Gadamer (VM): platônico

A refutação mítica de Platão ao sofisma dialético, por mais evidente que pareça, não pode satisfazer, todavia, um pensamento moderno. Para Hegel já não há fundamentação mítica da filosofia. Para ele o mito pertence à pedagogia. Em última análise é a razão que se fundamenta a si mesma. E na medida em que Hegel elabora a dialética da reflexão como a automediação total da razão, eleva-se também ele acima do formalismo argumentativo que, de acordo com Platão, chamamos sofístico. Por isso, sua dialética contra a argumentação vazia do entendimento, que ele chama “a reflexão externa”, não é menos polêmica que a do Sócrates platônico. Por esse motivo, a confrontação com ele é tão importante para o problema hermenêutico. Pois a filosofia do espírito de Hegel pretende oferecer uma mediação total da história e do presente. Nela não se trata de um formalismo da reflexão, mas do mesmo tema a que devemos nos ater também nós. Hegel pensou até o final a dimensão histórica, na qual tem suas raízes o problema da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Salta à vista a escassa clareza que tem, aqui, a relação entre experimentar, reter e a unidade da experiência que produziriam ambas as coisas. Evidentemente Aristóteles se apoia aqui num raciocínio que em seu tempo já possuía uma certa [357] cunhagem clássica. O testemunho mais antigo que nos chegou dele é de Anaxágoras, de quem Plutarco nos transmitiu, que o que caracteriza o homem face aos animais se determinaria por empeiria, mneme, sophia e techne. Um nexo parecido surge quando Esquilo destaca, no Prometeu, o papel da mneme, e ainda que sintamos falta de uma ênfase correspondente no mito platônico de Protágoras, Platão mostra, tal como Aristóteles, que isso já é, naquele momento, uma teoria firmada. A permanência de percepções importantes (mone) é claramente o motivo vinculante, através do qual o saber do geral pode elevar-se acima da experiência do individual. Nisso, encontram-se próximos do homem todos os animais que possuem mneme nesse sentido, ou seja, que têm sentido para o passado e o tempo. Precisaria de uma investigação própria para descobrir até que ponto já poderia ser operante o nexo entre retenção (mneme) e linguagem, nessa teoria primitiva da experiência, cujas pegadas estamos rastreando. Pois é claro que a aprendizagem de nomes e da fala acompanha essa aquisição de conceitos gerais, e Temístio ilustra a análise aristotélica da indução diretamente com o exemplo do aprender a falar e da formação das palavras. Seja como for, o que importa é reter que a generalidade da experiência, de que fala Aristóteles, não é a generalidade do conceito nem da ciência. (O círculo de problemas a que nos remete essa teoria poderia ser a da idéia sofistica da formação, pois em todos os nossos testemunhos se detecta uma conexão entre a caracterização do homem, de que se trata, e a organização geral da natureza. E é precisamente esse motivo da confrontação do homem e do animal o que constitui o ponto de partida natural do ideal da formação sofística.) A experiência somente se dá de maneira atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la numa generalidade precedente. Nisso justamente se estriba a abertura básica da experiência para qualquer nova experiência — isso não somente no sentido geral da correção dos erros, mas ao fato de que a experiência está essencialmente dependente de constante confirmação, e, quando esta falta, ela se converte necessariamente em outra diferente (ubi reperitur instantia contradictoria). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Uma das mais importantes intuições que nos medeia a apresentação do Sócrates platônico é que, contrariamente à opinião dominante, perguntar é mais difícil do que responder. Quando os companheiros do diálogo socrático procuram “devolver a bola” a ele, para dissimular respostas às molestas perguntas de Sócrates, reivindicando de sua parte a posição supostamente vantajosa daquele que pergunta, é quando, então, fracassam mais estrepitosamente. Por trás desse motivo comediográfico dos diálogos platônicos não é difícil descobrir a distinção crítica entre discurso autêntico e inautêntico. Aquele [369] que no falar só procura ter razão e não procura a clarividência das coisas, considerará certamente que é mais fácil perguntar que dar resposta. Nisso não se corre o perigo de ficar a dever uma resposta a alguma pergunta. Na verdade, o fracasso do companheiro demonstra que ele pensa saber tudo; não pode perguntar. Para perguntar, temos que querer saber, isto é, saber que não se sabe. E no intercâmbio, ao modo de comédia, de perguntas e respostas, de saber e não saber, descrito por Platão, acaba-se reconhecendo que para todo conhecimento e discurso, em que se queira conhecer o conteúdo das coisas, a pergunta toma a dianteira. Uma conversação que queira chegar a explicar alguma coisa precisa romper essa coisa através de uma pergunta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Para