segundo Habermas, reivindicam, por intermédio de um “estranhamento controlado”, elevar a compreensão “de um exercício pré-científico para o nível de um procedimento reflexivo”, por assim dizer pelo “desenvolvimento metodológico da inteligência” (172-174). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas o real alcance desse problema só foi apreendido realmente pela hermenêutica pietista desenvolvida por Rambach e seus sucessores, seguindo as pegadas de August Hermann Francke. Só aqui o velho capítulo da retórica clássica, despertar a afeição, é reconhecido como um princípio hermenêutico. Em virtude da natureza própria do espírito, todo discurso implica sempre o afeto, e a experiência diz que “as mesmas palavras pronunciadas com afeto e gestos diferentes costumam produzir sentidos diversos”. O reconhecimento da importância da modulação afetiva do discurso (especialmente na pregação) constitui a raiz da interpretação “psicológica” proposta por Schleiermacher e, no fundo, de toda a teoria da empatia; nesse sentido, escreve Rambach: “O intérprete precisa revestir-se do espírito do autor, até converter-se lentamente como em seu segundo eu”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

O verso foi objeto de um debate entre Emil Staiger e Martin Heidegger. Interessa-nos aqui unicamente como um caso exemplar. Nesse verso aparece um conjunto verbal de aparente trivialidade: scheintes. Pode-se entender como “parecer”, dokei, videtur, ilsemble, it seems, pare etc. Essa interpretação prosaica da expressão faz sentido e por isso encontrou seu defensor. Mas pode-se ver muito bem que tal interpretação não cumpre a lei do verso. Pode-se também demonstrar que scheint es significa aqui “reluz”, splendet Basta aplicar um princípio hermenêutico. Em caso de conflito, decide o contexto mais amplo. A dupla possibilidade de compreensão é sempre um conflito. Mas é evidente que o belo se aplica aqui a uma lâmpada. Tal é o enunciado global do poema que é preciso compreender. Uma lâmpada que não ilumina porque repousa dependurada, velha e fora de moda, num salão de luxo (“quem tem olhos para ela?”), adquire aqui seu próprio brilho porque é uma obra de arte. É indubitável que o brilho se refere [360] aqui à lâmpada que ilumina, ainda que ninguém a utilize. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Fuchs segue os passos de Bultmann argumentando que, frente à fé, o princípio hermenêutico que serve para a compreensão do Novo Testamento deve ser neutro, uma vez que sua única pressuposição é a pergunta por nós mesmos. Mas essa pergunta se revela como a pergunta que o próprio Deus dirige a nós. Uma gramática da fé deve abordar o modo como esse prestar ouvir procede na realidade, esse ouvir que vai ao encontro do apelo da palavra de Deus. “Saber o que acontece nesse encontro ainda não significa que se possa dizer, sem mais, o que se sabe” (86). Assim, em última instância, a tarefa não é apenas ouvir a palavra, mas também encontrar a palavra que diz a resposta. Trata-se da linguagem da fé. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O artigo intitulado Übersetzung und Verkundigung (Tradução e anúncio) esclarece melhor em que sentido essa doutrina hermenêutica busca ultrapassar a interpretação existencial proposta por Bultmann. Sua orientação básica é o princípio hermenêutico da tradução. Esse princípio é indiscutível: “A tradução deve criar o mesmo espaço que queria criar um texto quando o espírito se pronunciou nele” (409). Mas, frente ao texto — e esta é uma consequência audaz e inevitável — , a palavra tem a primazia, pois é acontecimento da linguagem. Isso deve deixar claro que a relação entre palavra e pensamento não é no sentido de que a palavra expressa só alcança o pensamento a posteriori. A palavra é como um raio certeiro. A seguinte afirmação de Ebeling vem de encontro a isso: “Na realização da pregação, o problema hermenêutico experimenta sua densidade mais extrema”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

E o que aparece em outra passagem, quando ele defende o ideal de uma “interpretação objetiva” de um texto, com a ideia de que o autor compreendeu sua doutrina somente de um único modo, “supondo-se que ele não estava confuso” (67). Deveríamos perguntar ainda se essa oposição entre claro e confuso é assim tão evidente como supõe Strauss. Objetivamente falando, essa ideia não faz com que ele comungue com o posicionamento do Iluminismo histórico perfeito e acabado, passando ao largo do verdadeiro problema hermenêutico? Ele parece julgar possível compreender o que não se compreende pessoalmente, mas o que um outro compreende, e somente compreender tal como este compreendeu a si mesmo. E parece pensar ainda que quem diz alguma coisa, com isso compreendeu “a si mesmo” necessária e adequadamente. Creio que ambas as coisas não podem ser certas. Para podermos extrair um sentido válido desse princípio hermenêutico que reza que se deve compreender um autor “melhor” do que ele próprio se compreendeu, devemos livrá-lo da pressuposição de um Iluminismo perfeito e acabado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann”, adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma “pré-compreensão” inerente à [430] existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst Fuchs, com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um “acontecimento de linguagem” próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.