A realidade de ser do quadro se fundamenta, segundo isso, na relação ontológica de quadro original e cópia. Porém, o que importa é justamente ver que a relação conceitual platônica de cópia e quadro original não esgota a valência do ser daquilo que denominamos quadro. Parece-me que não se pode caracterizar (146) melhor seu modo de ser, do que através do conceito sacral-jurídico, ou seja, através do conceito de re-presentação (Repräsentation ). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Nesse ponto de nossa investigação impõe-se um contexto problemático que já apontamos em mais de uma ocasião. Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida cada vez de uma maneira diferente, então — visto sob o ponto de vista lógico — trata-se da relação entre o geral e o particular. Compreender é então um caso especial da aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade que Aristóteles não aborda o problema hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética. Mas é precisamente isto que nos interessa aqui, que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser. Através de sua limitação do intelectualismo socrático-platônico na questão do bem, Aristóteles funda, como se sabe, a ética como disciplina autônoma frente à metafísica. Criticando como uma generalidade vazia a idéia platônica do bem, contrapõe-lhe a questão pelo humanamente bom, aquilo que é bom para o ser humano . Na linha dessa crítica, torna-se exagerado equiparar virtude e saber, arete e logos, como ocorria na teoria socrático-platônica das virtudes. Aristóteles recoloca-os na sua verdadeira medida, mostrando que o elemento que sustenta o saber ético do homem é a orexis, a “ambição”, e sua elaboração em uma atitude firme (hexis). O conceito da ética carrega já no seu nome a relação com essa fundamentação aristotélica da arete, no exercício e no ethos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O atual problema é o de saber como pode se dar um saber filosófico sobre o ser moral do homem. Se o que é bom só aparece na concreção da situação prática em que ele se encontra, então o saber ético deve oferecer, para se haver com a situação concreta, o que é que esta exige dele ou, dito de outro modo, aquele que atua deve ver a situação concreta à luz do que se exige dele em geral. Negativamente isto significa que um saber geral que não saiba aplicar-se à situação concreta permanece sem sentido, e até ameaça obscurecer as exigências concretas que emanam de uma determinada situação. Esta conjuntura, que expressa a própria essência da reflexão ética, não somente converte uma ética filosófica em um problema metódico difícil, mas ao mesmo tempo dá relevância moral ao problema do método. Face à idéia do bem, determinada pela teoria platônica das idéias, Aristóteles enfatiza o fato de que, no terreno do problema ético não se pode falar de uma exatidão, de nível máximo, como a que fornece o matemático. Esse requisito de exatidão, na verdade, estaria fora de lugar. Aqui se trata tão-somente de tornar visível o perfil das coisas e ajudar, de certo modo, a consciência moral com este esboço do mero perfil. Mas o problema de como deve ser possível esta ajuda já é um problema moral. Pois faz parte dos traços essenciais do fenômeno ético, que aquele que atua deve saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada. Portanto, o que não pretenda intrometer-se no lugar da consciência moral, nem tampouco ser um conhecimento moral a esclarecer-se a si mesma graças a esse esclarecimento do perfil dos diversos fenômenos. Naquele que há de receber essa ajuda — o ouvinte da lição aristotélica — isto supõe um montão de coisas. Tem de possuir tanta maturidade existencial, que possa não esperar da indicação que se lhe oferece mais do que esta pode e deve dar. Ou, formulado positivamente: por educação e exercício ele já deve ter desenvolvido uma determinada atitude em si mesmo, e seu empenho constante deve ser mantê-lo ao largo das situações concretas de sua vida e conservá-la (319) através de um comportamento correto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