desenvolver uma conversação é necessário, em primeiro lugar, que os interlocutores não passem ao largo um do outro na conversação. É por isso que possui, necessariamente, a estrutura de pergunta e resposta. A primeira condição da arte da conversação é nos assegurarmos de que o interlocutor nos acompanhe no mesmo passo. Isso nos é bem conhecido pelas constantes respostas afirmativas dos interlocutores do diálogo platônico. O lado positivo dessa monotonia é a correctura seqüencial interna com a qual no diálogo prossegue o desenvolvimento do tema. Levar uma conversação quer dizer pôr-se abaixo da direção do tema, acerca do qual se orientam os interlocutores. Requer não abafar o outro com argumentos, mas, pelo contrário, sopesar realmente o peso objetivo da opinião contrária. Por isso, é uma arte do ir experimentando. No entanto, a arte de ir experimentando é a arte de perguntar; pois já vimos que perguntar quer dizer colocar aberto e postar no aberto. Contra a firmeza das opiniões, o perguntar põe em suspenso o assunto com suas possibilidades. Aquele que possui a “arte” de perguntar sabe defender-se do modo de perguntar repressor que a opinião dominante mantém. Aquele que possui esta arte irá, ele próprio, buscar tudo o que possa ser a favor de uma opinião. A dialética consiste não na tentativa de buscar o ponto fraco do que foi dito, mas, antes, em encontrar sua verdadeira força. Por conseqüência não entende, com isso, aquela arte de falar e argumentar que é capaz de tornar forte uma coisa fraca, mas a arte de pensar que é capaz de reforçar o que foi dito, a partir da própria coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A estreita relação que aparece entre perguntar e compreender é a única que dá à experiência hermenêutica sua verdadeira dimensão. Aquele que quer compreender pode ter retrocedido desde a intenção imediata da coisa à intenção de sentido como tal, e considerar esta não como verdadeira, mas simplesmente como algo com sentido, de maneira que a possibilidade de verdade fique em suspenso: esse pôr-em-suspenso é a verdadeira essência original do perguntar. Perguntar permite sempre ver as possibilidades que ficam em suspenso. Por isso não é possível compreender a questionabilidade, desligando-nos de um verdadeiro perguntar, do mesmo modo que é possível compreender uma opinião à margem do próprio opinar. Compreender a questionabilidade de algo é, antes, sempre perguntar. Face ao perguntar cabe um comportamento potencial, de simples [381] teste, porque perguntar não é pôr, mas provar possibilidades. A partir da essência do perguntar torna-se claro o que o diálogo platônico demonstra na sua realização fáctica. Aquele que quer pensar tem de perguntar. Quando alguém diz “aqui caberia uma pergunta”, isto já é uma verdadeira pergunta, disfarçada pela prudência ou cortesia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se a partir desse pano de fundo nos aproximamos agora da disputa “sobre a correctura dos nomes”, tal como se desenvolve no Crátilo, as teorias que entram em debate nele geram, de imediato, um interesse que vai muito mais além de Platão ou de sua própria intenção. Pois as duas teorias que o Sócrates platônico reduz ao fracasso não aparecem sopesadas com todo o peso de sua verdade. A teoria convencionalista reconduz a “correctura” das palavras a um dar nome, que é como batizar as coisas com um nome. Para essa teoria o nome não traz a menor intenção de conhecimento objetivo. Mas Sócrates chama a depor o defensor dessa sóbria perspectiva, na medida em que, partindo da diferença entre logos verdadeiro e logos falso, lhe faz admitir que também os componentes de logos, as palavras (onomata), são verdadeiros ou falsos, e que, portanto, também o nomear, como uma parte do falar, se refere à revelação do ser (ousia) que se produz no falar. Essa é uma [413] afirmação incompatível com a tese convencionalista que já não é difícil deduzir, a partir daqui e inversamente, uma “natureza” que servisse de padrão, tanto para os nomes verdadeiros como para o correto dar nome. O próprio Sócrates reconhecerá que essa compreensão da correção dos nomes conduz a uma embriaguez etimológica e às conseqüências mais absurdas. Não é menos peculiar o tratamento de que se faz objeto a tese contrária, a de que as palavras são por natureza (physei). Se esperássemos que essa contrateoria fosse refutada, por sua vez, pelo descobrimento da incoerência da conclusão sobre a verdade das palavras a partir da do discurso, da qual derivava essa posição (no “Sofista” aparece uma correção desse defeito), sentir-nos-íamos decepcionados. Ao contrário, todo o desenvolvimento se mantém dentro dos pressupostos de princípio da teoria “natural, isto é, no princípio da similitude, e somente o resolve através de uma restrição progressiva: se a “correctura” dos nomes deve repousar no fato de se encontrarem os nomes corretos e adequados às coisas, e estágios de correção, propriamente ali, como ocorre também como qualquer adaptação dessa natureza. E se só o um pouco correto consegue ainda reproduzir em si os contornos (tupos) da coisa, isso pode bastar para que seja utilizável. Tem que ser, todavia, um pouco mais generoso: uma palavra pode ser entendida por hábito ou convenção, ainda que contenha sons que não possuem a menor similitude com a coisa, com o que, todo o princípio da similitude começa a balançar e acaba se refutando com exemplos como o das palavras que designam números. Nessas, não pode ter lugar a menor similitude, porque os números não pertencem ao mundo sensível e móvel, de maneira que para eles só seria plausível o princípio da convenção. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Mas como ocorre sempre em Platão, também aqui a cegueira de Sócrates face ao que ele refuta tem sua razão de ser. O próprio Crátilo não vê com toda a clareza que o significado das palavras não é idêntico às coisas a que se refere, como tampouco, e esta é a base da tácita superioridade do Sócrates platônico, que o logos, o dizer e falar, assim como a abertura das coisas que têm lugar neles, é algo diferente do que se as palavras contivessem uma intenção de significado, e que é aqui onde se estriba a verdadeira possibilidade da linguagem de comunicar o concreto e verdadeiro. O uso incorreto da linguagem, pelos sofistas, procede justamente da ignorância desta genuína possibilidade de verdade da fala (e à qual pertence, como possibilidade contrária, a falsidade essencial, pseudos). Quando o logos é entendido como representação de uma coisa (deloma), ou seja, como a sua abertura, sem distinguir essencialmente essa função de verdade da fala, com respeito ao caráter significativo das palavras, abre-se uma possibilidade de confissão que é própria da linguagem. Pode-se chegar a crer que a coisa é possuída na palavra. Atendo-se à palavra, estaríamos pois no caminho legítimo do conhecimento. Só que então vale também o inverso, onde há conhecimento, a verdade da fala tem de ser construída com a verdade das palavras, como seus elementos. E assim como se pressupõe a “correctura” dessas palavras, ou seja, sua adequação natural às coisas nomeadas por elas, estará permitido também interpretar os elementos dessas palavras, as letras, na perspectiva de sua função de ser cópia das coisas. Essa é a conseqüência a que Sócrates obriga [416] o seu interlocutor a chegar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Já Agostinho desvaloriza expressamente a palavra externa e, com ela, todo o problema da multiplicidade das línguas, se bem que, no entanto, trata dele. A palavra externa, assim como a que somente é reproduzida interiormente, está vinculada a uma determinada língua (língua). O fato de que o verbo se diga em cada língua de outra maneira, somente significa que não se lhe manifesta em seu verdadeiro ser à língua humana. Com um desprezo inteiramente platônico pela manifestação sensível, diz Agostinho: non dicitur, sicut est, sed sicut poíest videri audirive per corpus. A “verdadeira” palavra, o verbum cordis, é inteiramente independente dessa manifestação. Não é nem prolativum nem cogitativum in similitudine soni. Essa palavra interna é, pois, o espelho e a imagem da palavra divina. Quando Agostinho e a escolástica tratam o problema do verbo para ganhar meios conceituais para o mistério da trindade, seu tema é exclusivamente essa palavra interior, a palavra do coração e sua relação com a intelligentia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Uma olhadela à sua pré-história, em particular à teoria da formação dos conceitos na academia platônica, nos poderá confirmá-lo. Já tínhamos visto que a exigência platônica de elevar-se acima dos nomes pressupõe, por princípio, que o cosmos das idéias é independente da linguagem. Mas, na medida em que essa elevação sobre os nomes se produz segundo as idéias e se determina como dialética, isto é, como olhar juntos para a unidade do aspecto, como extrair um comum dos fenômenos mutáveis, segue de fato a direção natural na qual a linguagem se forma a si mesma. Elevar-se sobre os nomes quer dizer meramente que a verdade da coisa não está posta no próprio nome. Não significa que o pensamento pode prescindir de usar nome e logos. Ao contrário, Platão sempre reconheceu que há necessidade dessas mediações do pensamento, mesmo que elas tenham de ser consideradas como sempre superáveis. A idéia, o verdadeiro ser da coisa, não se conhece a não ser passando por essas mediações. Mas existe um conhecimento da própria idéia, como determinada e individual? A essência das coisas não é um todo, da mesma maneira que o é a linguagem? Assim como as palavras individuais somente alcançam seus significados e sua relativa univocidade na unidade da fala, assim também o conhecimento verdadeiro da essência só pode ser alcançado no todo da estrutura relacional das idéias. Essa é a tese do Parmênides platônico. Mas isso suscita a pergunta: Para definir mesmo que seja uma única idéia, isto é, para poder destacá-la, no que é, de todo o resto, não se tem de saber já o todo? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Se se pensa o espírito humano dessa maneira, referido como uma cópia do modelo divino, pode-se então admitir a margem de variação das línguas humanas. Tal como no começo, na discussão sobre a investigação analógica, na academia platônica, também ao final da discussão medieval sobre os universais se pensa uma verdadeira proximidade entre palavra e conceito. Entretanto, as conseqüências relativistas que trariam o pensamento moderno para as concepções do mundo, a partir da variação das línguas, é algo muito distante dessa concepção. Em meio a toda diferença, conserva-se a coincidência, e é esta que interessa ao platônico cristão. O essencial para ele é a referência à coisa, que mantém toda língua humana, e não tanto a vinculação do conhecimento humano da coisa à linguagem. Esta representa somente uma abertura prismática em que aparece a verdade una. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo [12] sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a idéia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1.

Com estas palavras, o Sócrates platônico adverte um jovem do perigo de confiar-se sem reservas aos ensinamentos de um célebre mestre de sabedoria daquela época. Percebe que o saber — constituído de logoi, de discursos — ocupa uma posição ambígua entre a sofística e a verdadeira filosofia. Reconhece também o significado especial concedido aqui à decisão correta. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 3.

Todo enunciado tem uma motivação. Todo enunciado tem pressupostos que ele não enuncia. Somente quem pensa também esses pressupostos pode dimensionar realmente a verdade de um enunciado. Ora, afirmo que a última forma lógica dessa motivação de todo enunciado é a pergunta. Não é o juízo mas a pergunta que tem o primado na lógica, como já o testemunham historicamente o diálogo platônico e a origem dialética da lógica grega. O primado da pergunta frente ao enunciado significa, porém, que o enunciado é essencialmente resposta. Não há nenhum enunciado que não seja uma espécie de resposta. Assim, não pode haver compreensão de um enunciado, se essa não se pautar unicamente na compreensão da pergunta a que o enunciado responde. Falando assim, isso parece óbvio e todo mundo o sabe a partir de sua própria experiência de vida. Quando alguém faz uma afirmação que não compreendemos, procuramos saber como ele chegou a isto. Qual é a pergunta que ele se fez para poder formular este enunciado como resposta? E se for um enunciado que deva ser verdadeiro, então nós mesmos temos que tentar formular a pergunta em relação à qual o enunciado quer ser uma resposta. Por certo, nem sempre é fácil encontrar a pergunta a que o enunciado responde. E não é fácil sobretudo porque a pergunta está longe de ser um primeiro elemento simples para o qual podemos transferir-nos aleatoriamente. Isto porque toda pergunta é ela mesma uma resposta. Esta é a dialética em que nos enredamos aqui. Toda pergunta tem uma motivação. Também o seu sentido jamais pode ser plenamente encontrado nela [53] própria. Aqui encontra-se realmente a raiz dos problemas, acima mencionados, do alexandrinismo que ameaçam nossa cultura científica, quando essa dificulta a originalidade do perguntar. O decisivo, aquilo que na ciência constitui a natureza do investigador é isto: ver as perguntas. Ver perguntas significa, porém, poder-romper com uma camada, como que fechada e impenetrável, de preconceitos herdados, que dominam todo nosso pensamento e conhecimento. O que perfaz a essência do investigador é a capacidade de ruptura que possibilita ver, assim, novas perguntas e encontrar novas respostas. Todo enunciado tem seu horizonte de sentido no fato de ter surgido de uma situação de pergunta. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

O problema da liberdade parece ser um dos que preenchem perfeitamente a condição prévia de ser um problema filosófico idêntico. A condição prévia de ser um problema filosófico consiste na verdade em ser insolúvel. O problema deve ser de tal modo abrangente e fundamental que volta a se instaurar sempre de novo, uma vez que parece não haver nenhuma “solução” capaz de resolvê-lo totalmente. Já Aristóteles descreveu a essência do problema dialético, afirmando que são as questões grandes e insolúveis que se devem lançar ao adversário numa disputa verbal. A pergunta, porém, é: haverá “o” problema da liberdade? A questão da liberdade será realmente sempre a mesma em todos os tempos? O que dizer daquele mito profundo da República de Platão, segundo o qual a própria alma escolhe, num estado anterior ao nascimento, a sorte para sua vida, de tal modo que se queixa das conseqüências de sua escolha recebe como resposta: “aitia helemenou, Tens culpa na tua escolha”? Terá o mesmo sentido que o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a filosofia moral estóica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

