Kant discute aqui a diferença entre o juízo de gosto “puro” e “intelectualizado”, que corresponde ao contraste da beleza “livre” e “dependente” (com relação a um conceito). Para a compreensão da arte, essa é uma doutrina altamente fatal, enquanto surgem, como a genuína beleza do juízo de gosto puro, a beleza natural livre e — no terreno da arte — o ornamento, porque são belos “para si” (“für sich”). Por toda parte onde o conceito é “acionado junto com” — e isso ocorre não somente no campo da poesia, mas também em toda a arte representativa — a situação parece a mesma dos exemplos apresentados por Kant para a beleza “dependente”. Os exemplos de Kant — homem, animal, prédios — designam as coisas da natureza, tal qual ocorrem no mundo dominado pelos fins humanos, ou coisas que foram produzidas para fins humanos. Em todos esses casos, a determinação do fim significa uma limitação para o prazer estético. Assim, segundo Kant, a tatuagem, ou seja, a ornamentação do corpo humano causa repugnância, embora “de imediato” pudesse agradar. Certamente que Kant não fala aqui da arte como tal (não simplesmente, da “bela representação de uma coisa”), mas também não, da mesma forma, das belas coisas (da natureza, ou da arte da construção). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A diferença entre belezas naturais e belezas artísticas, como mais tarde ele mesmo discute (parágrafo 48), não tem aqui significado algum. Mas quando, entre os exemplos de beleza livre, cita, além das flores, também os tapetes de arabesco e a música (“sem tema” ou mesmo “sem texto”), então vemos indiretamente circunscrito tudo o que representa um “objeto sob um determinado conceito”, e que por isso passa a ser uma beleza condicional e não-livre: todo o reino da poesia, das artes pictoriais e da arte da construção, da mesma forma que todas as coisas da natureza, que não vemos como tais somente por sua beleza, como as flores ornamentais. Em todos esses casos o juízo de gosto encontra-se turvado e restrito. O reconhecimento da arte parece impossível a partir da fundamentação da estética no “juízo de gosto puro” — a não ser que o padrão do gosto seja rebaixado a uma mera pré-condição. Pode-se compreender a introdução do conceito de gênio nos trechos mais tardios da “Crítica do juízo”, nesse sentido. Mas isso viria a significar um deslocamento posterior. De início nada se fala disso. Aqui (no parágrafo 16), ao que parece, o ponto de vista do gosto torna-se tampouco uma mera pré-condição, que reivindica, antes, a plenitude da essência do juízo estético e a sua proteção contra a limitação feita por meio dos padrões “intelectuais”. E quando também Kant percebe que pode ser o mesmo objeto que está sendo julgado sob os dois pontos de vista diversos da beleza livre e dependente, o juiz ideal do gosto parece ser aquele que julga segundo “o que ele tem diante dos sentidos” e não segundo “o que tem diante do pensamento”. A verdadeira beleza seria a das flores e dos ornamentos que, no nosso mundo dominado pelos fins, se apresentam de antemão e a partir de si como belezas e que por isso não se torna necessário que, de início, haja uma abstração consciente de um conceito ou finalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aos poucos nos tornamos conscientes de que essa era no todo da história da arte e da poesia é apenas um episódio. As extraordinárias pesquisas sobre a estética literária da Idade Média, sintetizadas por Ernest Robert Curtius, dão-nos uma boa idéia disso. Quando se começa a lançar um olhar para além dos limites da arte vivencial e se deixam valer outros padrões, abrem-se novos e amplos espaços no âmbito da arte ocidental, que, desde a antigüidade até a era do Barroco, foi plenamente dominada por padrões de valor totalmente diversos dos da experimentação, e, igualmente, o olhar se torna livre para mundos da arte totalmente estranhos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Certamente, tudo isso poderá transformar-se numa “vivência” para nós. Essa autocompreensão estética está sempre disponível. Mas a gente não pode deixar-se iludir pelo fato de que a própria obra de arte que, desse modo, torna-se para nós uma vivência, não foi destinada para uma tal concepção. Nossos conceitos de valor sobre o gênio e a vivencialidade não são, aqui, adequados. Podemos nos lembrar também de padrões totalmente diversos e, por exemplo, dizer: Não é a autenticidade da vivência ou a intensidade de sua expressão, mas a disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer, que faz com que a obra de arte seja uma obra de arte. Essa contradição quanto aos padrões vale para todos os gêneros de arte, mas possui nas artes lingüísticas sua especial legitimação. Ainda no século XVIII, de uma forma surpreendente para a consciência moderna, a poesia e a retórica encontravam-se lado a lado. Kant vê em ambas “um jogo livre da imaginação e um negócio do entendimento”. Tanto a poesia como a retórica são, para ele, belas artes, e valem como “libres”, na medida em que a harmonia das duas capacidades do conhecimento, a sensibilidade e o entendimento, é alcançada em ambas de maneira não deliberada. O padrão da vivencialidade e da inspiração genial teria de contrapor a esta tradição um conceito muito diferente de arte “livre”, a que somente responderia a poesia, na medida em que nela se tivesse suprimido todo o ocasional, e da qual a retórica deveria ser excluída inteiramente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mesmo pesquisadores interessados na história das palavras, muitas vezes não prestam suficientemente atenção ao fato de que a contradição artística entre alegoria e símbolo, que nos parece auto-evidente, é apenas o resultado do desenvolvimento filosófico dos últimos dois séculos e de cujo início se deve esperar tão pouco que, antes, tem-se de fazer a pergunta pelo modo como, afinal, se chegou à necessidade de uma tal diferenciação e antagonismo. Não se pode deixar passar despercebido que Winkelmann, cuja influência sobre a estética e a filosofia da história foi determinante na sua época, utilizou ambos os conceitos como sinônimos, o qual vale para o todo da literatura estética do século XVIII. Ambos os significados da palavra têm realmente, desde sua origem, algo comum: Em ambas as palavras encontra-se algo caracterizado, que não está na sua aparência visual, no seu aspecto, ou no som da palavra, mas num significado situado para além disso. Que algo esteja, dessa maneira, representando algo diferente é o que faz a comunhão de ambas. Esse relacionamento significativo, através do qual o que não tem sentido ganha sentido, encontra-se tanto no campo da poesia e das artes plásticas, como também no âmbito do religioso-sacramental. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Seja como for, Souger mantém a expressão do alegórico num sentido ainda bastante elevado no conjunto da arte cristã e Friedrich Schlegel vai ainda mais adiante dizendo: Toda beleza é alegoria (diálogo sobre a poesia). Também o uso simbólico que Hegel faz do conceito (tal como Creuzer) mantém-se ainda bastante próximo desse conceito do alegórico. Mas esse uso lingüístico dos filósofos, que se encontra na base das idéias românticas sobre a relação do indizível para com a linguagem e do descobrimento da poesia alegórica do Oriente, já não pôde mais ser mantido pela formação humanística do século XIX. Havia quem se reportasse ao classicismo de Weimar, e, de fato, a desvalorização da alegoria tornou-se a preocupação dominante do classicismo alemão, que se entregou muito necessariamente à libertação da arte dos grilhões do racionalismo e à caracterização do conceito do gênio. A alegoria não é, certamente, apenas questão do gênio. Repousa sobre sólidas tradições e sempre teve um significado determinado e declarado, que não se opõe, de forma alguma, à compreensão intelectiva através do conceito. Ao contrário, o conceito e a questão da alegoria estão solidamente vinculados com o dogmatismo: com a racionalização do místico (tal qual no Aufklärung grego) ou com a interpretação cristã da Bíblia Sagrada, no sentido da unidade de uma doutrina (tal qual na Patrística) e, finalmente, com a reconciliação da tradição cristã com a formação da antigüidade, que forma a base da arte e da poesia dos povos mais recentes e cuja derradeira forma do mundo foi o Barroco. Com a ruptura dessa tradição, rompeu-se também com a alegoria. Isso porque no momento em que a essência da arte libertou-se de toda vinculação dogmática, podendo ser definida através da produção inconsciente do gênio, a alegoria teria de, esteticamente, tornar-se questionável. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Assim, vemos surgir dos esforços artístico-teoréticos de Goethe uma forte influência no sentido de rotular “o simbólico como conceito artístico positivo e o alegórico, como conceito artístico negativo. Especialmente a sua própria poesia atuou nessa direção, na medida em que neles via-se a confissão de vida, ou seja, a figuração poética da vivência: O padrão da vivencialidade (Erlebtheit), que ele próprio estabeleceu, tornou-se um conceito-de-valor-guia, no século XIX. O que, na obra de Goethe, não se encaixava nesse padrão — como as poesias da velhice de Goethe — , foi, de acordo com o espírito realista daquele século, deixado de lado como sendo alegóricamente “sobrecarregado”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Desse panorama sobre a história da palavra, do símbolo e da alegoria tiramos uma conseqüência objetiva. A sólida situação prévia (Vorfindlichkeit) da contraposição do conceito: o símbolo que cresce “organicamente” — a alegoria fria e adequada à compreensão perde seu caráter obrigatório, quando se reconhece sua vinculação com a estética do gênio e com a estética da vivência. Se já a redescoberta da arte do Barroco (um fato certamente constatável no mercado de antigüidades) e especialmente nas últimas décadas, a redescoberta da poesia barroca, bem como a mais recente pesquisa artístico-científica levaram a uma salvação honrosa da alegoria; assim, indicar-se-á agora também o fundamento teorético desse fato. O fundamento da estética do