a) O modelo da dialética platônica VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da conversação. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Em si, todo escrito levanta a pretensão de ser alentado por si mesmo no lingüístico, e esta pretensão de autonomia de sentido vai tão longe que inclusive uma leitura autêntica, por exemplo, a de um poema pelo seu autor se torna questionável, no momento em que a intenção dos ouvintes se afasta do ponto a que nós, como aqueles que compreendem, realmente estamos orientados. Posto que o que importa é a comunicação do verdadeiro sentido de um texto, sua interpretação se encontra submetida a uma norma que se pauta no assunto em questão. E esta a exigencia que coloca a dialética platônica, quando procura fazer valer o logos como tal, e deixa, às vezes, para trás o seu companheiro real de diálogo no curso desse empenho. E mais, a debilidade específica da escrita, sua maior necessidade de auxílio, em comparação com o falar vivo, tem como reverso o fato de que faz sobressair a tarefa hermenêutica da compreensão com dobrada clareza. Tal como na conversação, também aqui a compreensão tem que tentar fortalecer o sentido do que foi dito. O que se diz no texto tem de ser despojado de toda a contingência que — lhe é inerente, e entendido na plena idealidade em que unicamente tem seu valor. Por isso a fixação por escrito permite que o leitor compreensivo possa erigir-se em advogado de sua pretensão de verdade, precisamente porque separa por completo o sentido do enunciado aquele que enuncia. É assim como o leitor experimenta, em sua validez, o que lhe fala e o que ele compreende. Por sua vez, aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma opinião estranha: já será sempre uma possível verdade. Isto é o que emerge em virtude da liberação do dito com respeito a quem o disse e em virtude do status de duração que lhe confere a escrita. E o fato de que pessoas pouco acostumadas à leitura nunca cheguem inteiramente à suspeita de que algo escrito possa ser falso, tem, como já vimos , uma razão hermenêutica profunda, pois para eles todo escrito é uma espécie de documento que se avaliza a si mesmo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Se a filosofia grega se obstina em não perceber essa relação ente palavra e coisa, entre falar e pensar, o motivo é que o pensamento tinha que defender-se da estreita relação entre palavra e coisa em meio à qual vive o homem falante. O domínio dessa língua, “a mais falável de todas” (Nietzsche), sobre o pensamento era tão intenso que a filosofia teve de dedicar seu (422) mais entranhado empenho à tarefa de libertar-se dele. Por isso, os filósofos gregos combateram, desde o princípio, o desvio e extravio do pensamento no “onoma” e se mantiveram, frente a isso, na idealidade que a própria linguagem realiza continuamente. Isso vale para Parmênides, que pensava a verdade da coisa partindo do logos, e vale plenamente a partir da mudança de rumo platônica na direção dos “discursos”, seguindo também pela orientação aristotélica das formas do ser nas formas da enunciação (schemata tes kategorias). Porque aqui, o logos era considerado determinado por sua orientação para o eidos, o ser próprio da linguagem só podia ser pensado como extravio, e o pensamento tinha que se esforçar em conjurá-lo e dominá-lo. A crítica da correctura dos nomes, realizada no Crátilo, representa o primeiro passo numa direção que desembocaria na moderna teoria instrumentalista da linguagem e no ideal de um sistema de signos da razão. Comprimido entre a imagem e o signo, o ser da linguagem só poderia acabar sendo nivelado em um puro ser-signo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Com esse conceito neoplatônico, Tomás procura descrever o caráter processual da palavra interior, tão bem como o mistério da trindade. Desse modo, convalida-se algo que não estava contido na filosofia platônica do logos. O conceito da emanação contém, no neoplatonismo, muito mais do que o que seria o fenômeno físico do fluir como processo de movimento. O que se introduz é, sobretudo, a imagem do manancial. No processo da emanação, aquilo de que algo emana, o um, não é nem despojado nem empequeñecido, pelo fato da emanação. Isso vale também para o nascimento do Filho a partir do Pai, o qual não consome com isso nada de si mesmo, mas assume algo de novo em si. Isso vale também para o surgimento (Hervorgehen) espiritual que se realiza no processo do pensar, do dizer-se. Este surgimento é ao mesmo tempo um perfeito permanecer em si. Se a relação divina de palavra e intelecto pode ser descrita de maneira que a palavra tenha sua origem no intelecto, mas não parcialmente e sim por inteiro (totaliter), do mesmo modo vale para nós que aqui uma palavra surge totaliter de outra, o que significa, porém, que tem sua origem no espírito, tal qual a conseqüência da conclusão, a partir das premissas (ut conclusio ex principiis). O processo e surgimento do pensar não é, pois, um processo de transformação (motus), não é uma transição da potência ao ato, mas um surgir ut actus ex actu: a palavra não se forma quando se vê concluído o conhecimento, falando em termos escolásticos, uma vez que a informação do intelecto é encerrada pela species, mas é a própria realização do conhecimento. Nessa medida a palavra é simultânea com essa formação (formatio) do intelecto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Uma olhadela à sua pré-história, em particular à teoria da formação dos conceitos na academia platônica, nos poderá confirmá-lo. Já tínhamos visto que a exigência platônica de elevar-se acima dos nomes pressupõe, por princípio, que o cosmos das idéias é independente da linguagem. Mas, na medida em que essa elevação sobre os nomes se produz segundo as idéias e se determina como dialética, isto é, como olhar juntos para a unidade do aspecto, como extrair um comum dos fenômenos mutáveis, segue de fato a direção natural na qual a linguagem se forma a si mesma. Elevar-se sobre os nomes quer dizer meramente que a verdade da coisa não está posta no próprio nome. Não significa que o pensamento pode prescindir de usar nome e logos. Ao contrário, Platão sempre reconheceu que há necessidade dessas mediações do pensamento, mesmo que elas tenham de ser consideradas como sempre superáveis. A idéia, o verdadeiro ser da coisa, não se conhece a não ser passando por essas mediações. Mas existe um conhecimento da própria idéia, como determinada e individual? A essência das coisas não é um todo, da mesma maneira que o é a linguagem? Assim como as palavras individuais somente alcançam seus significados e sua relativa univocidade na unidade da fala, assim também o conhecimento verdadeiro da essência só pode ser alcançado no todo da estrutura relacional das idéias. Essa é a tese do Parmênides platônico. Mas isso suscita a pergunta: Para definir mesmo que seja uma única idéia, isto é, para poder destacá-la, no que é, de todo o resto, não se tem de saber já o todo? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Com esse dado concorda também o fato de que Aristóteles confira sempre maior importância ao modo como se torna visível, no falar sobre as coisas, a ordem destas. (As “categorias” — e não somente o que em Aristóteles recebe expressamente esse nome — são formas de enunciação). A conceituação que a linguagem realiza não somente é empregada pelo pensamento filosófico, mas até ampliada por este, em determinadas direções. Já antes nos havíamos reportado ao fato de que a teoria aristotélica da formação dos conceitos, a teoria da epagogé, podia ser ilustrada com o aprendizado do falar pelas crianças. E de fato, embora também para Aristóteles seja fundamental a desmitificação platônica da fala — motivo decisivo de sua própria elaboração da “lógica” — e ainda que ele próprio tivesse o maior empenho em copiar a ordem da essência, lançando mão conscientemente da lógica da definição, e em particular na descrição classificatória da natureza, assim como em livrá-la de todos os acasos lingüísticos, ele mesmo fica atado por completo à unidade de linguagem e pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
É evidente que essa rememoração não nos faz falta, quando se observa a história da filosofia. Já vimos como no pensamento medieval a relevância teológica do problema lingüístico aponta, uma ou outra vez, para a unidade de pensar e falar e traz assim ao primeiro plano um momento que a filosofia grega clássica todavia não tinha pensado assim. O fato de que a palavra seja um processo, em que chega à sua plena expressão a unidade do intencionado — como é pensado na especulação sobre o verbo — é, face à dialética platônica do uno e do múltiplo, algo verdadeiramente novo. Para Platão o logos se movia, ele mesmo, no interior dessa dialética, e não era nada além do que o padecer a dialética das idéias. Nisso não há um verdadeiro “problema da interpretação”, na medida em que os meios da mesma, a palavra e o discurso, estão sendo constantemente superados pelo espírito que pensa. Diferentemente disso, encontramos que na especulação trinitaria o