O diálogo platônico e a conversação do Sócrates platônico constituem o modelo inamissível dessa arte de romper conceitos que se tornaram rígidos. Desfazem-se os conceitos normativos que se movimentam no reino do óbvio, atrás dos quais movimenta-se uma realidade inteiramente descompromissada, que pretende obter vantagens de poder. É quando se dá uma reatualização de nossa autocompreensão e tomamos consciência do que realmente se tem em mente nos conceitos normativos de nossa auto-interpretação moral-política, que somos levados a trilhar o caminho do pensamento filosófico. Dessa forma, também para nós, não está em questão uma investigação histórico-conceitual como tal, mas o cultivo de uma disciplina no uso de nossos conceitos, a qual se pode aprender da investigação da história dos conceitos, e que pode proporcionar uma autêntica força vinculativa ao nosso pensar. Segue-se, porém, que o ideal da linguagem filosófica não pode ser [91] uma nomenclatura terminológicamente unívoca e desligada da vida da linguagem, mas a religação do pensar conceitual à linguagem e ao todo da verdade que nela está presente. No falar real ou no diálogo, e em nenhum outro lugar, a filosofia tem sua verdadeira pedra de toque, essa que é sua, propriamente sua. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Aqui vemo-nos remetidos diretamente à Antigüidade e à relação específica entre mito e logos, que se encontra no início do pensamento grego. O esquema corrente do Iluminismo, segundo o qual o processo de desencantamento do mundo leva necessariamente do mito para o logos, parece-me um preconceito moderno. Tomando por base esse esquema, torna-se incompreensível, p. ex., como a filosofia ática pôde se opor às tendências do Iluminismo grego e estabelecer uma reconciliação secular entre a tradição religiosa e o pensamento filosófico. Devemos a Gerhard Krüger o magistral esclarecimento das pressuposições religiosas do filosofar grego e sobretudo platônico. A história de mito e logos nos primórdios do mundo grego tem uma estrutura bem mais complexa do que faz supor o esquema do Iluminismo. Frente a essa realidade podemos compreender a grande desconfiança que alimentava a investigação científica da Antigüidade frente ao valor religioso das fontes do mito e a preferência que demonstra pelas formas estáveis da tradição no culto. É que a capacidade de transformação inerente ao mito, sua abertura para sempre novas interpretações por parte dos poetas, acaba obrigando a reconhecer que se trata de uma falsa questão perguntar em que sentido esse mito antigo era objeto de “crença” e se, uma vez tendo entrado no jogo poético, faz sentido se acreditar no mito. Na verdade, o mito está tão intimamente aparentado com a consciência filosófica, que mesmo a explicação filosófica do mito na linguagem do conceito não acrescenta nada de essencialmente novo àquela alternância viva entre descobrimento (entdeckung) e velamento (verhüllung), entre temor reverente e liberdade de espírito, que acompanha toda a história do mito grego. Devemos ter isso em mente se quisermos compreender corretamente o conceito de mito implícito no programa de desmitologização de Bultmann. O que Bultmann chama de imagem mítica do mundo e seu contraste com a imagem científica de mundo, que se nos apresenta como verdadeira, parece não ter o caráter definitivo que se lhe atribuiu no debate sobre esse programa. No fundo, a relação de um teólogo cristão com a tradição bíblica não é muito diferente da relação de um grego com seus mitos. A formulação casual e em certo sentido ocasional do conceito de desmitologização proposta por Bultmann, na verdade a suma de toda sua teologia exegética, pode ter tudo, menos um sentido iluminista. O que o aluno de ciência histórica da Bíblia procura na tradição bíblica, antes de qualquer coisa é o que se afirma contra todo Iluminismo histórico, ou seja, o que constitui o verdadeiro suporte do anúncio, do querigma, o que representa o verdadeiro chamado da fé. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

A pergunta pelas formas de ordenamento de nosso mundo, tanto o de hoje como o futuro, coloca-se como uma pergunta puramente científica: Que podemos fazer? Como podemos organizar as coisas? Como se apresentam as bases sobre as quais podemos [160] planejar? Que devemos modificar e observar para que a administração de nosso mundo se torne cada vez melhor e menos conflituosa? A idéia de um mundo dotado de uma administração perfeita parece ser o ideal negado justamente aos países mais avançados, em virtude de sua concepção de vida e de suas convicções políticas. É interessante notar que esse ideal se apresenta como o ideal da administração perfeita e não como um ideal de futuro com um conteúdo definido, como por exemplo o estado da justiça, base para a utopia do Estado platônico, ou como o Estado mundial, formado pelo predomínio de um determinado