É esse motivo que Aristóteles desenvolveu contra a “idéia do bem” de Platão, à qual alude, nessa questão, o apelo de Vico ao sensus communis. Na escolástica, p. ex., para St. Tomás — em desenvolvendo o De anima — o sensus communis é a raiz comum do sentido exterior, ou ainda, a faculdade que combina, a qual julga o dado, uma capacidade que foi concedida a todos os homens. Para Vico, não obstante, o sensus communis é um sentido para a justiça e o bem comum, que vive. em todos os homens, e até, mais do que isso, um sentido que é adquirido através da vida em comum, e determinado pelas ordenações e fins. Esse conceito tem um tom de justiça natural como as koinai ennoiai da Stoa. Mas o sensus communis não é, nesse sentido, um conceito grego e não tem, de forma alguma, o significado de koine dynamis, de que fala Aristóteles no De anima, quando procura ajustar a doutrina dos sentidos específicos (aisthesis idia) com o achado fenomenológico, que mostra toda percepção como uma diferenciação e uma opinião de um universal. Vico recorre, antes, ao antigo conceito romano do sensus communis, como o conhecem em especial os clássicos romanos, que, em contraposição à formação grega, ancoram-se no valor e no sentido de suas próprias tradições da vida civil e social. E pois um tom crítico, um tom contra a especulação teórica dos filósofos que já se pode ouvir no conceito romano de sensus communis e que Vico faz soar, a partir de seu front de batalha, que ele agora modifica e direciona contra a ciência moderna (a crítica). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
No entanto, mesmo nos primeiros trabalhos de Dilthey nota-se uma certa insegurança no significado da palavra vivência. Verifica-se isso bastante bem, principalmente num trecho em que Dilthey, nas edições posteriores, faz desaparecer a palavra vivência: “Em correspondência ao que ele vivenciou e, de acordo com a sua ignorância do mundo, ele co-fantasiou como vivência”. De novo volta-se a falar de Rousseau. Mas uma vivência co-fantasiada já não quer se adequar corretamente ao sentido originário da palavra “vivenciar” — nem mesmo quanto ao uso que Dilthey deu à sua própria linguagem científica mais tarde, onde vivência significa justamente o imediatamente dado, que é o último material para toda a configuração de uma fantasia. A cunhagem da palavra “vivência” lembra, claramente, a crítica ao racionalismo do Aufklärung, que, partindo de Rousseau, deu validade ao conceito da vida. Deve ter sido a influência de Rousseau sobre o classicismo alemão que deu vigor ao padrão do “ser vivenciado”, possibilitando assim a formação da palavra “vivência”. O conceito da vida forma, porém, também o pano de fundo metafísico, que sustenta o pensamento especulativo do idealismo alemão, e que desempenha um papel fundamental tanto para Fichte como para Hegel, mas também para Schleiermacher. Em face da abstração do entendimento, bem como em face da particularidade da percepção ou da representação, esse conceito implica a vinculação à totalidade, e ao infinito. Isso é o que se pode perceber nitidamente no tom da palavra vivenciada até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Havemos de ver que para o pensamento de Dilthey é de decisiva importância que não se denomine a “sensation” ou a percepção, como a última unidade do consciente, o que era natural para o kantianismo e mesmo para a teoria do conhecimento positivista do século XIX, até Ernst Mach, já que Dilthey chama a isso de “vivência”. Ele delimita, assim, o ideal construtivo de uma estrutura do conhecimento a partir de átomos de percepção e contrapõe a ele uma versão mais aguda do conceito do dado. A unidade da vivência (e não elementos psíquicos, sob os quais ela pode ser analisada) compõe a unidade real do dado. Dessa maneira, apresenta-se na teoria do conhecimento das ciências do espírito um conceito da vida que limita o modelo mecânico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mas aqui surge a indagação: como é que o conceito do símbolo, assim entendido, nessa forma a nós familiar, se tornou um contra-conceito da alegoria. Sobre isso, e assim de início, nada se encontra em Schiller, mesmo que ele compartilhe da crítica da alegoria fria e artificial, que fizeram Klopstock, Lessing, o jovem Goethe, Karl-Philipp Moritz e outros, que outrora se voltaram contra Winckelmann. Apenas no intercâmbio entre Schiller e Goethe começa a se delinear uma nova cunhagem do conceito do símbolo. Na conhecida carta de 17.08.97, Goethe descreve o estado de ânimo sentimental, a que o levaram as impressões que tivera de Frankfurt, e fala dos objetos que evocam um tal efeito, dizendo: “Na verdade, eles são simbólicos, isto é, como eu quase não preciso dizê-lo, são casos eminentes, que numa variedade característica se apresentam como representantes de muitos outros e englobam uma certa totalidade…” Ele dá importância a essa experiência porque deve ajudá-lo a escapar “à hidra de mil formas do empirismo”. Schiller apóia-o nisso e acha que essa forma de percepção sentimental está inteiramente em concordância com o que “já fixamos entre nós”. No entanto, para Goethe não se