processo das pessoas divinas encerra em si o questionamento neoplatônico sobre o desenvolvimento, isto é, o surgir a partir do uno, com o que se faz justiça, pela primeira vez, ao caráter processual da palavra. Não obstante, o problema da linguagem somente poderia irromper com toda a sua força, quando a mediação escolástica de pensamento cristão e filosofia aristotélica se completasse com um novo momento, que daria uma mudança de rumo positiva à distinção entre o pensamento divino e humano, mudança que alcançaria na idade moderna a maior significação. É o comum do criacional. E, na minha opinião, é esse o conceito que caracteriza mais adequadamente a posição de Nicolau de Cusa, que nos últimos tempos está sendo estudada tão intensamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se se pensa o espírito humano dessa maneira, referido como uma cópia do modelo divino, pode-se então admitir a margem de variação das línguas humanas. Tal como no começo, na discussão sobre a investigação analógica, na academia platônica, também ao final da discussão medieval sobre os universais se pensa uma verdadeira proximidade entre palavra e conceito. Entretanto, as conseqüências relativistas que trariam o pensamento moderno para as concepções do mundo, a partir da variação das línguas, é algo muito distante dessa concepção. Em meio a toda diferença, conserva-se a coincidência, e é esta que interessa ao platônico cristão. O essencial para ele é a referência à coisa, que mantém toda língua humana, e não tanto a vinculação do conhecimento humano da coisa à linguagem. Esta representa somente uma abertura prismática em que aparece a verdade una. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Somente agora chegamos, por fim, ao verdadeiro solo e fundamento do grande enigma dialético do uno e do múltiplo, que deu o que fazer a Platão, como antagonista do logos, e que experimentou uma tão misteriosa confirmação na especulação trinitaria da Idade Média. Era somente um primeiro passo, quando Platão se deu conta de que a palavra da linguagem é ao mesmo tempo una e múltipla. É sempre uma palavra que nós dizemos uns aos outros e que nos é dita (teologicamente: “a palavra de Deus”), mas a unidade dessa palavra desdobra-se a cada vez, como vimos, no falar articulado. Essa estrutura do logos e do verbo, tal como a reconhece a dialética platônica e agostiniana, não é senão o reflexo de seus conteúdos lógicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a idéia do bem e a idéia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a idéia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de Aristóteles sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
É evidente que repousa na constituição reflexiva, que perfaz o seu ser, o fato de que a luz reúna o ver e o visível, de modo que sem ela não exista nem um nem outro. Essa constatação tão trivial torna-se frutuosa se pensarmos a relação da luz com o belo e o alcance semântico do conceito do belo. Pois de fato é a luz a que articula as coisas visíveis como formas, que são ao mesmo tempo “belas” e “boas”. Todavia, o belo não se restringe ao âmbito do visível, mas é, como já vimos, o modo de aparecimento do bom em geral, do ente, tal como deve ser. A luz, na qual se articula não somente o âmbito visível, mas também o inteligível, não é a luz do sol, mas a do espírito, o nous. A isso alude aquela profunda analogia platônica, a partir da qual Aristóteles desenvolveria a doutrina do nous, e na sua esteira, o pensamento cristão medieval, a doutrina do intellectus agens. O espírito, que desenvolve de si mesmo a multiplicidade do pensado, torna-se presente a si mesmo justamente nisso. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O fato de que uma ou outra vez possamos nos reportar a Platão, apesar de que a filosofia grega do logos somente permite apreciar de maneira muito fragmentária o solo da experiência hermenêutica, o centro da linguagem, o devemos evidentemente a essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da finitude da existência humana necessita. Também a afinidade que reconhecemos entre a teoria platônica da beleza e a idéia de uma hermenêutica universal testemunha a continuidade dessa tradição platônica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo (12) sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a idéia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1.