século XIX foi a liberdade da atividade simbólica da índole (Gemüt). Mas será que essa é uma base sustentável? Será que, na verdade, essa atividade simbólica não está sendo limitada ainda hoje pela sobrevivência de uma tradição mítico-alegórica? Quando se reconhece isso, o antagonismo de símbolo e alegoria tem de se relativizar de novo, embora, sob o preconceito da estética experimental, parecesse absoluto. Da mesma forma, a diferença entre a consciência estética e a mítica mal conseguirá se fazer valer como um absoluto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Onde a arte domina, aí passam a valer as leis da beleza e são ultrapassadas as fronteiras da realidade. É o “reino ideal”, a ser defendido contra todas as limitações, até mesmo contra a tutela moral do estado e da sociedade. Vincula-se certamente com o deslocamento interno na base ontológica da estética de Schiller, o fato de que também seu extraordinário princípio, nas Cartas sobre a educação estética, se modifique na execução. Torna-se conhecido que uma educação pela arte torna-se uma educação para a arte. No lugar da verdadeira liberdade ética e política, para o que a arte deve nos preparar, desponta a formação de um “estado estético”, uma sociedade de formação que se interessa pela arte Com isso, também a superação do dualismo kantiano do mundo dos sentidos e do mundo ético, que é representado pela harmonia da obra de arte e pela liberdade do jogo estético, transforma-se obrigatoriamente num novo antagonismo. A conciliação do ideal e da vida através da arte é, meramente, uma conciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade da índole humana, à qual ambos elevam, só é liberdade num estado estético e não na realidade. E assim que se abre no fundamento da conciliação estética do dualismo kantiano do ser e do dever, um dualismo ainda mais profundo e mais insolúvel. É a prosa da realidade alheada que, contra a qual, a poesia da conciliação estética tem de procurar sua própria autoconsciência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O conceito da realidade, ao qual Schiller opõe a poesia, já não é mais, certamente, kantiano. Porque Kant parte sempre, como vimos, do belo natural. Mas na medida em que Kant, devido à sua crítica da metafísica dogmática, restringe o conceito do conhecimento inteiramente à possibilidade da “pura ciência da natureza”, tornando assim indiscutivelmente válido o conceito da realidade nominalística, no final das contas o constrangimento ontológico em que veio a se encontrar a estética do século XIX terá de ser atribuído ao próprio Kant. Sob o domínio do preconceito nominalístico só se pode compreender o ser estético de uma forma insuficiente e equívoca. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Esses momentos podem ser suficientemente significantes, na medida em que incorporam a obra ao seu mundo e só com isso determinam toda a abundância do significado, que lhe é próprio originariamente. Mas a natureza artística da obra tem de se diferenciar de tudo isso. E o que justamente define a consciência estética que realiza justo essa diferença entre o que está intencionado (Gemeinte) esteticamente e tudo que é extra-estético. Faz a abstração de todas as condições de acesso sob as quais uma obra se apresenta a nós. Uma tal diferenciação é pois, ela mesma, especificamente estética. Diferenciada a qualidade estética de uma obra, de todos os momentos que refiram conteúdo, que nos determinam a uma tomada de posição moral, religiosa e também quanto ao conteúdo. Da mesma forma, diferencia nas artes reprodutivas, o original (a poesia, a composição) de sua execução, e isso de tal maneira que tanto o original, em face da reprodução, como a reprodução em si, diferentemente do original ou de outras possíveis versões, pode ser o intencionado estético. O que perfaz a soberania da consciência estética, é poder realizar por toda parte uma tal diferenciação e poder ver tudo “esteticamente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O verdadeiro processo da formação, isto é, o elevar-se à universalidade, é aqui, ao mesmo tempo, uma decadência em si mesmo. A “presteza da reflexão pensadora de se movimentar em universalidades, de colocar qualquer conteúdo sob pontos de vista propostos e, assim vesti-lo com pensamentos”, é, segundo Hegel, a maneira de não se deixar envolver com o verdadeiro conteúdo dos pensamentos. Immermann denomina um tal derramar-se livre do espírito em si, algo dissipador”. Com isso, descreve a situação introduzida pela literatura e pela filosofia clássicas da época de Goethe, em que os epígonos já encontravam prontas todas as formas do espírito e, por isso, o que era o genuíno trabalho da formação, isto é, o burilar o que era estranho e tosco, acabava sendo trocado pelo prazer do mesmo. Tinha se tornado fácil fazer uma boa poesia e, por esse motivo, tornara-se difícil ser um poeta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Até se pode dizer mais do que isso: A representação da essência é tampouco uma mera imitação, que é necessariamente demonstrativa. Quem imita tem de deixar algo fora ou realçar algo. Porque ele mostra, queira ou não, terá de exagerar. Tendo isso em vista, existe uma distância de ser intransponível entre o ente que “é assim como” e aquele ao qual ele quer se igualar. Sabe-se que Platão insistiu nesse distanciamento ontológico, no mais ou no menos de desvantagem da cópia em relação ao modelo originário, e a partir daí, relegou à terceira categoria a imitação e a representação no jogo da arte, tidas como uma imitação da imitação. Não obstante, é o reconhecimento que está em obra na representação da arte, o qual possui o caráter de um genuíno conhecimento da essência e é justamente através do fato de que Platão entende todo conhecimento da essência como reconhecimento, que isso está objetivamente fundamentado: Aristóteles pôde denominar a poesia como mais filosófica do que a história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A mesma coisa e de maneira semelhante vale para o espetáculo teatral em si e para aquilo que ele é enquanto poesia. A encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada dele como algo que não pertence ao seu ser essencial, já que é tão subjetivo e fluente como as vivências estéticas, nas quais é experimentado. Antes, na execução e somente nela — o mais claro exemplo é o da música — encontra-se a obra, ela mesma, tal qual no culto encontra-se a divindade. Aqui se torna visível o proveito metódico que se obtém, partindo-se do conceito de jogo (espetáculo). A obra de arte não é simplesmente isolável da “contingência” das condições de acesso sob as quais se mostra, e onde essa isolação acaba ocorrendo, o resultado é uma abstração, que reduz o ser próprio da obra. O espetáculo só acontece onde está sendo representado, e música em plenitude deve soar. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Que conseqüências ontológicas isso tem? O que é que resulta, quando partimos dessa maneira do caráter lúdico do jogo, a fim de determinar mais acuradamente o modo de ser do ser estético? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte, entendida a partir dele, não são um mero sistema de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar-na-existência da própria poesia. Assim, a questão é saber o que é propriamente, de acordo com o seu ser, essa obra poética, que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que no entanto é o seu ser próprio que nisso se torna representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Na ciência da arte, o aspecto ontológico do quadro se revela no problema especial da formação e da mudança dos tipos. A peculiaridade dessas relações parece-me repousar no fato de que, aqui, existe um duplo devir do quadro, na medida em que a arte plástica, em face da tradição poético-religiosa, produz, mais uma vez, a mesma coisa que esta própria já faz. O conhecido dito de Heródoto, que Homero e Hesíodo teriam criado os deuses para os gregos, quer dizer que trouxeram para a variada tradição religiosa dos gregos a sistemática teológica de uma família de deuses e somente assim fixaram, nos moldes da configuração (eidos) e da função (time), configurações destacadas. A poesia produziu aqui um trabalho teológico. Ao manifestar as relações dos deuses entre si, produziu a fixação de um todo sistemático. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Se partirmos do fato de que a obra de arte não pode ser compreendida do ponto de vista da consciência estética, muitos fenômenos, que assumem uma posição marginal para a mais recente estética, perdem o seu caráter problemático, e até se deslocam para o centro de um questionamento “estético”, que não se reduz através de uma forma artificial. O que estou querendo dizer são fenômenos como o portrait, a poesia em homenagem a, ou mesmo a alusão feita na comédia contemporânea. Os conceitos estéticos portrait, em homenagem a e alusão são, eles próprios, naturalmente, formados pela própria consciência estética. O que há de comum nesses fenômenos apresenta-se, para a consciência estética, no caráter da ocasionalidade, que tais formas de arte por si mesmas reivindicam. Ocasionalidade quer dizer que o significado continua se determinando, quanto ao conteúdo, a partir da ocasião em que ele é pensado, de maneira que ele contém mais do que sem essa ocasião. Assim, o portrait contém uma relação com o representado, para a qual não temos de deslocá-lo primeiro, mas que é intensionado expressamente na própria representação, caracterizando-o como portrait. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Fora disso denominamos de “modelo”: alguma coisa em que um outro, que ele mesmo não seja visível, torne-se visível; como, por exemplo, o modelo do projeto de uma casa ou o modelo do átomo. O modelo do pintor não é pensado enquanto ele próprio. Serve apenas para mostrar o uso de vestuários ou para a exemplificação de atitudes — como se fosse uma boneca vestida. Ao contrário, o representado no portrait é tão ele próprio, que não atua disfarçado, mesmo quando as luxuosas vestes que está usando chamam a atenção para si. Pois o luxo de sua apresentação pertence a ele mesmo. E ele aquele que ele é por outro. A interpretação de uma poesia, alicerçada em experiências ou fontes, usual na pesquisa literária biográfica e na pesquisa da história das fontes, às vezes nada mais faz do que faria uma pesquisa da arte, que examina as obras de um pintor na perspectiva de seus modelos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Reconhecemos isso no fato de que um portrait aparece a alguém também como portrait (e, por exemplo, a representação de uma pessoa num quadro figurativo, apresentando-se com caráter de portrait), se ele não reconhece o retratado. No quadro haverá então alguma coisa concomitantemente não dissociável, não quer dizer que não esteja lá, estará até de uma forma inteiramente unívoca. Algo semelhante vale para vários fenômenos poéticos. As poesias da Vitória, de Píndaro, a comédia que sempre critica o contemporâneo, mas também numa configuração tão literária como as odes e as sátiras de Horácio, são, de acordo com seu inteiro caráter, de natureza ocasional. O ocasional tornou-se, nessas obras de arte, uma forma tão permanente que, embora indissociado e incompreendido, colabora com o sentido do conjunto. A relação histórica real, que se possa acrescentar como esclarecimento, será secundária para a poesia como um todo. Preenche somente um prenúncio de sentido que se encontra nele mesmo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que importa reconhecer é que aquilo que chamamos de ocasionalidade não representa, de forma alguma, uma redução da exigência artística e da univocidade artística de tais obras. Pois, o que se apresenta à subjetividade estética como “irrupção do tempo no jogo” e que na era da arte vivencial apareceu como uma redução do significado estético de uma obra. É, na verdade, apenas o reflexo subjetivo daquela relação ontológica que elaboramos acima. Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. No quadro, ser-fixado; na poesia, ser-tratado; ser meta de uma alusão, do ponto de vista do palco, isso tudo não são efemeridades, que permanecem distanciadas do ser, mas representações desse próprio ser. O que dissemos de modo geral acima sobre a valência de ser do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, apresenta-se o momento da ocasionalidade, que vem ao encontro nos fenômenos citados, como um caso de exceção de uma relação geral, que convém ao ser da obra de arte: a fim de experimentar a continuidade da determinação de seu significado a partir da “ocasião” de seu vir à representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Mas com isso se dá também algo mais. A arquitetura é simplesmente uma conformadora de espaço. Espaço é o que abarca a todos os entes que estão no espaço. Por isso a arquitetura abrange todas as demais formas de representação: a todas as obras da arte plástica, a toda ornamentação — proporciona, ainda, primariamente, o lugar para a representação da poesia, da música, da mímica e da dança. Ao abarcar o conjunto de todas as artes, torna vigente em toda parte o seu próprio ponto de vista. E este é o da decoração. A arquitetura o conserva, inclusive, face àquelas formas de arte, cujas obras não devem ser decorativas, já que atraem a atenção sobre si pelo caráter fechado do seu círculo de sentido. A investigação mais recente está começando a recordar que isso vale para todas as obras figurativas, cujo lugar estava já previsto quando foram encomendadas. Nem sequer uma escultura livre, colocada sobre um pedestal, subtrai-se ao contexto de vida a que se subordina, adornando-o. Também a poesia e a música, dotadas da mais livre mobilidade e suscetíveis de ser executadas em qualquer lugar, não se adequam, no entanto, a qualquer espaço, já que seu lugar apropriado só pode ser em um ou em outro, no teatro, no salão ou na igreja. Isso tampouco quer dizer que posterior e externamente foi achado um lugar para uma configuração já [163] acabada em si, mas é necessário obedecer à potência configuradora do espaço que pertence à própria obra. Esta, tanto tem de se adaptar à situação dada, assim como coloca suas próprias condições. (Pense-se, por exemplo, também no problema da acústica, que representa uma tarefa não somente técnica mas também da arte arquitetônica.) VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Mas será que este é um conceito correto da literatura? Ou estará procedendo, afinal de contas, de uma retroprojeção romântica, a partir da consciência de formação alienada? Pois a literatura, como objeto da leitura, é efetivamente um fenômeno tardio, mas de modo algum, o seu caráter escrito, enquanto tal. Este pertence na realidade aos dados originários de todo o grande fazer poético. A pesquisa mais recente abandonou a idéia romântica da originalidade da poesia épica, por exemplo, a de Homero. A escrita é muito mais antiga do que acreditávamos e parece haver pertencido desde sempre aó elemento espiritual da poesia. A poesia, portanto, existe já como “literatura”, lá onde ela ainda não é consumida como material de leitura. Nesse sentido, o predomínio da leitura face à conferência, que observamos em épocas mais tardias (pense-se, por exemplo, na repulsa aristotélica ao teatro), não representa nada realmente novo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A caracterização normativa, que se dá com a pertença à literatura universal, situa o fenômeno da literatura sob um novo ponto de vista. Porque, se esta pertença à literatura universal só é reconhecida no caso de uma obra literária que possui um certo status próprio, como poesia ou como obra de arte lingüística, o conceito da literatura, por seu turno, é muito mais amplo do que o da obra de arte literária. Do modo de ser da literatura participa toda tradição lingüística, não somente os textos religiosos, jurídicos, econômicos, públicos e privados de toda classe, mas também os escritos em que se elaboram e interpretam cientificamente esses textos transmitidos, e, por conseqüência, todo o conjunto das ciências do espírito. E mais, a forma da literatura convém em geral a toda investigação científica, na medida em que esta encontra-se essencialmente vinculada ao caráter de ser da linguagem. É a capacidade de escrever, de tudo que é lingüístico, que delimita o mais amplo do sentido de literatura. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Levando isso em consideração, a diferença entre uma obra de arte literária e qualquer outro texto literário já não é tão fundamental. Certamente que existem diferenças entre a linguagem da poesia e a da prosa, e igualmente, entre a linguagem da prosa poética e a da prosa “científica”. Essas diferenças podem certamente ser consideradas também do ponto de vista da formulação literária. Mas a diferença essencial dessas “linguagens” diferentes reside, evidentemente, noutro aspecto, ou seja, na diversidade da reivindicação da verdade que cada uma delas levanta. Dá-se uma profunda comunhão entre todas as obras literárias, no fato de que a formulação lingüística permite que o significado que deve ser expresso chegue a ser operante. Visto dessa maneira, a compreensão de textos, como, por exemplo, aquela qüe o historiador agencia não difere tanto da experiência da arte. E não é um simples acaso, que, no conceito da literatura, sejam reunidas não somente as obras da arte literária, mas toda tradição literária como tal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Para nós é um pouco estranho o fato de que, desse modo reúne-se a poesia com a arte do discurso. Pois, parece-nos que o que caracteriza e dá dignidade à arte é justamente que, nela, a linguagem não é discurso, isto é, o fato de que possui uma unidade de sentido e de forma que é independente de toda relação de falar e de ser interpelado e persuadido. O conceito de Schleiermacher sobre “pensar artístico”, sob o qual ele reúne a arte da poesia e a arte do discurso, considera, pelo contrário, não o produto mas o modo de comportamento do sujeito. Assim, também o falar é concebido aqui puramente como arte, isto é, abstraindo de toda relação a objetivos e à coisa em causa, como expressão de uma produtividade plástica. [193] E não obstante, a passagem entre o artístico e o carente de arte é, então, fluente — como é fluente também a passagem da compreensão sem arte (imediata) para um procedimento cheio de arte. Enquanto que essa produção ocorre mecanicamente, segundo leis e regras, e não de uma maneira inconsciente-genial, o intérprete realiza a composição conscientemente; mas enquanto ela é uma produção individual do gênio, produção criadora em sentido autêntico, já não pode dar-se essa pós-facção através de regras. O próprio gênio é o que forma os padrões e dá as regras: cria novas formas de uso lingüístico, da composição literária etc. Schleiermacher leva muito em consideração essa diferença. Pelo lado da hermenêutica, a essa produção genial corresponde o fato de que ele necessita da adivinhação, do adivinhar de imediato que, em última análise, pressupõe uma espécie de congenialidade. Se agora, porém, os limites entre a produção sem arte e com arte, mecânica e genial, são movediços, na medida em que o que se expressa é sempre uma individualidade, e nela sempre opera um momento da genialidade livre de regras — como ocorre com as crianças que crescem em um idioma — segue-se que o fundamento último de toda compreensão terá que ser sempre um ato divinatório da congenialidade, cuja possibilidade repousa sobre uma vinculação prévia de todas as individualidades. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Esta compreensão pode ser chamada de “melhor”, na medida em que a compreensão expressa — e, com isso, criadora de relevâncias — de uma opinião face à realização do conteúdo da mesma, encerra um plus de conhecimento. Assim, o postulado diz quase que uma obviedade. Quem aprende a compreender linguisticamente um texto composto em um idioma estrangeiro terá de adquirir consciência expressa das regras gramaticais e da forma de compreensão desse texto, os quais o autor aplicou sem se dar conta, porque mora nessa língua e nas suas mediações técnicas. O mesmo pode-se dizer fundamentalmente a respeito de toda produção genial autêntica e sua recepção pelos outros. Em particular, convém que se relembre isso para a interpretação da poesia. Também aí, tem-se de compreender necessariamente um poeta, melhor do que ele próprio se compreendia, pois ele não “se compreendeu” em absoluto quando nele tomou forma a construção do seu texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A repetição da frase de Schleiermacher por Steinthal mostra já os efeitos da pesquisa das leis psicológicas, que a pesquisa da natureza havia tomado como modelo. Nisso Dilthey é mais livre, enquanto conserva com mais força a conexão com a estética do gênio. Aplica a fórmula em questão, particularmente na interpretação dos poetas. Compreender a “idéia” de um poema, a partir de sua “forma interior”, pode-se dizer, obviamente, que é “compreender melhor esta idéia”. Dilthey vê nisso pouco menos que o “supremo triunfo da hermenêutica”, pois o conteúdo filosófico da grande poesia abre-se aqui, através do fato de que a compreendemos como criação livre. A criação livre não está restringida por condições externas ou materiais, e, por isso só pode ser concebida como “forma interior”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A essa imagem da história corresponde também a posição do conhecimento histórico. Também esse não pode ser compreendido como o fez Ranke, como um auto-esquecimento estético e um auto-apagamento à maneira da grande poesia épica. O traço panteísta de Ranke propiciou aqui a pretensão de uma participação ao mesmo tempo universal e imediata, de uma “co-ciência” do todo. Ao contrário, Droysen pensa as mediações em que a compreensão se movimenta. Os poderes morais não são somente a autêntica realidade da história a que se eleva o indivíduo quando atua. Eles são ao mesmo tempo aquilo a que, também aquele que pergunta e investiga historicamente se eleva para além de sua própria particularidade. O historiador está determinado e limitado por pertencer a determinadas esferas morais, como a sua pátria, as suas convicções políticas e religiosas. Todavia, sua participação repousa precisamente sobre essa unilateralidade inamovível. Sob as condições concretas de sua existência histórica própria — e não flutuando por sobre as coisas — a justiça se coloca como a sua tarefa. “Sua justiça é o fato de que ele tenta compreender” (§ 91). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Paralelamente a essa superação histórica da metafísica aparece a interpretação espiritual-científica da grande poesia, na qual Dilthey vê o triunfo da hermenêutica. Permanece, porém, uma primazia relativa ao fato de que a filosofia e a arte possuam primazia para a consciência que compreende historicamente. Enquanto tais, essas podem manter uma preferência especial, porquanto nelas não se tem de secar-lhe o espírito, porque são “expressão pura” e não querem ser outra coisa. Mas tampouco assim são verdade imediata, porém só se prestam como órgão que serve à compreensão da vida. Tal qual certas épocas de esplendor de uma cultura são preferidas para o conhecimento de seu “espírito”, ou tal como o fato de que o qüe caracteriza as grandes personalidades é que representam em seus planos e em seus feitos as verdadeiras decisões históricas, do mesmo modo a filosofia e a arte tornam-se particularmente acessíveis à compreensão interpretadora. Aqui a história do espírito segue a preferência da forma, do puro aperfeiçoamento de totalidades significativas que se destacam do devir. Em sua introdução à biografia de Schleiermacher, Dilthey escreve: VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Mas mesmo aquela interpretação que parece mais afastada dos tipos tratados até agora, a interpretação re-produtiva, na qual se executa a música e a poesia — pois uma e outra só possuem verdadeira existência no serem exercidas — dificilmente poderá ser considerada como uma forma autônoma da interpretação. Também ela encontra-se atravessada pela cisão entre função cognitiva e normativa. Ninguém irá encenar um drama, recitar um poema ou executar uma composição musical se não o fizer compreendendo o sentido originário do texto, mantendo-o como referência de sua re-produção ou interpretação. Mas, pelo mesmo motivo, ninguém poderia realizar essa interpretação re-produtiva sem levar em conta, nessa transposição do texto para uma forma sensível, aquele outro momento normativo, que limita as exigências de uma reprodução estilisticamente justa em virtude das preferências de estilo do próprio presente. Se nos conscientizarmos inteiramente até que ponto a tradução de textos estrangeiros ou mesmo sua reformulação poética, assim como também a correta declamação de textos, realizam por si mesmos um desempenho explicativo parecido ao da interpretação filológica, de maneira que não existem de fato fronteiras nítidas entre um e outro, então já não poder-se-á evitar a conclusão de que a distinção entre a interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva não pode pretender uma validez de princípio, porque tão-somente circunscreve um fenômeno unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Todavia, a tarefa de concretizar um comum e de aplicá-lo parece ter nas ciências históricas do espírito uma função muito diferente. Se se pergunta o que significa nelas a aplicação e como tem lugar no tipo de compreensão que exercem as ciências do espírito, poderemos admitir, no máximo, que há um determinado tipo de tradição, face ao qual nos comportamos à maneira da aplicação, do mesmo modo que o jurista com respeito à lei e o teólogo com respeito ao anúncio. Tal como o juiz procura encontrar a justiça e o pregador anunciar a salvação, e tal qual em ambos os casos o sentido da mensagem somente se completa na promulgação e o anúncio, respectivamente, assim, também com relação a um texto filosófico ou a uma poesia ter-se-á de reconhecer que essa classe de textos exige do leitor, e de quem procura compreendê-los, um fazer próprio e que em face deles não se está em liberdade para nos mantermos numa distância histórica. Ter-se-á de admitir que a compreensão, aqui, implica sempre a aplicação do sentido compreendido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da conversação. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Disso se segue, no entanto, que temos de poder afirmar o mesmo para toda compreensão que se realiza na leitura silenciosa. Visto fundamentalmente, também a leitura contém sempre uma interpretação. Não é que a compreensão na leitura seja uma espécie de encenação interior, na qual a obra de arte alcançaria uma existência autônoma — ainda que encerrada na intimidade da interioridade da alma — como se dá na encenação à vista de todos. Pelo contrário, isso quer dizer que uma encenação colocada na exterioridade do espaço e do tempo, na verdade, não tem, ante a própria obra, uma existência autônoma, e que somente numa diferenciação estética secundária poderia chegar a alcançá-la. A interpretação da música ou da poesia, quando executadas, não diferem essencialmente da compreensão de um texto, quando é lido: Compreender implica sempre interpretar. O que faz o filólogo consiste também em tornar legíveis e compreensíveis os textos ou, o que dá no mesmo, em assegurar a correta compreensão de um texto face a seus possíveis mal-entendidos. E então já não há nenhuma diferença de princípio entre a interpretação que uma obra experimenta por sua reprodução e a que é produto do filólogo. Por mais secundária que seja considerada a justificação de sua interpretação em palavras por um artista que reproduz obras, e por mais que a rechace como não-artística, o que não poderá negar é que a interpretação reprodutiva é fundamentalmente capaz de uma justificação desse tipo. Também ele tem de querer que a sua acepção seja correta e convincente, e seguramente não pretenderá contestar a vinculação ao texto que tem como base. E, todavia, esse texto é o mesmo que coloca sua tarefa ao intérprete científico. Por.conseguinte, não poderá argüir nada de fundamental contra o fato de que sua própria compreensão de uma obra, tal como se manifesta em sua interpretação reprodutiva, possa ser, por sua vez, novamente compreendida, e isto significa que possa ser justificada interpretativamente, e tal interpretação terá de realizar-se em forma lingüística. [404] Tampouco ela será, por sua vez, uma nova criação de sentido. Também a ela acontecerá que irá desaparecer como interpretação e conservar sua verdade na imediatez da compreensão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Tudo isso ocorre de forma ainda mais pregnante no fenômeno da poesia. Aqui é certamente legítimo considerar que a verdadeira realidade do falar poético é a “enunciação” poética. Pois aqui faz realmente sentido e exige-se que o sentido da poesia se enuncie no que é dito como tal, sem nenhuma adição de saberes ocasionais. Se o enunciado representava, no acontecer inter-humano do pôr-se de acordo, uma desnaturalização deste, aqui, pelo contrário, o conceito do enunciado se realiza plenamente. Pois a emancipação do que foi dito com respeito a toda opinião e vivência subjetiva do autor é o que constitui a realidade da palavra poética. Mas o que é que enuncia este enunciar? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Para começar, é claro que na poesia pode reaparecer tudo quanto tem lugar no falar cotidiano. Quando a poesia representa as pessoas falando entre si, o enunciado poético não repete os “enunciados” que caberiam a um protocolo, mas de um modo misterioso, torna-se presente nele, o todo da conversação. As palavras que se põem na boca de alguns personagens na poesia são especulativas do mesmo modo que o falar da vida de todos os dias: na conversação, o falante traz à fala uma relação com o ser, como já vimos mais acima. Quando falamos de uma enunciação poética, não nos referimos em absoluto ao enunciado, como tal, que uma poesia põe na boca de alguém, mas ao enunciado que é a própria poesia na sua qualidade de palavra poética. Mas o enunciado poético como tal é especulativo na medida em que, por sua vez, o acontecer lingüístico da poesia expressa uma relação própria com o ser. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Se tomamos como referência o “modo de proceder do espírito poético”, tal como o descreve Hölderlin, por exemplo, tornar-se-á logo patente, em que sentido o acontecer lingüístico da poesia é especulativo. Hölderlin mostrou que o achado da linguagem de um poema pressupõe a total dissolução de todas as palavras e modos de falar habituais. “Quando o poeta se sente captado, em toda sua vida interna e externa, pelo tom puro de sua sensibilidade originária e olha então ao seu redor, ao seu mundo, este se torna novo e desconhecido; a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de seu contemplar, de sua reflexão, arte e natureza, como se representam nele e fora dele, tudo parece como se fosse a primeira vez, e justamente por isso, inconcebido, indeterminado, dissolvido em pura matéria e vida, presente. E é importantíssimo que, nesse momento, não aceite nada como dado, não parte de nada positivo, e que a natureza e a arte, tal como as aprendeu antes e as vê agora, não falem antes de que exista para ele uma linguagem…” (Observe-se o parentesco com a crítica hegeliana à positividade.) O poema, que logrou ser obra e criação, não é ideal, mas é espírito reanimado a partir da vida infinita. (Também isso lembra a Hegel). Nele não se designa ou se significa um ente, mas se abre um mundo do divino e do humano. A enunciação poética é especulativa porque não copia uma realidade que já é, não reproduz o aspecto da espécie na ordenação da essência, mas representa o novo aspecto de um novo mundo no âmbito imaginário da invenção poética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nossa reflexão tem sido guiada pela idéia de que a linguagem é um centro em que se reúnem o eu e o mundo, ou melhor, em que ambos aparecem em sua unidade originária. Elaboramos também o modo como se representa esse centro especulativo da linguagem, como um acontecer finito, face à mediação dialética do conceito. Em todos os casos que estivemos analisando, tanto na linguagem da conversação, quanto na da poesia e na da interpretação, tornou-se patente a estrutura especulativa da linguagem, que consiste não em ser cópia de algo que está dado de modo fixo, mas em um vir-à-fala, onde se anuncia um todo de sentido. Isso nos tinha aproximado da dialética antiga, porque tampouco nela se dava uma atividade metodológica do sujeito, mas um fazer da própria coisa, fazer que o pensamento “padece”. Esse fazer da própria coisa é o verdadeiro movimento especulativo que capta o falante. Rastreamos o seu reflexo subjetivo no falar. Agora estamos em condições de compreender que essa cunhagem da idéia do fazer da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta a uma estrutura universal-ontológica, à constituição fundamental de tudo aquilo a que a compreensão pode se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem. O fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à constituição ôntica do compreendido, quando a determina, num sentido universal, como linguagem, e determina sua própria referência ao ente, como interpretação. Por isso não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Isso mostra-se claramente quando, hoje, procuro repensar o meu próprio relacionamento com Heidegger e minha adesão ao seu pensamento. A crítica viu este relacionamento de modo muito diverso. Em geral, essa determinou-se pelo fato de eu empregar o conceito de “consciência histórico-efeitual”. O fato de voltar a empregar o conceito de “consciência”, cuja preconceptualidade ontológica foi demonstrada claramente por Heidegger em Ser e tempo, significa para mim apenas uma adaptação a um uso de linguagem que me parece natural. Por certo, isso deu a impressão de um atrelamento ao questionamento do primeiro Heidegger, o qual parte da pre-sença, em que está em jogo seu ser e que se caracteriza pela compreensão de ser. O Heidegger tardio tratou de superar expressamente a autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo. A minha própria motivação de introduzir o conceito de consciência histórico-efeitual consistiu justamente em abrir caminho para o Heidegger tardio. Quando o pensamento de Heidegger se projetou para fora da linguagem dos conceitos da metafísica, ele viu-se enredado numa carência de linguagem que o levou a apoiar-se na linguagem de Hõlderlin e num dizer quase poético. Numa série de pequenos trabalhos sobre o Heidegger tardio, tentei esclarecer que a conduta do Heidegger tardio no que se refere à linguagem não é uma recaída na poesia, mas já estava contida na linha de seu pensamento, o qual me introduziu em minhas próprias questões. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Neste ponto parece necessário deter-nos um pouco na diferenciação entre ler e reproduzir. Talvez não possa ir tão longe como Emilio Betti, que em sua teoria da interpretação separa completamente um do outro, o compreender e o reproduzir. Devo insistir que é a leitura e não a reprodução que representa o verdadeiro modo de experiência da própria obra de arte, e que a define como tal. Ali, trata-se de uma “leitura” no sentido “eminente” da palavra, assim como o texto de poesia é um texto em sentido “eminente” da palavra. Na verdade, a leitura é a forma efetiva de todo encontro com a arte. Não está presente apenas nos textos, mas também nas artes plásticas e na arquitetura. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: “Conceber aquilo que nos toca” (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio. Isso não deixa de ter conseqüências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma “aplicação” posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida “de maneira puramente teórica”, a um objetivo prático. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Se o que ocorre ali é uma autocompreensão, trata-se então de uma autocompreensão muito paradoxal, para não dizer negativa, onde nos vemos chamados à conversão. De certo, essa autocompreensão não estabelece um critério para a interpretação teológica do Novo Testamento. Além do mais, os próprios textos do Novo Testamento já são interpretações da mensagem salvífica e mediadores da boa-nova sem nenhuma pretensão de ser compreendidos em si mesmos. Terá sido essa condição que lhes conferiu sua liberdade expressiva, tornando-os testemunhos desinteressados? Por mais gratos que sejamos às recentes investigações teológicas a respeito da intenção teológica dos próprios autores do Novo Testamento, o anúncio do Evangelho fala por intermédio de todas essas mediações, de maneira semelhante ao que ocorre com uma lenda que continua a ser transmitida ou a uma tradição mítica, constantemente transformada e renovada pela grande poesia. Parece-me que a verdadeira realidade do exercício hermenêutico abrange a autocompreensão do intérprete e do interpretado. Nesse sentido, a “desmitologização” não se dá apenas na atividade do teólogo. Ela se dá na própria Bíblia. Todavia, nem numa nem em outra a “desmitologização” pode ser garantia segura para uma compreensão correta. O verdadeiro evento da compreensão ultrapassa tudo que pode ser produzido por meio do esforço metodológico e do autocontrole crítico com vistas à compreensão das palavras do outro. Ultrapassa também tudo aquilo de que nós próprios podemos ter consciência. De todo diálogo, pode-se dizer que através dele surge outra coisa diferente. A palavra de Deus que convoca para a conversão e nos promete uma melhor compreensão de nós mesmos não pode ser compreendida como um objeto que se encontra ali, à nossa frente. Não somos nós mesmos que compreendemos, ali. É sempre um passado que nos permite dizer: compreendi. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.
Se prestarmos bem atenção à tendência de individualização, inerente à linguagem viva em sentido próprio, reconheceremos a perfeição dessa tendência na figura poética. E se isso estiver correto, então é preciso questionar se a teoria da substituição realmente convém ao conceito de sentido da expressão de linguagem. A intradutibilidade, caracterizada em última instância pela poesia lírica, uma vez que aí uma língua não se deixa traduzir para outra sem perder sua força de expressão poética, faz fracassar a idéia de substituição, de introdução de uma expressão em lugar de outra. Isso parece ser independente do fenômeno específico de geral independentemente do fenômeno especial de uma linguagem poética altamente individualizada e de importância universal. Parece-me que a possibilidade de substituição se opõe ao momento individualizante inerente ao ato de linguagem. Mesmo quando, no dizer, substituímos uma expressão por outra ou a justapomos a outra, seja por abundância retórica ou para ajustar a expressão, quando o orador não a encontra de imediato, o sentido do discurso se constrói no processo das expressões sucessivas, jamais saindo do acontecimento único dessa fluência. Deixamos esse acontecimento único quando introduzimos no lugar de uma palavra usual uma outra de sentido idêntico. Esse é o ponto onde a semântica supera a si mesma, [178] passando a ser outra coisa. A semântica é uma teoria de signos, sobretudo de signos de linguagem. Signos são, porém, meios. Os signos são usados aleatoriamente e deixados de lado como qualquer outro meio empregado na atividade humana. A expressão “ele domina os meios” significa: “ele emprega-os corretamente com vistas a um fim”. Também dizemos que devemos dominar uma língua, se quisermos nos comunicar nessa língua. Mas o verdadeiro falar é mais que a escolha dos meios para alcançar determinados objetivos de comunicação. A língua que dominamos é onde vivemos, isto é, onde o que queremos comunicar só pode ser “conhecido” na forma da linguagem. O fato de “escolhermos” as palavras é uma ilusão ou um efeito da linguagem criado quando o dizer sofre uma inibição. O dizer “livre” flui na entrega abnegada à questão evocada através da linguagem. Isso também vale para a compreensão de discursos fixados em textos escritos, pois também os textos, quando compreendidos, são reinseridos no movimento de significação do discurso. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.
