Assim, como se sabe, esse ideal foi proclamado na antigüidade tanto pelos professores de filosofia como pelos de retórica. A retórica encontrava-se há muito tempo em luta com a filosofia e era sua a reivindicação de transmitir, ao contrário das ociosas especulações dos “sofistas”, a verdadeira sabedoria de vida. Vico, que era ele mesmo professor de retórica, encontra-se, aqui, portanto, em meio a uma tradição humanística procedente da antigüidade. Certamente essa tradição também é de impôftância para o que há de evidente nas ciências do espírito e, especialmente, a positiva ambigüidade do ideal retórico, que não somente surge sob o veredicto de Platão, mas também, da mesma forma, sob o veredicto do metodologismo anti-retórico da modernidade. Desse ponto de vista, muita coisa do que nos irá ocupar já ressoa em Vico. Seu apelo ao sensus communis abrange, porém, além do momento retórico, ainda um outro momento da antiga tradição. É o antagonismo entre o acadêmico e o sábio, sobre o qual ele se apoia; um antagonismo que encontrou a sua primeira configuração na imagem cínica de Sócrates que possui seu fundamento objetivo no antagonismo conceitual entre sophia e de phronesis, que foi elaborado pela primeira vez por Aristóteles, que nos Peripatéticos foi desenvolvido como uma crítica do ideal teórico de vida e que co-determinou, na época helenística, a imagem do sábio, principalmente depois que o ideal de formação grega se tinha fundido com a autoconsciência da liderança política romana. Também a ciência jurídica romana, no seu período tardio, p. ex., instala-se, como se sabe, apoiada no pano de fundo da arte jurídica e da prática jurídica, que se envolve mais com o ideal prático da phronesis do que com o ideal teórico da sophia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essas disposições de Vico mostram-se apologéticas. Reconhecem indiretamente o novo conceito de verdade da ciência, tão-somente ao defender o direito do provável. Como já vimos, Vico está acompanhando com isso a antiga tradição retórica, que recua já a Platão. O que Vico quer dizer vai, porém, além da defesa da peitho retórica. De acordo com a questão em pauta, e como já o dissemos, aqui atua o antigo antagonismo aristotélico do saber prático e do teórico, um antagonismo que não se deixa reduzir ao antagonismo do que é verdadeiro e do que é provável. O saber prático, a phronesis, é uma outra forma de saber. De início, significa o seguinte: encontra-se dirigida à situação concreta. Terá pois de abranger as circunstâncias em sua infinita variedade. É isso também que Vico salienta expressamente. Sem dúvida, o que unicamente lhe chama a atenção é que esse saber se subtrai ao conceito racional do saber. No entanto, e na verdade, não se trata de um mero ideal de resignação. O antagonismo aristotélico significa ainda algo bem diferente do que apenas o antagonismo entre o saber baseado em princípios universais e o saber do concreto. Também não significa a capacidade de subsunção do particular pelo universal, que denominamos “força do juízo”. O que atua aí é, muito mais, um motivo ético, positivo, que também existe na doutrina romano-estóica do sensus communis. A compreensão e o domínio moral da situação concreta exige uma tal subsunção do dado sob o universal, ou seja, o fim que se persegue para que daí resulte o correto. Pressupõe, portanto, um direcionamento da vontade, isto é, um ser moral (hexis). Daí que, segundo Aristóteles, a phronesis é uma “virtude espiritual”. Não vê nela simplesmente uma capacidade (dynamis), mas uma determinação do ser moral, que não pode existir sem o conjunto das “virtudes éticas”, como, ao contrário, estas não podem existir sem aquela. Embora essa virtude, ao ser exercitada, faça que se diferencie o factível do infactível, ela não é simplesmente uma inteligência prática e uma engenhosidade universal. O seu diferenciar entre o factível e o infactível abrange também a diferenciação entre o conveniente e o inconveniente e, assim, pressupõe uma atitude moral, que, por sua vez, aperfeiçoa-o. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É claro que este não é o saber da ciência. Nesse sentido a limitação de Aristóteles entre o saber ético da phronesis e o saber teórico da episteme é bem simples, sobretudo se se leva em conta que, para os gregos, a ciência, representada pelo paradigma da matemática, é um saber do inalterável, que repousa sobre a demonstração e que, por conseguinte, qualquer um pode aprender. É certo que uma hermenêutica espiritual-científica não poderia aprender nada dessa limitação do saber ético face a um saber como a matemática. Pelo contrário, face a essa ciência “teórica”, as ciências do espírito fazem parte, estritamente, do saber ético. São “ciências morais”. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Este, porém, se sabe a si mesmo como ser que atua, e o saber que, deste modo, tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. Aquele que atua lida, antes, com coisas que nem sempre são como são, pois que [320] podem também ser diferentes. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua situação. Seu saber deve orientar seu fazer. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Da análise aristotélica da phronesis podemos extrair toda uma série de momentos que oferecem resposta a essa pergunta. Pois a genialidade de Aristóteles está precisamente na quantidade de aspectos que leva em conta ao descrever cada fenômeno. “O empírico, concebido na sua síntese, é o conceito especulativo” (Hegel). Nesse ponto nos contentaremos com alguns aspectos que são significativos para o contexto em que nos encontramos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É evidente que o justo também parece estar determinado num sentido absoluto, pois está formulado nas leis e contido nas regras gerais de comportamento da ética, que apesar de não estarem codificadas, mesmo assim têm uma determinação precisa e uma vinculação geral. O próprio cultivo da justiça é uma tarefa própria que requer saber e poder. Não é ela, então, techne? Não consiste, também ela, na aplicação das leis e das regras a um caso concreto? Não falamos da “arte” do juiz? Por que será que o que Aristóteles designa como a forma jurídica da phronesis (dikastike phronesis), não é uma techne! VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa é, pois, uma relação verdadeiramente fundamental. Não é assim que, com a expansão do saber técnico suprimir-se-ia, de uma vez por todas, a necessidade do saber ético, o buscar-conselho-consigo-mesmo. O saber ético não poderá nunca revestir o caráter prévio, próprio dos saberes suscetíveis de aprendizagem. A relação entre meio e fim não aparece aqui nos moldes daquilo que se pode dispor com anterioridade de um conhecimento dos meios idôneos, e isso pela razão de que o saber do fim idôneo não é, por sua vez, mero objeto de um saber. Não existe uma determinação prévia daquilo em que a vida no seu todo está orientada. As determinações aristotélicas da phronesis mostram, nesse sentido, uma oscilação característica pois esse saber se atribui ora mais ao fim ora mais ao meio para o fim. Na realidade, isso significa que o fim, guiados para o qual pautamos o todo de nossa vida, e o seu desenvolvimento nas imagens diretrizes e éticas da atuação, tal como as descreve Aristóteles em sua ética, não pode ser objeto de um saber simplesmente ensinável. Não há um uso dogmático da ética, como tampouco um uso dogmático do direito natural. Antes, a doutrina das virtudes de Aristóteles apresenta formas típicas de justo meio, que convém adotar no ser e no comportamento humano, mas o saber ético que se guia por essas imagens diretrizes é o mesmo saber que deve responder aos estímulos da situação de cada momento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
3. O saber-se da reflexão ética possui, de fato, uma relação para consigo mesmo muito característica. As modificações que Aristóteles apresenta no contexto de sua análise da phronesis são uma boa demonstração disso. Junto à phronesis, pois, a virtude da ponderação reflexiva, aparece o entendimento (Verständnis). O entendimento (Verständnis) é introduzido como uma modificação da virtude do saber ético, na medida em que aqui já não se trata do eu-mesmo, que deve agir. Segundo isso, “synesis” significa, inequivocamente, a capacidade de julgamento ético. Elogia-se, portanto, a compreensão de alguém, quando ele, julgando, consegue deslocar-se completamente para a plena concreção da situação em que o outro tem de atuar. Portanto, também aqui não se trata de um saber em geral, mas de uma concreção momentânea. Esse saber também não é, em nenhum sentido razoável, um saber técnico ou a aplicação do mesmo. O homem muito experimentado, aquele que conhece e tem experiência em toda classe de tramas e práticas e em tudo que existe, somente alcançará uma compreensão adequada daquele que atua, na medida em que satisfaça também a seguinte premissa: que também ele deseje o justo, que se encontre portanto nessa relação de comunidade com o outro. Isso tem sua concreção no fenômeno do conselho em “questões de consciência”. A pessoa que pede conselho, assim como quem o dá, situa-se sob a premissa de que o outro mantém uma relação de amizade com ele. Só um amigo pode aconselhar o outro ou, dito de outra maneira, somente um conselho com intenção de amizade pode ter sentido para o aconselhado. Também aqui se torna claro que o homem compreensivo não sabe nem julga a partir de um simples estar postado frente ao outro de modo que não é afetado, mas a partir de uma pertença específica que o une com o outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela “famosa analogia”. É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger freqüentemente a expressão “co-originariedade” — uma ressonância da “analogia” e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à