A pergunta que se faz, porém, é a seguinte: Será o conhecimento dos conhecimentos, caracterizado por Platão como arte política, algo mais do que uma imagem crítica do empreendimento cego daqueles que, segundo Platão, têm de responsabilizar-se pela decadência de sua pátria? O ideal da tékhne, do saber técnico, capaz de ser ensinado e aprendido, satisfaz a exigência feita à existência política do homem? Aqui não é o lugar para discutirmos o alcance e os limites do pensamento da téknne na filosofia platônica. E nem tampouco para tocar no problema de até que ponto a própria filosofia de Platão segue certos ideais políticos que não podem ser os nossos? Mesmo assim, mencionar Platão nesse contexto pode ajudar a esclarecer o problema que nos atinge hoje. Platão ensina a duvidar de que a intensificação da ciência humana possa apreender e regular a totalidade de sua própria existência social e política. Podemos evocar aqui a oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa, que em todas as possíveis modificações dimensionou corretamente a questão fundamental de toda aplicação da “ciência” à autoconsciência. Só com a aplicação da nova ciência à sociedade — que o Descartes da “moral provisória” tinha em mente apenas como um objetivo distante — é que essa questão alcançou toda sua gravidade. Os discursos de Kant sobre o homem como “cidadão de dois mundos” conferiram-lhe uma expressão adequada. O fato de que, na totalidade de sua existência, o homem possa tornar-se um objeto a ponto de ser considerado produto em todas as relações de sua vida social, que possa ainda existir um especialista que “ele” mesmo não é, para administrar cada “homem” junto com todos os outros e que esse especialista seja ele mesmo administrado por sua própria administração, tudo isso provoca evidentes confusões. Uma delas é que o saber objetivo de (162) Platão não passa de uma caricatura irônica, mesmo que iluminada com todas as cores de uma inspiração, de um conhecimento do divino ou do bem transcendentes. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Os gregos tinham uma bela palavra para expressar o que paralisa nossa compreensão. Diziam atopon, que significa o não-lugar, aquilo que não se encaixa no esquematismo de nossa expectativa de compreensão e que por isso nos deixa desconcertados, estupefatos. A famosa teoria platônica, segundo a qual o filosofar começa com a admiração, refere-se a esse ficar desconcertado, a esse não poder avançar com as expectativas pré-esquematizadas de nossa orientação no mundo. É essa perplexidade que nos provoca a pensar. Aristóteles descreveu esse começo espetacularmente quando disse que o que esperamos depende do grau de conhecimento que temos de um contexto. O exemplo de Aristóteles é o seguinte: ao descobrir que a raiz de dois é irracional, portanto, que a relação entre a diagonal e o comprimento dos lados de um quadrado não pode ser expressa racionalmente, percebemos que não se é (186) matemático. Um matemático haveria de admirar-se se alguém afirmasse que essa relação é racional. Como essa perplexidade é relativa, como está referida ao saber e à penetração mais profunda nas coisas! E claro que esse desconcerto e admiração, esse não poder mais avançar, visa sempre um avanço, um conhecimento mais profundo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
A teoria da retórica foi o resultado de uma controvérsia preparada de há muito, desencadeada pela irrupção delirante e assustadora de uma arte do discurso e por uma idéia de educação que conhecemos pelo nome de sofística. Como um saber prático incrivelmente novo, que ensinava a colocar tudo de cabeça para baixo, essa arte passou da Sicília para uma Atenas firmemente estabelecida mas com uma juventude fácil de ser seduzida. Então, tinha-se que impor uma nova disciplina a esse grande déspota (como chama Górgias à arte do discurso). Desde Protágoras até Isócrates, a preocupação dos mestres não era apenas ensinar a discursar, mas também a formar uma consciência de cidadania justa, que prometia trazer êxito político. Mas foi só Platão que lançou as bases pelas quais a nova e revolucionária arte do discurso encontraria seus limites e seu legítimo posto, como nos descreveu exaustivamente Aristófanes. É o que nos testemunha também a dialética filosófica da academia platônica e a fundamentação aristotélica da lógica e da retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a filosofia prática em Aristóteles. Chama-se “philosophia” e isso implica um interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois (291) bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “techne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “technai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da idéia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a idéia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma conseqüência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa conseqüência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Jaeger