sistema político, de um povo ou uma raça sobre outros sistemas, povos e raças. A base do ideal de administração é uma idéia de ordem que não comporta nenhum conteúdo específico. O objetivo declarado de toda administração não é o saber sobre que tipo de ordem deve dominar, mas saber que tudo deve ter sua ordem. Por isso, o ideal da neutralidade pertence essencialmente à idéia de administração. O que se busca é o bom funcionamento como um valor em si. É bem provável que o fato de os grandes impérios mundiais de hoje poderem se encontrar e alcançar um equilíbrio no terreno neutro de um tal ideal administrativo não chegue a representar nem sequer uma esperança utópica. A partir disso, torna-se óbvio considerar a idéia de uma administração mundial como a forma de ordem do futuro. Nela a objetivação da política encontraria sua verdadeira perfeição. Será então que o ideal formal da administração mundial representa a realização da idéia de ordem mundial? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher, esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de conversação uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste [210] essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconseqüente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Rilke). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz, admirada também por Goethe, foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

Como platônico, gosto de apreciar as cenas inesquecíveis dos diálogos de Sócrates, sobretudo aquelas em que este discute com os sofistas. Por fim, Sócrates acaba levando-os ao desespero com suas perguntas, até que, já não podendo suportar a situação incômoda, reivindicam o papel de interrogador que parece tão [228] gratificante. E o que acontece então? Não sabem perguntar nada. Não lhe ocorre perguntar nada que valha a pena investigar ou procurar decididamente uma resposta. VERDADE E METODO II OUTROS 17.

Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

No Teeteto, quando Platão apresenta a tese de que o conhecimento é exclusivamente percepção sensível, seguindo a Collingwood, como leitor atual, não consigo reconhecer o contexto que o levou a essa tese. No meu modo de pensar, creio que o contexto para isso é outro: a discussão gerada pelo sensualismo moderno. Essa idéia também não sofre nenhum prejuízo pelo fato de tratar-se de um “pensamento”. Um pensamento pode ser inserido em diversos contextos sem perder sua identidade (315). Gostaríamos de lembrar a Collingwood, aqui, a crítica à discussão sobre o statement de Oxford, em sua própria “Logic of Question and answer”. Creio, na verdade, que só será possível a reprodução do pensamento de Platão, quando se tiver compreendido o verdadeiro contexto platônico (o de uma teoria matemática da evidencia, que pelo que me consta ainda não tem total clareza sobre o modo de ser inteligível do matemático). Será possível compreendermos esse contexto se não suspendermos expressamente os preconceitos do sensualismo moderno? VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Essa questão tem conseqüências hermenêuticas gerais. Trata-se do conceito da intenção do autor. Não vou levar em conta a posição auxiliar que a jurisprudência poderia oferecer aqui com sua doutrina da interpretação da lei. Quero apenas mencionar o fato de que o diálogo platônico representa o paradigma de uma multiplicidade de significados e relações, das quais o próprio Strauss extrai coisas importantes. Será que a verdade mimética, presente no decurso dos diálogos socráticos em Platão, deve ser tão subestimada a ponto de [422] já não vermos essa multiplicidade na própria verdade, e até no próprio Sócrates? Será que um autor sabe realmente e em todas as frases o que tem em mente? O capítulo espetacular da auto-interpretação filosófica — estou pensando, por exemplo, em Kant, em Fichte ou em Heidegger — parece-me falar uma linguagem evidente. Se fosse correta a alternativa apresentada por Strauss, segundo a qual um autor filosófico deve ter uma opinião unívoca ou então estará confuso, temo que em muitas questões de interpretação controversa caberia uma única conseqüência hermenêutica, a saber, reconhecer como fatalmente dado o estado da confusão. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers formulou o caráter racional desse saber com a idéia de uma elucidação da existência enxertada nas [428] situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação-limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do “estar à mão” (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf-etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da “pre-sença” humana como “compreensão do ser”, quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma “hermenêutica da facticidade”. Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito “platônico” de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de “ser simplesmente dado”, carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.