Mas isso significa que a matemática, com a qual o físico adquire e formula seu conhecimento, não é uma linguagem própria. Pertence ao instrumentado de muitas linguagens com o qual expressa o que quer dizer. Em outras palavras, o dizer filosófico constitui sempre uma intermediação entre a linguagem técnica ou das expressões técnicas — chamada terminologia erudita — e a vida da linguagem que cresce e se transforma nela mesma. Essa tarefa de integração e mediação encontra sua culminação específica no físico, por ser aquele que, dentre os pesquisadores da natureza, é o que [192] mais fala em termos matemáticos. É especialmente instrutivo justamente por ser o caso extremo do uso de uma simbologia amplamente matemática. Essa estrutura poético-metafórica mostra que, para a física, a matemática representa apenas uma parte não autônoma da linguagem. A linguagem é autônoma onde por exemplo as línguas desenvolvidas nutrem sua realidade como aspectos do mundo das diversas culturas. A questão é porém saber como se dá a relação entre o dizer e o pensar científico e o dizer e pensar extra-científico. Será que a liberdade maleável de nosso dizer cotidiano não passa de um estágio aproximado da linguagem científica? A quem nega isso poderíamos objetar que as línguas naturais ainda hoje em dia parecem indispensáveis. Se nos esforçássemos um pouco mais, acabaríamos compreendendo as equações da física que prescindem do uso de palavras, seríamos até mesmo capazes de calcular nossas ações e nós mesmos mediante equações. Nesse caso, não precisaríamos de nenhuma outra linguagem a não ser a científica. Na realidade, o objetivo do cálculo lógico moderno é essa linguagem artificial inequívoca. Todo esse ideal é, no entanto, motivo de muita discussão. Para Vico e Herder, ao contrário, é a poesia que representa a linguagem originária do gênero humano. Para ambos a intelectualização dos idiomas modernos está longe de ser a perfeição do ideal de linguagem, não passando de um destino medíocre. A questão que se há de formular é a seguinte: Será correto afirmar que o ideal de perfeição de toda linguagem é a crescente aproximação de uma linguagem científica? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
Reconheço que esses fenômenos indicam que por trás de todas as relatividades de linguagens e convenções existe algo comum, que já não é linguagem, mas propício a ser verbalizado pela linguagem, para o que a conhecida palavra “razão” não é tão inadequada. Mesmo assim, existe algo ali que caracteriza a linguagem como tal. Trata-se do fato de a linguagem como tal poder destacar-se e distinguir-se de modo característico de todos os outros processos comunicativos. Chamamos essa distinção de escrever e escrita. O que significa que algo tão intuitivo e vivo, tão inalienável como um discurso persuasivo entre duas pessoas, ou o discurso da alma consigo mesma, possa adotar a forma rígida de traços escritos, passíveis de serem decifrados e lidos em novas formulações de sentido? O que isso significa sobretudo quando consideramos cada vez mais um mundo literário, um mundo regido pelo escrever e pela escrita? Em que consiste a universalidade dessa escrita e o que acontece ali? Independentemente de todas as distinções da escrita, diria que, para ser compreendido, cada escrito exige uma espécie de ouvido interior. Onde se trata de poesia e matérias similares, isso é evidente. Também na filosofia costumo dizer aos meus estudantes: Vocês devem afinar o ouvido, devem saber que, quando pronunciam uma palavra, não empregaram uma ferramenta qualquer, que se pode colocar de lado se não servir a vocês. Vocês, na verdade, tomaram uma direção de pensamento que vem de muito longe e os leva para muito além de vocês mesmos. Realizamos sempre uma espécie de reciclagem. Num sentido bem amplo, gostaria de chamar a isso de “tradução”. Ler já é traduzir e traduzir é traduzir mais uma vez. Pensemos um instante sobre o que significa o fato de traduzirmos, isto é, de trazer algo morto para uma nova realidade pela leitura compreensiva ou quiçá de trazer algo que fora expresso numa língua estranha, fixado por escrito como texto, para ganhar nova realidade pela compreensão numa outra língua, que é a nossa. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15.
Da dupla referência que a hermenêutica mantém com a retórica tradicional e com a filosofia prática de Aristóteles parece desprender-se que o problema da hermenêutica pode experimentar uma clareza muito maior do que seria possível partindo da problemática imanente à metodologia científica atual. É uma tarefa muito árdua determinar o lugar que ocupa uma disciplina como a retórica aristotélica no âmbito da teoria da ciência. Mas temos razões para associá-la à poética e não podemos negar aos dois escritos atribuídos a Aristóteles sua intenção teórica. Não pretendem substituir os manuais técnicos nem promover a arte da palavra e da poesia num sentido técnico. Aristóteles coloca essas artes no mesmo nível que a medicina e a ginástica, que nesse contexto ele qualifica como ciências técnicas. Não foi exatamente em sua “Política”, onde elaborou teoricamente um imenso material sobre o saber político, que Aristóteles ampliou o horizonte de problemas da filosofia prática de tal modo que a questão a respeito da melhor constituição, e assim, uma questão prática, a questão do “bem”, elevou-se acima da variedade das formas de constituição estudadas e analisadas por ele? Como é que a arte da compreensão a que damos o nome de hermenêutica irá encontrar então seu lugar no horizonte do modo de pensar aristotélico? VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da “virada”, levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha idéia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama “linguagem da metafísica”, significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da idéia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
E difícil dizer aqui o que é causa e o que é efeito: Será esse aumento de magnitude (Volumen) que suspende a função comunicativa e a referência do texto e o converte num texto literário? Ou será que ocorre o inverso: que o cancelamento da referência à realidade que caracteriza um texto como poesia, quer dizer, como auto-manifestação da linguagem, faz aflorar a plenitude de sentido do discurso em toda sua magnitude? Ambos os extremos são [354] inseparáveis, e o parâmetro de medição das participações que preenchem o espaço, de diferentes maneiras, desde a prosa artística até a poésie pure, dependerá da respectiva participação do fenômeno da linguagem na totalidade do sentido. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Essas considerações devem servir também para a metáfora. Na poesia, ela está tão inserida no jogo de tons, sentidos verbais e sentido do discurso, que não se destaca sequer como metáfora. Isso [356] porque aqui a prosa está ausente do discurso originário. Por isso, mesmo na prosa poética a metáfora quase não exerce nenhuma função. Desaparece de certo modo depois de despertar a intuição espiritual, a que serve. A área de domínio da metáfora é, ao contrário, a retórica. Nela desfrutamos da metáfora como metáfora. Tanto a teoria da metáfora quanto os jogos de linguagem não ocupam nenhum lugar de honra na poética. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
No fundamental, a arte de recitar tampouco é diferente. Necessita apenas de uma técnica especial, porque os ouvintes são pessoas anônimas e o texto poético exige sua realização em cada ouvinte. Encontramos aqui algo parecido com o que acontece quando soletramos, a saber, a recitação mecânica. Declamar mecanicamente não é falar, mas alinhar fragmentos de sentido, um atrás do outro. Um exemplo claro é o das crianças que aprendem versos de memória e os “recitam”, para a alegria dos pais. Quem é realmente capaz de recitar ou é um artista da recitação, ao contrário, tornará presente uma figura global de linguagem, do mesmo modo que o ator deve criar as palavras de seu personagem como se as encontrasse no ato. Não poderá ser uma série de retalhos de fala, mas um todo, composto de sentido e som, que “se sustenta por si”. Por isso o falante ideal não pode fazer-se presente a si mesmo, mas unicamente ao texto, que deve tornar-se acessível inclusive a um cego, incapaz de ver seus gestos. Disse Goethe certa vez: “Não há maior nem mais puro prazer do que fechar os olhos e ouvir recitar — não declamar — um fragmento de Shakespeare, entoado com uma voz natural perfeita”. Podemos perguntar, no entanto, se a recitação é possível com qualquer tipo de textos poéticos; por exemplo, quando se trata de poesia para meditação. Este problema surge também na história dos gêneros da lírica. A lírica coral e o canto em geral, que convida a cantar junto, é algo totalmente distinto do tom elegíaco. A poesia para meditação somente parece possível na pura solidão. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Num trabalho altamente acadêmico sobre essa discussão, Leo Spitzer analisou detalhadamente o gênero literário desses poemas temáticos, indicando de forma convincente o lugar que ocupam na história da literatura. Heidegger, por seu lado, chamou a atenção com razão para o nexo conceitual da palavra schõn (belo) e scheinen (brilhar, parecer) que ressoa na famosa expressão de Hegel sobre o brilho sensível da idéia. Mas existem também razões imanentes. A ação que combina som e significado das palavras faz surgir outra clara instância de decisão. Uma vez que, nesses versos, os sons sibilantes formam uma trama consistente (tuas aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst), ou uma vez que a modulação métrica do verso constitui a unidade melódica da frase (existe um acento métrico sobre schõn, selig, scheint, in, selbst), não há lugar para uma erupção reflexiva como seria o caso de um prosaico scheint es. Significaria antes a erupção da prosa coloquial na linguagem de um poema, um desvio do compreender poético que sempre nos ameaça a todos. Isso porque, em geral, falamos em prosa, como constata o Monsieur Jourdain, de Molière, para a sua própria surpresa. Foi justamente isso que levou a poesia atual a formas estilísticas extremamente herméticas para impedir a erupção da prosa. Aqui, no poema de Mõrike, esse desvio não está muito distante. A linguagem desse poema aproxima-se freqüentemente da prosa (Quem tem olhos para ela?). Ora, a posição que esse verso ocupa no poema, a posição de conclusão, confere-lhe um peso gnômico especial. Com seu próprio enunciado, o poema ilustra, na realidade, o motivo por que o ouro desse verso não é uma ordem de pagamento como uma nota bancária ou uma informação, mas possui seu valor próprio. O brilho não é apenas compreendido, mas se irradia sobre todo o esplendor dessa lâmpada que jaz dependurada, despercebida, num salão esquecido, e só reluz ainda nesses versos. O ouvido interior percebe aqui as correspondências de schõn (belo), selig (feliz), scheinen (brilhar, parecer) e selbst (mesmo)… e o selbst, que encerra e emudece o ritmo, faz ressoar o movimento calado em nosso ouvido interior. Faz brilhar em nosso olho interior o suave fluir da luz que chamamos de scheinen (brilhar). Desse modo, nossa compreensão não entende apenas o que se diz ali sobre o belo e o que expressa a autonomia da obra de arte, que não depende de nenhuma relação de uso… nosso ouvido ouve e nosso entendimento percebe o brilho do belo como seu verdadeiro ser. O intérprete que atribui suas razões desaparece, e o texto fala. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
É por isso que tanto Derrida quanto Heidegger aprofundam-se na misteriosa variedade existente na palavra e na multiplicidade de seus significados, no potencial indeterminado de suas diferenciações semânticas. Quando, pelo questionamento, Heidegger remonta da frase e do enunciado para a abertura do ser que possibilita as palavras e as frases, ultrapassa de certo modo toda dimensão das frases formadas de palavras, dos contrastes e contradições. Numa linha semelhante, Derrida parece seguir as pegadas, que só dão na sua leitura. Sobretudo a partir da análise do tempo de Aristóteles, tentou inferir que “o tempo” aparece diante do ser como difierance. Mas como lê Heidegger a partir de Husserl, lança mão da conceitualidade husserliana que se deixa sentir em Ser e tempo e em sua autodescrição transcendental, como prova do logocentrismo de Heidegger; e quando eu considero como a verdadeira realidade da linguagem não só o diálogo mas também a poesia e sua manifestação ao ouvido interior, Derrida o classifica “fonocentrismo”. Como se a fala ou a voz só ganhassem presença em sua realização, mesmo para a consciência reflexiva mais esforçada, e isso não fosse antes seu próprio desaparecimento. A indicação de que não estaria consciente justamente porque está “pensando” não é um [372] argumento arbitrário da reflexão, mas uma recordação do que acontece a todo aquele que fala e a todo aquele que pensa. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
Decerto, o interesse do historiador é seguir e investigar, na formação do jogo da arte, os traços e as relações que o entrelaçam com sua época. Parece-me, no entanto, que Carl Schmitt menospreza a dificuldade dessa tarefa, legítima para o historiador. Ele crê poder reconhecer uma ruptura no jogo, através de cuja abertura transparece a realidade contemporânea, deixando entrever a função contemporânea da obra. Esse procedimento, porém, está cheio de ganchos metodológicos, como nos ensinou o exemplo da investigação de Platão. Mesmo que seja fundamentalmente correto desconectar os preconceitos de uma pura estética da vivência e inserir o jogo da arte e seu contexto histórico-temporal e político, parece-me errado encorajar alguém a ler o Hamlet como um romance policial. Creio que aqui não se dá uma irrupção do tempo no jogo, que seria reconhecível no jogo como uma ruptura. Para o próprio jogo não há contradição entre tempo e jogo, como admite Carl Schmitt. O jogo inclui e relaciona, ao contrário, o tempo junto com, e em seu jogo. Essa é a grande possibilidade da poesia, através da qual ela pertence a seu tempo e este a escuta. Nesse sentido geral, também o drama de Hamlet pode ser visto em sua atualidade política. Mas se, de sua leitura, deduzirmos que o poeta toma ocultamente partido a favor de Essex e Jakob, será difícil provar isso pela própria poesia. Mesmo que o poeta realmente estivesse entre os que tomam esse partido, o jogo produzido por sua poesia [380] deveria esconder de tal modo seu partidarismo, que mesmo a agudeza intelectual de Carl Schmitt fracassaria diante disso. O poeta que queira alcançar seu público deve levar em consideração que entre seu público encontra-se também o partido contrário. O que temos aqui, na verdade, é a irrupção do jogo no tempo. Ambíguo como é, o jogo só pode desencadear seu efeito imprevisível em jogando-se. Por sua própria essência, o jogo não pode ser um instrumento de fins mascarados, os quais teríamos de entrever para poder compreendê-lo de modo unívoco; enquanto jogo, permanece em uma ambigüidade insolúvel. A ocasionalidade presente nele não é uma referência preestabelecida, a única que poderia conferir significado a tudo. É, antes, a capacidade enunciativa da própria obra que consegue corresponder a cada ocasião. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO II
Na segunda metade do século XVIII, a subjetivação do conceito de expressão já se encontra bem adiantada. Quando polemiza, por exemplo, com o jovem Riccoboni, que considera que a arte do ator está na representação e não na sensação, Sulzer já supõe que a autenticidade do sentir é obrigatória na representação estética. Desse modo complementa também a expressio da música através de uma cimentação psicológica do sentir do compositor. Encontramo-nos aqui no ponto de passagem da tradição retórica para a psicologia da vivência. Nesse sentido, o aprofundamento na essência da expressão e em especial da expressão estética, mantém, em última instância, uma referência sempre nova com o contexto metafísico de cunho neoplatônico. Isso porque a expressão nunca é um mero signo que nos remete a um outro, a algo interior; na expressão, ao contrário, está presente aquilo mesmo que é expresso, por exemplo, a raiva está no semblante raivoso. O moderno diagnóstico expressivo sabe disto muito bem, mas o próprio Aristóteles já sabia disso. Faz parte, evidentemente, do modo de ser do vivente, que um esteja presente no outro. Isso foi reconhecido de modo especial também pelo uso que a filosofia faz da linguagem, quando Spinoza reconhece um conceito ontológico fundamental nos termos exprimere e expressio, e quando, apoiando-se nele, Hegel vê a realidade própria do espírito no sentido objetivo da expressão como representação, exteriorização. Hegel apoia sua crítica ao subjetivismo da reflexão sobre esse fato. De modo semelhante pensam também Hölderlin e seu amigo Sinclair, em quem o conceito de expressão ocupa uma posição central. A linguagem como produto da reflexão criadora, que confere seu ser à poesia, é “expressão de um todo vivo, porém específico”. O significado dessa teoria da expressão foi evidentemente deslocado pela subjetivação e psicologização do século XIX. Na verdade, tanto em Hölderlin como em Hegel a tradição retórica é muito mais determinante. No século XVIII, expressão (Ausdruck) assume o lugar de cunhagem (Ausdrückung), e refere-se àquela forma que permanece quando se estampa um selo ou algo do gênero. O contexto dessa imagem fica claro a partir da citação de uma passagem de Géllert , que diz: “nossa língua não é capaz de exprimir certas belezas, assemelhando-se a uma cera quebradiça, que muitas vezes estala e se quebra quando se quer imprimir-lhe as imagens do espírito”. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO VI
Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A conseqüência é que essas interpretações decifradoras permanecem “inseguras”. Sua “verdade” não pode ser demonstrada “objetivamente”, a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Mas convém mencionarmos outro contexto, a saber, a relação problemática em que se encontra hoje a poética frente à retórica. Isso contém um aspecto hermenêutico. Em suas origens e até os dias de Kant e da destronização da retórica pela estética do gênio e pelo conceito de vivência, ambas as disciplinas estavam fraternalmente [432] unidas, ambas existiam como artes da linguagem, isto é, formas de uso artístico e livre do discurso. Mas havia nelas um prejulgamento que acabou sendo dissipado. Nessa tradição compreendeu-se a linguagem da poesia e a linguagem do discurso artístico a partir do conceito de ornatus. Mas isso significa que a linguagem simples da vida prática representa o exemplo autêntico da linguagem. E, pelo menos desde Vico, Hamann e Herder, a evidência desse enfoque do problema acabou sendo esquecida. Se a poesia representa a linguagem matriz do gênero humano, poderá nos ensinar a respeito da essência da linguagem muito mais do que nos ensinam as ciências que estudam as línguas enquanto idiomas estrangeiros em sua existência alienada nos moldes de meios de comunicação e de informação. Ora, a relação entre poesia e hermenêutica encontra-se em dificuldades por causa do predomínio do jacobismo técnico-industrial, uma vez que a compreensibilidade da obra poética (como a da obra pictórica ou plástica) é considerada um preconceito “clássico”. Parece-me que, atualmente, a tarefa da hermenêutica continua sendo justamente explicar essas figuras de compreensibilidade deficientes (basta recordar as obras de um grupo de investigação sobre hermenêutica, aparecidas nos últimos anos sob o título Poetik und Hermeneutik [Poesia e hermenêutica]). VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