afirma que Dannhauer adere desse modo à teoria mais recente sobre a Analítica que dominava o aristotelismo da época e que se conhece como methodus resolutiva (51s). Sobre isso, teremos algo mais para aprender quando apresentar sua anunciada obra maior. Pelo que me parece, esse método é uma continuação livre do sincretismo da Antigüidade tardia da lógica aristotélica e da dialética platônica sobre a qual Aristóteles apresenta apenas algumas amostras escassas: Aristóteles refere-se sempre ao conceito geométrico de analyein, tanto ao transformar o procedimento dedutivo e demonstrativo num tema da lógica como ao aplicá-lo à estrutura da reflexão prática (busca dos meios para o fim). Isso não deveria ser obscurecido pela referência de Jaeger ao uso neoplatônico da Analítica como via de acesso aos princípios (52). O recurso a essa analítica torna-se determinante para o programa hermenêutico de Dannhauer. Na verdade, esse considerou o escrito aristotélico Peri hermeneias como um procedimento de síntese (reunião das partes do discurso). A essa lógica sintética do enunciado justapõe a hermenêutica como um trabalho analítico. Pois bem, essa ampliação da analítica aristotélica tem uma importante conseqüência. Como a doutrina do raciocínio formal garante unicamente a dedução imanente e não a retidão objetiva, também a hermenêutica, em Dannhauer, pretende descobrir o reto sentido de um enunciado e não o sentido de um enunciado correto. Não busca uma derivação do enunciado partindo de princípios. Dannhauer é muito radical nisso, e Jaeger mostra que desse modo segue uma antiga doutrina medieval sobre a distinção entre sensus e sententia (56). Outros, ao contrário, reconheceram na hermenêutica um caminho próprio, embora indireto e subordinado, para o conhecimento da verdade. Tal foi ainda a concepção de Kerckermann (1614), que (294) fala por isso de uma clavis intelligentiae (71s). VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Por mais adequada que seja essa exposição da idéia de hermenêutica por Dannhauer, a perspectiva que persegue Jaeger me parece unilateral. A consideração do conjunto do material filológico que nos traz o douto autor, e especialmente a aparição antiga da palavra, não nos leva à lógica e à teoria da ciência. O campo referencial da palavra remete-nos antes ao âmbito da retórica. Como isso não corresponde à intenção do autor, permito-me destacar esse aspecto da questão utilizando o material apresentado por ele. Em primeiro lugar, a já conhecida ocorrência da palavra na obra platônica Epinomis (84, nota 160). Não se pode duvidar, apelando ao paralelismo com a mântica, de que se trata aqui de um uso real da linguagem. A palavra refere-se ao trato com os deuses, que não é tão simples que pudesse interpretar o significado de seus sinais sem o recurso da arte. Ignoro por que o autor não simpatiza com essa passagem. Ninguém afirma que Platão a considere como uma arte muito nobre. Mas isso não tem importância aqui. É inegável que se trata aqui da mesma tarefa proposta à hermenêutica humanista, admitida também por Jaeger, mas também à hermenêutica mais recente que ele repudia: vir a compreender o que não se compreende (a situação fundamental na atividade do intérprete). VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Frente à dialética platônica, entendida como um saber teórico, Aristóteles reivindicou para a filosofia prática uma autonomia peculiar e iniciou uma tradição que exerceria sua influência até o século XIX a dentro, e acabaria sendo dissolvida no século XX pela “ciência política” ou “politologia”. Mas, apesar de toda determinação com que Aristóteles apresenta a idéia da filosofia prática contra a ciência unitária da dialética de Platão, o aspecto teórico-científico da chamada “filosofia prática” permaneceu na penumbra. Algumas iniciativas que se estendem até os nossos dias buscam ver no “método” da ética aristotélica, introduzida por ele como “filosofia prática” e na qual a virtude da racionalidade prática, a phrone-sis, ocupa um lugar central, nada mais que um exercício de racionalidade prática. (O fato de toda ação humana, e portanto também a exposição dos pensamentos aristotélicos sobre a filosofia prática, estar sujeita aos critérios da racionalidade prática nada diz sobre o que seja o método da filosofia prática.) A discussão sobre esses pontos não deve causar muita surpresa, uma vez que os enunciados gerais aristotélicos sobre a metodologia e a sistemática das ciências são bastante escassos e contemplam menos a natureza metodológica das mesmas do que a diversidade de âmbitos de seus objetos. Isso vale sobretudo para o primeiro capítulo da Metafísica E e sua duplicação em K 7. Decerto, nela destaca-se a física (e em última instância a “filosofia primeira”), como ciência teórica, frente à ciência prática e poiética. Mas se examinarmos o modo de fundamentar a distinção entre as ciências teóricas e as não teóricas, veremos que se fala unicamente da diversidade dos objetos