O que nos fascinou foi sobretudo a intensidade com que Heidegger fazia reviver a filosofia grega. Quase não tínhamos consciência de que essa filosofia grega representava muito mais um contraponto do que um paradigma de seu próprio perguntar. A “destruição” da metafísica por Heidegger, porém, não era aplicável somente ao idealismo da consciência da época moderna, mas também a suas origens na metafísica grega. Sua crítica radical questionou tanto o caráter cristão da teologia quanto a cientificidade da filosofia. Frente à inanidade do filosofar acadêmico, que se movia numa linguagem kantiana ou hegeliana degradada e pretendia completar ou superar sempre de novo o idealismo transcendental, Platão e Aristóteles apareciam de imediato como aliados de todo aquele que tinha perdido a fé nos jogos de sistemas da filosofia acadêmica, inclusive nesse sistema aberto de problemas, categorias e valores que orientava a investigação fenomenológica das essências ou a análise categorial baseada na história dos problemas. Os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a idéia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra [485] sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Interessei-me de imediato por Hegel — pela mesma razão — , dentro do que pude compreender e justamente porque só o compreendi até certo ponto. A sua Lógica, sobretudo, tinha para mim algo daquela inocência grega e me ofereceu — junto com as tão geniais quanto mal editadas Lições sobre a história da filosofia — a ponte para uma compreensão não histórica, mas realmente especulativa do pensamento platônico e aristotélico. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Isso eu não o sabia desde o princípio. Pouco a pouco cheguei à convicção de que aquele Aristóteles tão próximo, cuja precisão conceitual estava insuspeitavelmente unida à intuição, à experiência e ao contato com a realidade, simplesmente não fora o pioneiro a expressar o novo pensamento. Heidegger seguiu, antes, o princípio do Sofista platônico de fortalecer o adversário, e parecia ser quase um Aristóteles redivivas que o atraía globalmente com toda a força da intuição e a audácia de seus conceitos originais. Mas essa identificação a que nos induziam as interpretações de Heidegger era para mim um enorme desafio. Dei-me conta de que meus estudos anteriores, que me levaram por muitos terrenos, sobretudo a ciência da literatura e a história da arte, no campo da filosofia antiga não serviam para nada, campo que servira de base para minha dissertação. Comecei assim um novo estudo planificado da filologia clássica (sob a condução de Paul Friedländer), dando preferência, além dos filósofos gregos, sobretudo a Píndaro, iluminado pelo pensamento de Hölderlin, à época já acessível… Estudei também retórica, cuja função complementar da filosofia pressenti então, e que me acompanhou até a elaboração de minha hermenêutica filosófica. Devo a esses estudos, definitivamente, minha resistência ao forte apelo de identificar-me com o pensamento de Heidegger. Permanecer próximo dos gregos, embora sabendo de sua heterogeneidade, descobrir em sua diferença verdades que estavam esquecidas e talvez continuassem exercendo sua influência de maneira inadvertida, foi para mim o Leitmotiv mais ou menos expresso de todos os meus estudos. Isso porque a interpretação dos gregos por Heidegger implicava um problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo. Por aquela época, para o objetivo a que Heidegger se propunha, era possível, sem dúvida, opor ao conceito existencial da “pre-sença” o puro “ser simplesmente dado” como conceito contrário e derivado extremo, sem distinguir entre a idéia grega do ser e o “objeto dos conceitos das ciências naturais”. Mas isso continha uma provocação, e eu me deixei [487] levar por ela e, sob o estímulo de Heidegger, acabei aprofundando-me na física aristotélica e na gênesis da ciência moderna, sobretudo em Galileu. É possível que publique ainda fragmentos de um comentário incompleto sobre a Física. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