O testemunho mais evidente em favor da aspiração a reconhecer a verdade, também à margem da ciência, é a experiência da arte. É mais fácil recusar as exigências da vita practica, uma vez que em nossa época de fé na ciência e sob a égide da especialização generalizada parece que se renunciou ao próprio direito em favor de levar uma vida “científica”. No que diz respeito à experiência da arte, tampouco faltaram tendências a reclamar sua cientificização (cf. Gehlen e Bense). Graças aos recursos da teoria moderna da informação, é possível de princípio e em boa medida substituir o arsenal da invenção artística com produtos de uma combinação técnica, denunciando a capacidade de juízo dos consumidores contemporâneos da arte (uma capacidade que nunca foi muito elevada). A experiência da arte, cujo calcanhar de Aquiles sempre foi sua convivência com o contemporâneo e que demonstra sua autêntica soberania na simultaneidade (Gleichzeitigkeit) que guarda com a arte sobrevivente de épocas passadas, guarda uma pretensão de verdade que limita a pretensão de validez exclusiva da ciência. Essa pretensão impõe à reflexão filosófica um tema que não se esgota na teoria da ciência. M. Dufrenne, na França, e L. Pareyson, na Itália, renovaram a problemática da estética a partir dessa perspectiva. Em Verdade e método Ius, eu próprio tentei legitimar a reivindicação filosófica da verdade, partindo da experiência da arte, frente à auto-interpretação ingênua da ciência moderna. A ciência da poesia ou a ciência da arte em geral não são as primeiras nem as únicas a integrar a poesia em nossa autocompreensão humana. A poesia, sobretudo, mas também qualquer outra arte que tenha algo a nos dizer, já está incorporada desde sempre em nossa autocompreensão e contribui em sua formação. Esse fato legitima a pretensão da hermenêutica filosófica de abordar essa autocompreensão em suas condições formais e de conteúdo e a elevá-la a conceito. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
Em minhas investigações, coloquei em jogo conceitos “clássicos” como o conceito de mimesis, de “re-presentação”, não para [478] defender ideais classistas, mas para poder ultrapassar o conceito do estético, que corresponde à religião da cultura burguesa. Compreendeu-se isso como uma espécie de recaída em um platonismo, completa e definitivamente superado pela concepção moderna de arte. Mas isso também não me parece tão simples. A teoria do reconhecimento, sobre o que repousa toda representação mimética, não é mais que um primeiro aceno para compreender corretamente a pretensão ontológica da representação artística. O próprio Aristóteles, que derivou a arte, como mimesis, a partir da alegria do conhecimento, caracteriza a diferença entre o poeta e o historiador pelo fato de que aquele não apresenta as coisas como aconteceram, mas como poderiam acontecer. Com isso, atribui à poesia uma generalidade que nada tem a ver com a metafísica substancialista de uma estética classista da imitação. A formulação conceitual de Aristóteles aponta, antes, para a dimensão do possível — e com isso também a da crítica à realidade (podemos sentir um forte sabor dessa crítica na comédia antiga). Apesar de tantas teorias classistas da imitação terem se apoiado em Aristóteles, a legitimidade hermenêutica desses conceitos parece-me incontestável. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
A isso acrescentava-se sobretudo a chegada ao mundo universitário do círculo formado em torno do poeta Stefan George. Foram sobretudo os livros de Friedrich Gundolf, fascinantes e de grande influência, os que criaram uma nova sensibilidade artística no tratamento científico da poesia. Em geral, tudo que nasceu desse círculo, os livros de Gundolf como o espírito de Ernst Bertram sobre Nietzsche, a retórica proletária de Wolters, a transparência cristalina de Salin e de modo especial o ataque enfático de Erich von Kahler ao célebre discurso de Max Weber sobre “a ciência como profissão”, tudo isso constituiu na verdade uma única grande provocação. Eram vozes de uma crítica decidida à cultura. Mas diferentemente de opiniões similares de outros setores, que encontravam uma certa audiência na típica insatisfação de principiantes universitários, entre os que me contava, sentíamos aqui que algo estava realmente acontecendo. Havia um poder por atrás das proclamações geralmente monótonas. Que um poeta como George, com a mágica ressonância de seus versos e a energia de sua pessoa, exercia tão forte influência formativa nas pessoas, dava o que pensar aos ânimos reflexivos e representava um corretivo para o jogo conceitual do estudo filosófico que jamais se conseguiria esquecer completamente. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Ao final da guerra tive que fazer outras coisas como reitor da universidade de Leipzig. Durante anos, não podia nem sonhar em continuar os trabalhos filosóficos. Mas aos finais de semana fui elaborando a maior parte das interpretações sobre poesia que hoje formam o segundo tomo de meus Kleine Schriften. Nunca pensei que poderia trabalhar e escrever com tanta facilidade como fiz naquelas escassas horas, sinal inequívoco de que no trabalho cotidiano improdutivo, político e administrativo, ia se acumulando algo que logo se descarregava. No mais, durante muito tempo escrever representou para mim uma verdadeira tortura. Sempre tinha a desagradável impressão de que Heidegger estava me espreitando por cima dos ombros. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas [501] próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das idéias, com a dialética das idéias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
É exatamente assim, e ninguém poderá negá-lo: a explicação conceitual não pode esgotar o conteúdo de uma produção poética. Isso pode ser reconhecido pelo menos desde Kant, ou inclusive [508] desde o descobrimento da verdade estética (cognitio sensitiva) por Baumgarten. Mas pode ter um especial interesse no aspecto hermenêutico. Frente à poesia, não é suficiente distinguir o elemento estético do teórico e liberá-lo da pressão das regras ou do conceito. A poesia continua sendo uma forma de discurso na qual os conceitos se relacionam entre si. A tarefa hermenêutica consiste então em aprender a determinar o lugar especial que ocupa a poesia no contexto de normatividade da linguagem, contexto em que sempre entra em jogo o elemento conceitual. Como se converte a linguagem em arte? Não formulo essa pergunta unicamente porque a arte da interpretação possa ser vista sempre sob formas do falar e do texto, nem porque na poesia se esteja às voltas com produtos de linguagem, textos. Os produtos poéticos são “produtos” em um sentido novo, são “textos” em sentido eminente. A linguagem aparece aqui em sua autonomia plena. Está e coloca-se de pé por si própria, enquanto que nos outros casos as palavras são superadas pela intenção que as ultrapassa. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Aqui encontra-se um problema hermenêutico verdadeiramente árduo. A poesia comporta um tipo especial de comunicação. Com quem se dá essa comunicação? Com o leitor? Com qual leitor? A dialética de pergunta, que sustenta o processo hermenêutico e que surge do esquema básico do diálogo, sofre aqui uma modificação específica. A recepção e interpretação da poesia parece implicar uma relação dialogai sui generis. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Isso fica claro sobretudo quando estudamos os diversos modos da fala e suas peculiaridades. Não é só a palavra poética que exibe uma rica gama de diferenciações, como, por exemplo, o épico, o dramático, o lírico. Existem outros modos de linguagem nos quais a relação hermenêutica básica de pergunta e resposta se modifica significativamente. Refiro-me às diversas formas de linguagem religiosa, como a proclamação, a oração, o sermão, a bênção. Cito a “lenda” mítica, o texto jurídico e até a linguagem mais ou menos balbuciante da filosofia. Essas modalidades formam uma problemática da hermenêutica aplicada, à qual dediquei-me cada vez mais desde a aparição de Verdade e método I. Penso ter-me aproximado ao tema a partir de dois ângulos: meus estudos sobre Hegel, nos quais abordei o papel do elemento da linguagem na sua relação com o elemento lógico, e poesia hermética moderna, que analisei em um comentário ao Atemkrista.il de Paul Celan. A relação entre filosofia e poesia ocupa o centro dessas investigações. A reflexão sobre esse tema me serve e pode servir-nos a todos para recordar constantemente que Platão não foi platônico nem a filosofia é escolástica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.