idéia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis, muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates, compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno, ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos sobre Platão e Aristóteles. Os primeiros textos de minha formação intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no volume V dessa edição alemã, sob o título Praktisches Wissen [Saber prático] (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco, estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição aristotélica da filosofia prática foi retomada e abordada sob diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa filosofia prática permanece sendo, para o conceito científico do conjunto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode ser ignorada. Há que se aprender com Aristóteles que o conceito grego de ciência, episteme, significa conhecimento racional. Isso significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, [23] episteme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de techne. Em todo caso, o saber prático e político têm fundamentalmente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didático e de sua aplicação. O saber prático (Können), na verdade, é aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fundamentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento socrático pelo bem, mantido por Platão e Aristóteles. Quem acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e responsabilizar-se pela utilização do mesmo. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Os exemplos aqui discutidos mostram a estreita relação existente entre o uso da linguagem e a formação conceitual. A história do conceito deve seguir um movimento de pensamento [99] que força a ultrapassar sempre o uso ordinário da linguagem e liberar a orientação semântica das palavras de seu emprego originário, ampliando ou restringindo, comparando ou distinguindo, como procedeu de modo sistemático Aristóteles no catálogo de conceitos do livro A da Metafísica. Também a formação de conceitos pode ter efeitos na vida da linguagem, como por exemplo o amplo uso da palavra substância para designar o espiritual, uso justificado por Hegel. Via de regra, porém, acontece o contrário, a amplitude do uso vivo da linguagem resiste à fixação terminológica dos filósofos. Em todo caso, há uma relação extremamente oscilante entre a cunhagem conceitual e o uso de linguagem. Mesmo aquele que fez as propostas terminológicas, no uso de fato da linguagem, acaba não as mantendo. Como já ressaltei certa vez, em seu próprio uso da linguagem, Aristóteles acaba não seguindo a diferenciação de phronesis e sophia, por ele encontrada na Ética a Nicômaco. Mesmo a famosa distinção kantiana de transcendente e transcendental não conseguiu direito de cidadania na vida da linguagem. Só a hybris de um Beckmesser conseguiu criticar, no meu tempo de juventude, na época do neokantianismo, uma expressão como “a música transcendental de Beethoven”, afirmando com escárnio: “O escritor nem sequer sabe a diferença entre transcendente e transcendental”. É claro que quem quiser compreender a filosofia kantiana deverá estar familiarizado com essa diferença. O uso da linguagem é no entanto soberano e não permite que lhe sejam dados esses preceitos artificiais. A soberania do uso da linguagem não exclui distinção entre o bom e o mau alemão (ou português) e até que se possa falar dos abusos da língua. Nesses casos, porém, a soberania do uso da linguagem mostra-se precisamente no fato de que, a nossos olhos, a crítica reprobativa feita muitas vezes na escola com relação ao uso errado da língua em suas regras gramaticais contém algo de inoperante. Mais do que qualquer outro, o ensino da língua costuma ser operante pelo exemplo e não através de correções pedantes. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das conseqüências, consoante à idéia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Dessas reflexões resulta que a idéia tradicional do fazer e do produzir representa um modelo falso de conhecimento. A tensão entre o saber para todos, ligado ao conceito da ciência ensinável (técnica), e o saber sobre o que, no nível prático, é melhor para cada um, é como tal já muito antiga, embora não seja um acaso que a sua real antinomia só tenha se exposto com o surgimento da ciência moderna. Em Aristóteles, por exemplo, a relação entre a arte [165] política e o sentido político (téknne e phronesis) parece não representar nenhum problema real. Onde existe um saber que pode ser aprendido devemos aprendê-lo. Mas esses sempre compõem apenas áreas parciais do saber e do saber-fazer prático que nunca poderão cobrir toda a esfera da ação moral e política. O saber global, onde se inserem todas as formas de saber humano, serve de parâmetro também para a téknne. Em sentido fundamental, essa continua preenchendo as lacunas que a natureza legou como tarefa para o trabalho humano, e dessa forma torna-se um complemento constante do nosso saber. Hoje, ao contrário, a extraordinária abstração com que o ideal do método da ciência moderna separa e delimita seu objeto expõe de forma acirrada a diferença qualitativa tanto entre o saber da ciência, em constante auto-superação, e o caráter definitivo e irrevogável de toda decisão real quanto aquela diferença entre o especialista e o político. Em todo caso, parece faltar um modelo racional do que constitui o saber do político. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Esse saber não é simplesmente um exercício superior daquele saber prático que Aristóteles descreveu e analisou como phronesis. Quem sabe a “filosofia prática” se distinga da “ciência teórica” em Aristóteles exatamente pelo fato de que o “objeto” dessa ciência não é o permanente e os princípios e axiomas supremos, mas a práxis humana sujeita à constante mudança. Mas em certo sentido ela mesma é teórica, já que não ensina um saber sobre a ação real que esclarece e decide uma situação concreta da práxis, mas transmite conhecimentos “gerais” sobre o comportamento humano e as formas de sua existência “política”. Dessa forma, na tradição da história ocidental da ciência, como uma forma própria de ciência, persiste a scientia practica, a filosofia prática, que não é ciência teórica nem é caracterizada suficientemente por sua “referência com a práxis”. Enquanto teoria, não é um saber sobre a ação. Mas não será nada mais que techne ou “doutrina da arte”? Não pode ser comparada com a gramática ou a retórica que dispõem de uma consciência de regras técnicas para uma competência técnica — discursar ou escrever — que possibilita o controle da práxis e também da teoria. Essas teorias da arte, apesar de sua superioridade sobre a mera experiência, parecem reconhecer uma validez última ao exercício do falar ou escrever, como todas as outras technai, todo saber manual está submisso ao uso que se faz do produto criado. Assim, a filosofia prática não é um saber regulador da práxis humana e social do mesmo modo que a gramática e a retórica são doutrinas da arte. E antes a reflexão sobre essa práxis e portanto, em última instância, “geral” e “teórica”. Por outro lado, a teoria e o discurso encontram-se aqui sob condições especiais, à medida que todo saber moral-filosófico e correspondentemente toda teoria geral do estado estão relacionados às condições empíricas especiais do aprendiz. Aristóteles reconhece que esses “discursos gerais” sobre o que seja a mais própria práxis concreta de cada um só se justificam se se estiver tratando com alunos maduros o bastante para empregar esses discursos gerais em circunstâncias concretas de [254] sua experiência vital com responsabilidade autônoma. A ciência prática é, portanto, um saber “geral”, mas certamente um saber que se pode chamar menos de saber produtivo que de crítica. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Ora, é uma opinião amplamente aceita que Platão compreendeu a dialética, quer dizer, a própria filosofia como uma techne e destacou sua peculiaridade frente ao resto das technai unicamente no sentido de que é o saber do supremo, inclusive o saber da coisa suprema que é preciso conhecer: o bem (megiston mathema). Podemos dizer o mesmo, mutatis mutandis, da retórica filosófica postulada por ele e portanto de toda a hermenêutica. Só Aristóteles teria encontrado a importante distinção entre ciência, techne e racionalidade prática (phronesis). VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega syne-sis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por [315] Aristóteles em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de techne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a idéia de filosofia prática. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, Aristóteles analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que Aristóteles chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio Aristóteles se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua filosofia prática. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma [316] descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Essas reflexões permitem perfilar com precisão a questionada descrição inicial da tarefa da filosofia prática e política. O que Burnet considerou uma adaptação de Aristóteles ao uso de linguagem que faz Platão do termo technesl tem seu verdadeiro fundamento na interferência que existe entre o saber “poiético” da techne e a “filosofia prática” que estuda “o bem” dentro de uma generalidade típica. Essa filosofia prática como tal não é a phronesis. Praxis, prohairesis, techne e methodos aparecem também aqui numa seqüência e formam de certo modo um contínuo de transições. Mesmo assim, Aristóteles reflete também sobre o papel que pode desempenhar a politike na vida prática. Compara o postulado dessa pragmática com o ponto que o arqueiro toma como mira quando aponta para o objetivo da caça. Com esse ponto na mira acertará melhor. Isso não significa que a arte do tiro a arco consista somente em apontar para esse ponto. Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Mas o ponto pode ser útil para facilitar a pontaria, para manter a direção do disparo com mais precisão. Aplicando essa imagem à filosofia prática, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia, em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos, pela racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre. Também aqui a pragmática ética pode oferecer certa ajuda para se evitar conscientemente os erros, fazendo com que a reflexão racional tenha consciência dos objetivos últimos de sua ação. Essa pragmática não se limita a um campo particular. Também não é a aplicação de uma faculdade a um objeto. Pode desenvolver métodos — são regras práticas mais que métodos — e pode converter-se em verdadeira maestria num indivíduo determinado. Mas, apesar disso, não é uma “faculdade” que escolhe cada vez (por conta própria ou a pedido) sua tarefa como uma capacidade técnica. Apresenta-se, antes, como a praxis da vida a apresenta. Assim, a filosofia prática de Aristóteles difere do saber técnico supostamente neutro do especialista, que aborda [317] as tarefas da política e da legislação como um observador distante. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Como pode a facticidade adquirir o caráter de princípio, adquirir o caráter de “ponto de partida” primeiro e determinante? O que significa “fato”, nesse contexto, não é a facticidade dos fatos estranhos, dos quais pensamos ter dado conta à medida que aprendemos a explicá-los. Trata-se da factualidade das crenças, valorações, usos partilhados por todos nós; é o paradigma de tudo que constitui nosso sistema de vida. A palavra grega que designa o paradigma dessas factualidades é o conhecido termo ethos, o ser que se consegue com o exercício e o hábito. Aristóteles é o fundador da ética porque deu realce a esse caráter da factualidade como sendo decisivo. No caso de a possuirmos, a phronesis, essa racionalidade responsável, é a garantia de que esse ethos não é um mero adestramento ou adaptação e nada tem a ver com o conformismo de uma consciência duvidosa. Não é um dom natural. O partilhar uma crença e decisões comuns em intercâmbio com os semelhantes e em convivência na sociedade e no estado não é, pois, conformismo. Constitui a dignidade do [326] ser-próprio e da autocompreensão humanos. A pessoa que não é associai acolhe sempre o outro e aceita o intercâmbio com ele e a construção de um mundo comum de convenções. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
A convenção constitui uma realidade melhor que a impressão produzida pela palavra em nossos ouvidos. Significa estar de acordo e dar validez a esse acordo. Não significa a exterioridade de um sistema de regras impostas de fora, mas a identidade entre a consciência individual e as crenças representadas na consciência dos outros. Significa ainda as ordenações vitais assim criadas. Em certo sentido, é uma questão de racionalidade, e de racionalidade não unicamente no sentido técnico-pragmático de razão, onde costumamos usar a palavra razão. Dizemos, por exemplo: se quero isso e aquilo, o razoável é como primeiro fazer isso e aquilo. É a célebre “racionalidade instrumental” (Zweckrationalität) de Max Weber. Quem quer um determinado fim deve saber os meios que conduzem e os que não conduzem a ele. Por isso, a ética não é mera questão de intenção. Também nosso saber ou não saber deve ser assumido responsavelmente. O saber faz parte do ethos. Mas certamente isso não é tudo o que caracteriza a racionalidade no sentido moral e político da phronesis aristotélica, em virtude da qual sabemos utilizar os meios adequados para determinados fins. Na sociedade humana, tudo depende de como esta determina seus fins, ou melhor, como alcança o consenso para assumir os fins que devem ser confirmados por todos e como encontra os meios justos. Pois bem, creio que a suposição, prévia a qualquer explicação teórica, da aceitação generalizada de um ideal de racionalidade que determine seu conteúdo reveste-se sempre de uma importância decisiva para todo o tema do saber teórico nesse campo da praxis da vida. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da [328] natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre “o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito” pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua conseqüência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito “puro”, o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Contra meus trabalhos intelectuais, Theodor Litt provavelmente objetaria que uma justificação filosófica das ciências do espírito, apoiada no modelo aristotélico de phronesis, deve admitir um a priori que não pode ser simplesmente o resultado de uma universalização empírica. A filosofia prática de Aristóteles se equivocaria se fundamentasse seu princípio no “que” (dass), sem reconhecer que ela própria, enquanto filosofia, como um querer saber teórico, não pode depender de algo que aparece na experiência como um ethos concreto e como uma razão que atua praticamente. Litt atinha-se, pois, à reflexão transcendental que guiara também Husserl e o Heidegger de Ser e tempo. Mas pareceu-me e continua parecendo que esse procedimento, embora justificado frente a uma [329] teoria empirista-indutivista, esquece que essa reflexão encontra seu fundamento e sua limitação na práxis da vida donde provém sempre. Essa constatação impede o acesso a uma reflexão que se aventura num escalonamento idealista até o “espírito”. Creio que a cautela aristotélica e a autolimitação de sua idéia do bem encontram sua justificação na vida humana, e que impõem de maneira justa — quem sabe com Platão — ao pensamento filosófico a vinculação à sua própria finitude. Essa vinculação se impõe no modo como nós experimentamos a finitude, ou seja, dentro de nosso condicionamento histórico. Esse pensamento filosófico, porém, não é de princípio nenhuma mera generalização empirista. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Estou absolutamente convencido de que temos que aprender dos clássicos. Também sei avaliar que Strauss não somente impõe essa exigência como também pode transformar amplamente essa exigência em atos. Mas entre os ensinamentos que devemos aprender deles conto também a contraposição insuperável que existe entre uma politike techne e uma politike phronesis. E acho que Strauss não pensa isso de modo suficiente. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Como se vê, o que está em questão nesse caso não é somente a função da hermenêutica dentro das ciências, mas também a auto-compreensão do homem na idade moderna da ciência. Um dos mais importantes ensinamentos que a história da filosofia oferece a esse problema atual é o papel que a práxis e o seu saber esclarecedor e orientador desempenham na ética e política aristotélicas. É a inteligência prática ou sabedoria, que Aristóteles chamou de phronesis. O livro VI da Ética aNicômaco continua sendo a melhor introdução a esta problemática tão batida. Sobre essa questão gostaria de remeter também a um novo trabalho, o meu “Hermeneutik und praktische Philosophie”, que pode ser encontrado no volume organizado por M. Riedel, Zur Reabilitierung der praktischen Philosophie (Para a reabilitação da filosofia prática). Aquilo que se apresenta sob o grande pano de fundo da tradição da filosofia prática (e política), que vai desde Aristóteles até as soleiras do século XIX, do ponto de vista filosófico é a autonomia da contribuição cognitiva que consiste na relação com a práxis. Aqui o particular concreto não representa apenas o ponto de partida, mas também um momento sempre determinante para o conteúdo do universal. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Mas o mais importante aprendi-o de Heidegger. Recordo-me sobretudo do primeiro seminário em que participei. Foi no ano de 1923, ainda em Friburgo, sobre o livro VI da Ética a Nicômaco. A phronesis, a arete da “razão prática”, alio eidos gnoseos, “um gênero de conhecimento diferente”, representou para mim então uma palavra mágica. De certo, soou para mim como uma provocação o dia em que Heidegger analisou a distinção entre techne e phronesis e declarou a propósito da frase phroneseos de ouk esti lethem (na racionalidade não há esquecimento): “isso é a consciência moral”. Mas essa hipérbole pedagogicamente espontânea sugeria o ponto decisivo a partir do qual o próprio Heidegger preparou mais tarde em Ser e tempo o novo lugar da pergunta pelo ser. Basta pensar em expressões como “vontade de consciência moral”. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Trata-se na verdade de um antigo problema que conhecemos desde Platão. A todos os que presumiam saber, políticos, poetas e especialistas em seu ofício artesanal, Sócrates buscou convencer de que no fundo desconheciam o “bem”. Aristóteles estabeleceu a distinção estrutural subjacente aqui, diferenciando entre techne e phronesis. Isso é indiscutível. Mesmo que essa distinção possa ser mal-compreendida e o apelo à “consciência” possa muitas vezes encobrir dependências ideológicas camufladas, a pretensão de reconhecer o que são a razão e a racionalidade unicamente na ciência anônima e como ciência torna-se um mal-entendido. Assim, minha própria teoria hermenêutica convenceu-me da necessidade de recuperar esse legado socrático de uma “sabedoria humana”, que em comparação com a infalibilidade quase divina do saber científico se converte num não-saber. A “filosofia prática” elaborada por Aristóteles pode servir-nos de modelo. Trata-se da segunda linha de tradição que convém renovar. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.