A história da ciência grega difere evidentemente da história da ciência moderna. No período platônico foi possível religar o caminho seguido pelo esclarecimento, pela investigação e pela explicitação do mundo com os esquemas tradicionais da religião e da visão grega da vida. Foram Platão e Aristóteles, e não Demócrito, os que presidiram a história da ciência na Antigüidade tardia, e de modo algum foi uma história de decadência científica. A ciência helenística, como é chamada hoje, não precisou se defender da “filosofia” e seus postulados, mas alcançou sua emancipação justamente através da filosofia grega, através do Timeu e da Física aristotélica, como procurei demonstrar em um trabalho intitulado Gibt es die Materie? (Existirá a matéria?). Na verdade, mesmo o projeto oposto representado pela física de Galileu e de Newton determina-se a partir daquela. Um trabalho sobre Antike Atomtheorie (Teoria atômica antiga, 1934) foi o único fragmento que publiquei então desse grupo de estudos. Buscava desfazer os preconceitos infantis que a ciência moderna alimenta a respeito de Demócrito, o grande desconhecido. A grandeza de Demócrito nada perderia com isso. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas [501] próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das idéias, com a dialética das idéias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

A história da metafísica poderia ser escrita também como uma história do platonismo. Suas etapas seriam Plotino e Agostinho, Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa, Leibniz, Kant e Hegel; e, por fim, todos aqueles esforços intelectuais do Ocidente que perguntam pelo ser substancial da idéia e em geral pela teoria da [503] substância da tradição metafísica. Mas o primeiro platônico dessa série não seria outro que o próprio Aristóteles. O objetivo de meus estudos nesse campo seria fazer crer nessa tese tanto frente à instância da crítica aristotélica à doutrina das idéias como frente à metafísica da substância na tradição ocidental. E eu não estaria sozinho. Houve Hegel. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

E inevitável que a linguagem da filosofia não se mova em sistemas de enunciados cuja formalização lógica e exame crítico, baseados na dedução lógica e na univocidade, poderiam aprofundar o conhecimento filosófico. Essa linguagem jamais encontra seu objeto dado de antemão, mas ela própria deve construí-lo. Esse fato não provocará nenhuma “revolução”, nem sequer a revolução proclamada pela análise do ordinary language. Vamos ilustrar esse fato com um exemplo. Analisar com recursos lógicos as argumentações que figuram num diálogo platônico, mostrar suas incoerências, preencher suas lacunas, detectar conclusões falsas etc. pode conter um caráter esclarecedor. Mas será que desse modo aprendemos a ler Platão? Aprendemos a apropriar-nos de suas perguntas? Será que conseguimos aprender dele, em vez de confirmar nossa superioridade sobre ele? O que é dito sobre Platão é aplicável mutatis mutandis a qualquer filosofia. Parece-me que Platão definiu isso, de uma vez por todas, na Sétima Carta: os recursos do filosofar não são o próprio filosofar. O rigor lógico ainda não é tudo. Não significa que a lógica não possui sua validez evidente. Mas limitar-se ao aspecto lógico reduz o horizonte do questionamento a uma verificabilidade formal, eliminando assim a abertura ao mundo, que se produz em nossa experiência de mundo interpretada na linguagem. Essa é uma constatação hermenêutica pela qual creio coincidir de algum modo com o último Wittgenstein. Ele reanalisou os preconceitos nominalistas de seu Tractatus a fim de reconduzir toda a linguagem aos contextos da práxis de vida. De certo, o resultado dessa redução foi para ele amplamente negativo. Consistiu na exclusão de todas as perguntas indemonstráveis da metafísica e não na sua recuperação, por mais indemonstráveis que sejam, escutando-as desde a constituição de nosso ser-no-mundo que se dá na linguagem. Para esse fim, da palavra dos poetas podemos aprender muito mais do que do próprio Wittgenstein. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Isso fica claro sobretudo quando estudamos os diversos modos da fala e suas peculiaridades. Não é só a palavra poética que exibe uma rica gama de diferenciações, como, por exemplo, o épico, o dramático, o lírico. Existem outros modos de linguagem nos quais a relação hermenêutica básica de pergunta e resposta se modifica significativamente. Refiro-me às diversas formas de linguagem religiosa, como a proclamação, a oração, o sermão, a bênção. Cito a “lenda” mítica, o texto jurídico e até a linguagem mais ou menos balbuciante da filosofia. Essas modalidades formam uma problemática da hermenêutica aplicada, à qual dediquei-me cada vez mais desde a aparição de Verdade e método I. Penso ter-me aproximado ao tema a partir de dois ângulos: meus estudos sobre Hegel, nos quais abordei o papel do elemento da linguagem na sua relação com o elemento lógico, e poesia hermética moderna, que analisei em um comentário ao Atemkrista.il de Paul Celan. A relação entre filosofia e poesia ocupa o centro dessas investigações. A reflexão sobre esse tema me serve e pode servir-nos a todos para recordar constantemente que Platão não foi platônico nem a filosofia é escolástica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.