desse saber. Ora, isso corresponde sem dúvida ao princípio geral metodológico de Aristóteles, segundo o qual o método deve reger-se sempre por seu objeto, e o tema aparece claro no que se refere aos objetos. No caso da física, seu objeto caracteriza-se pelo automovimento. O objeto do saber produtivo, ao contrário, a obra a ser criada, tem sua origem no fabricante e em seu saber e poder. Igualmente o que orienta o sujeito na ação prática política é determinado a partir do próprio sujeito e de seu próprio saber. Poderia parecer que Aristóteles está falando aqui do saber técnico (o do médico, por exemplo) e do saber prático daquele que toma uma decisão racional (prohairesis), como se esse saber, ele mesmo, constituísse a ciência poiética ou prática que corresponde à física. É claro que não é o caso. As ciências que se distinguem aqui (junto com a distinção teórica entre física, matemática e teologia) aparecem como ciências que buscam conhecer os archai e as aitiai. Trata-se de uma investigação da arche, ou seja, não do saber aplicado do médico, do artesão ou do político, mas do que se pode dizer e ensinar em geral. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Em todo caso, o escritor, assim como quem está participando de um diálogo, busca comunicar o que pensa, e isso implica a atenção ao outro, com o que compartilha certos pressupostos e com cuja compreensão conta. O outro se atém ao dito, segundo a intenção do que foi dito, quer dizer, o entende completando-o e concretizando-o, sem tomar nada ao pé da letra em seu sentido abstrato. Isso explica que, nas cartas, mesmo que dirigidas a um colega com o qual se tem muita familiaridade, não se possam dizer certas coisas como na imediatez da situação dialogai. A carta omite muitas coisas que na imediatez da conversação ajudam a compreender corretamente. E no diálogo, sobretudo, temos sempre a possibilidade de esclarecer uma idéia ou defender o que pensamos pela confrontação. Essa situação nos é muito familiar em virtude dos diálogos socráticos e da crítica platônica à palavra escrita. Os logoi que vêm desligados da situação compreensiva — e isso vale para toda palavra escrita — estão expostos a abusos e mal-entendidos, uma vez que não dispõe da correção natural que se dá no diálogo vivo. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (“reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro, submete a Weile (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre “a essência da pre-sença é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua “procedência das ciências da natureza” (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arche (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as (384) fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO V
Talvez tenhamos de perguntar, aqui, se a conjugação interna da hermenêutica com o escrito não deve ser julgada como algo secundário. Não é por estar escrito que um pensamento necessita de interpretação, mas por causa de seu caráter de linguagem, isto é, a universalidade de seu sentido, a qual possibilita, como conseqüência, uma consignação escrita. Assim creio ter mostrado que tanto o direito codificado quanto o texto escrito, herdado da tradição, apontam para um nexo profundo, que diz respeito ao relacionamento entre compreensão e aplicação. Não causa nenhuma surpresa o fato de Aristóteles ser a maior testemunha disto. Suponho, no entanto, que o gérmen de toda a sua filosofia própria é a crítica que ele dirige à idéia platônica do bem. Contém uma revisão radical da relação entre o universal e o particular implicada na teoria platônica da idéia do bem — ao menos como é apresentada nos diálogos platônicos. E nem por isso ela se torna “nominalismo”. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Se pudermos dar crédito a Platão, será interessante notar não só que a interpretação dos poetas foi feita tanto por Sócrates quanto por seus adversários sofistas. Mais importante é o fato de toda a dialética platônica ter sido expressamente relacionada pelo próprio Platão com a problemática da literatura escrita, e que, mesmo no âmbito da realidade do diálogo, a dialética assume, não raro, expressamente um caráter hermenêutico, seja porque se introduza a conversação dialética por uma tradição mítica de sacerdotes e sacerdotisas, seja pelos ensinamentos de Diotima ou simplesmente pela constatação de que os antigos não teriam se preocupado se nós compreendemos ou não, e por isso ter-nos-iam deixado sem ajuda, como diante de uma lenda. Devemos considerar também a posição inversa: Até que ponto os próprios mitos de Platão fazem parte do curso da preocupação dialética, possuindo assim, eles próprios, caráter de interpretação? Assim, a partir dos impulsos dados por Hermann Gundert, a construção de uma hermenêutica platônica poderia ser sumamente instrutiva. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), Aristóteles resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das idéias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de (434) uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das conseqüências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do “círculo de Viena”, como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos científico-social. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
Já conhecemos esse problema na forma que Kant lhe concedeu na Crítica do juízo. Ali distingue-se entre o juízo determinante, que subsume o particular sob um universal dado, e o juízo reflexivo, que busca um conceito universal para um particular dado. Pois bem, parece-me que Hegel mostrou com toda validez que a separação dessas duas funções de juízo é uma mera abstração e que juízo, na verdade, sempre são ambas as coisas. O universal, sob o qual subsume-se um particular, segue determinando a si mesmo justamente através dessa subsunção. O sentido jurídico de uma lei determina-se através da judicação e a universalidade da norma determina-se basicamente através da concreção do caso. Sabe-se que, baseado nesse fundamento, Aristóteles chegou a declarar vazia a idéia platônica do bem. E, objetivamente falando, fez isso com razão, uma vez que se deva pensar essa idéia do bem como um ente de extrema generalidade. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. (456) No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Idéia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre Aristóteles. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o “prazer”. Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível “explicar” essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre idéia e “realidade”. Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as “coisas, elas mesmas”. Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: “Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente”. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Não se pode dizer que esses estudos realizados durante mais de um decênio reflitam diretamente e de modo significativo o panorama dos acontecimentos da época. Refletem-no de modo extremamente indireto, na medida em que, em 1933, interrompi por prudência um estudo amplo sobre a teoria sofística e platônica do Estado, da qual publiquei apenas dois aspectos parciais: Plato und die Dichter (Platão e os poetas) (1943) e Platos Staat der Erziehung (O Estado como educador em Platão) (1942). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Era definitivamente mais prudente comportar-se sem chamar a atenção. Eu me limitava a apresentar os resultados de meus (491) estudos em sala de aula. Na aula era possível movimentar-se livremente e sem impedimentos. Mesmo sobre Husserl pude organizar seminários em Leipzig, sem nenhuma pressão. Muitos pontos que eu elaborava passavam primeiro ao domínio público através de trabalhos de meus alunos, especialmente na excelente dissertação de Volkmann-Schluck, Plotin als Interpret der Platonischen Ontotogie (Plotino como intérprete da ontologia platônica, 1940). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas também isso não significa que Platão possua, afinal, uma doutrina que possa ser aprendida: a “doutrina das idéias”. E, no diálogo do Parmênides, quando ele critica essa “doutrina”, não significa que ele tenha cometido um erro ali. Significa, antes, que a hipótese das “idéias” não é tanto uma “doutrina”. Designa uma orientação problemática cujas implicações a filosofia, ou dialética platônica, deveria desenvolver e debater. A dialética é a arte de conduzir uma conversa, e isso inclui a arte de conduzir essa conversa consigo mesmo e de perseguir o entendimento consigo mesmo. É a arte de pensar, que equivale à arte de indagar o significado do que se pensa e se diz. Desse modo, segue-se um caminho ou, mais exatamente, se está em um caminho. Isso porque existe algo que se pode chamar de “predisposição natural do homem para a filosofia”. Nosso pensamento não se detém no que alguém tem em mente com isso ou aquilo. O pensar remete para além de si mesmo. A obra dos diálogos platônicos expressa isso de modo característico, a saber, remete ao uno, ao ser, ao “bem” que se expressa na ordem da alma, na ordem da constituição da cidade e da estrutura cósmica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Se Heidegger interpreta a adoção das idéias como o início do esquecimento do ser que culmina na mera representação e no objetivismo onde desemboca a era tecnológica da vontade de poder já universalizada, e quando é conseqüente o bastante para entender o mais antigo pensamento grego sobre o ser como a preparação desse esquecimento do ser produzido na metafísica, diante disso a autêntica dimensão da dialética platônica das idéias significa no fundo algo diferente. O passo latente que Heidegger dá até além de todo ente é um passo além da adoção “unívoca” das idéias e constitui em última instância uma reação contra a interpretação metafísica do ser como ser do ente. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.