trata, tanto, “de uma experiência estética, como de uma experiência da realidade”, para a qual ele atrai, ao que parece, segundo o uso lingüístico do antigo protestantismo, o conceito do simbólico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O conceito básico da estética, do qual Hamann parte, é a “significância própria da percepção”. É manifesto que, com esse conceito, se está dizendo a mesma coisa que a doutrina de Kant sobre a concordância adequada com o estado da nossa capacidade de conhecimento como tal. Tal como para Kant, também para Hamann ter-se-á, com isso, de suspender o padrão do conceito ou do significado, essencial para o conhecimento. Visto linguisticamente a “significância” é uma formação secundária com relação ao significado, que desloca a relação a um determinado significado significativamente para algo incerto. O que é “significativo” tem um significado (não manifestado ou) não reconhecido. A “significância própria” vai ainda além disso. O que é significativamente próprio, em vez de significativamente estranho, quer extirpar a relação àquilo, a partir donde deixaria determinar seu significado. Será que um tal conceito pode constituir um fundamento resistente para estética? Pode-se, afinal, utilizar o conceito “significância própria”, sobretudo no que diz respeito a uma percepção? Não se terá de conceder ao conceito da “vivência” estética o que se credita à percepção, ou seja, que percebe o verdadeiro, isto é, que continua relacionado ao conhecimento? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
De fato, fazemos bem em nos lembrar de Aristóteles. Foi quem demonstrou que toda aisthesis se dirige a um universal, mesmo quando acontece que cada sentido tem seu campo específico e que nele o que é dado de imediato não é, enquanto tal, universal. Mas a percepção específica de uma situação dada dos sentidos é, como tal, uma abstração. Na verdade, vemos o que, sensorialmente, nos é dado perceber individualizadamente, sempre em relação a um universal. Reconhecemos, p. ex., um fenômeno branco como um ser humano. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
No entanto, o ver “estético” é certamente caracterizado pelo fato de que o olhar não irá apressadamente estabelecer relação com um universal, com o significado conhecido, com um fim planejado ou algo similar a isso, mas que demorar-se-á no olhar, como estético. Mas nem por isso deixamos de, nesse olhar, estabelecer esse tipo de relação, p. ex., esse fenômeno branco, que admiramos esteticamente, e que, no entanto, vemos como um ser humano. Nossa percepção não é nunca um simples reflexo daquilo que foi proporcionado aos sentidos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Antes, a mais recente psicologia, sobretudo a crítica perspicaz, feita por Scheler, em união com W. Koehler, E. Straub, M. Wertheimer, entre outros, ao conceito da pura percepção do “estímulo recíproco”, tem-nos ensinado que esse conceito procede de um dogmatismo epistemológico. Seu verdadeiro sentido é somente normativo, na medida em que a reciprocidade de estímulo seria o resultado final ideal da demolição de todas as fantasias do instinto, isto é, a conseqüência de um desembriagamento que, no final, capacitasse a preservar o que existe — em vez de pretender o que a fantasia do instinto imaginar. Isso significa, porém, que a pura percepção, definida pelo conceito da adequação do estímulo, representa apenas um caso-limite ideal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A isso se acrescenta um segundo caso. Mesmo a percepção tida como adequada jamais viria a ser um simples reflexo daquilo que é. Pois continuaria sendo sempre uma apreensão de algo. Toda a apreensão como… articula o que está ali, na medida em que tira a vista de… olha para… vê conjuntamente como… — e tudo isso pode, novamente, encontrar-se no centro de uma observação ou ser meramente “vista junto com outra coisa” (mitgesehen), à margem e um pano de fundo. Portanto, não há dúvida de que o ver é como um ler articulado daquilo que lá está, de muita coisa que lá está, ele ao mesmo tempo desvia a vista, de maneira que para o olhar já não está mais lá; da mesma forma, porém, também guiado por suas antecipações, “olha para dentro” e vê o que lá nem está. Imagine-se também uma tendência de invariante, que atua no próprio olhar, de maneira que sempre se vêem as coisas da forma mais igual possível. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essa crítica à doutrina da percepção pura, que se fez a partir da experiência pragmática, foi tornada, por Heidegger, em algo fundamental. Com isso, ela passa a ter validade também para a consciência estética, embora aqui o ver simplesmente não “faça vista grossa” sobre o que é visto, p. ex., com relação à sua utilidade geral para algo, mas demorar-se no aspecto. O olhar (Schauen) demorado e o perceber não são simplesmente um ver o puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um aprender como… O gênero de ser do que foi concebido (Vernommen) esteticamente não é ocorrência (Vorhandenheit). Onde se trata de uma representação significante, p. ex., em obras da arte plástica, desde que não sejam abstratas-desprovidas-de-objeto, a significância para o ler do aspecto é claramente norteadora. Só quando “reconhecemos” o que está representado, podemos “ler” uma pintura, só então é que ela é, no fundo, uma pintura. Ver significa subdividir desmembrando. Enquanto ficamos testando formas variáveis de agrupamento ou ficamos oscilando entre elas, como no caso de certos quadros enigmáticos, ainda não conseguimos ver o que é. Um quadro enigmático é, ao mesmo tempo, a eternização artística de tal oscilar, o “tormento” do ver. Algo semelhante a isso ocorre com a obra de arte lingüística. Só quando entendemos um texto — portanto, quando, pelo menos, dominamos a linguagem de que se trata — , é que poderá ser uma obra de arte lingüística para nós. Mesmo quando, por exemplo, escutamos a música absoluta, é necessário que a “entendamos”. E somente quando a entendemos, quando ela se torna “clara” para nós, é que vem a ser para nós uma configuração artística. Assim, embora a música absoluta seja, como tal, uma pura mobilidade da forma, uma espécie de matemática toante, onde não há conteúdo objetivamente significativo que possamos perceber, não obstante o entender mantém uma relação para com o que é significativo. A indeterminação dessa relação é que representa a relação específica de significado de uma tal música. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O mero ver, o mero ouvir são abstrações dogmáticas, que reduzem artificialmente os fenômenos. A percepção abrange sempre o significado. É por isso um formalismo ao avesso, que, além disso, não pode se reportar a Kant, no sentido de procurar, tão-somente na sua forma, a unidade da configuração estética, em oposição ao seu conteúdo. Kant, com o seu conceito da forma, tinha em mente algo bem diferente. Não contra o conteúdo significativo de uma obra de arte, mas contra o mero estímulo sensorial do que seja material, o conceito de forma de Kant designa a construção da configuração estética. O chamado conteúdo objetivo não é, de forma alguma, matéria à espera de uma conformação posterior, mas encontra-se sempre vinculada, na obra de arte, à unidade da forma e do significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Reside pois na natureza das obras dramáticas ou musicais que a sua execução em diversas épocas e em diversas ocasiões é e terá de ser diferente. Agora, o que importa é compreender que, mutatis mutandis, o mesmo corresponde às artes estatuárias. Também aí não se poderia dizer que a obra seja “em si” e que apenas o efeito seja algo cada vez diferente — é a própria obra de arte que se apresenta diferentemente, segundo as condições vão se modificando. O observador dos nossos dias não apenas vê diferente, ele também vê outra coisa, pense-se apenas no fato de que a idéia do mármore pálido da antiguidade domina o nosso gosto, bem como o nosso comportamento conservador desde os dias da Renascença, ou qual o espelhamento da percepção classicista representa, no Norte romântico, a espiritualidade puritana das catedrais góticas. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O engate de Dilthey às Investigações lógicas de Husserl atinge em cheio o cerne da questão. Segundo o próprio Husserl, o trabalho de toda sua vida encontra-se dominado, desde as Investigações lógicas, pelo a priori da correlação entre o objeto da experiência e a forma dos dados. Já na quinta investigação lógica ele tinha elaborado o modo próprio das vivências intencionais e diferenciado a consciência, tal como a convertera em tema de investigação, “enquanto vivência intencional” (este é o título do segundo capítulo), da unidade real das vivências na consciência, e de sua percepção interna. Nesse sentido, e já nessa época, a consciência não é para ele um “objeto”, mas uma atribuição (Zuordnung) essencial — esse foi o ponto que se tornou tão elucidativo para Dilthey. O que se manifestou na investigação dessa atribuição foi uma primeira superação do “objetivismo”, na medida em que, por exemplo, o significado das palavras não pode continuar sendo confundido com o conteúdo psíquico real da consciência, p. ex., com as representações associativas que uma palavra desperta. Intenção de significado e cumprimento de significado fazem parte essencialmente da unidade do significado, e, tal qual os significados das palavras que usamos, todo ente que possua validez para mim possui, correlativamente e com necessidade essencial, uma “generalidade ideal dos modos reais e possíveis das coisas dadas serem experimentadas”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Com isso é que se ganhou a idéia da “fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda suposição do ser e a investigação dos modos subjetivos de estarem dadas as coisas, fazendo-se disso um programa universal de trabalho, o que teria que tornar compreensível toda objetividade, todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana possui validez ôntica. Nessa perspectiva, deve também ser vista como “fenômeno”, ou seja, também ela deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de encontrar-se dada. Essa investigação do eu como fenômeno não é “percepção interna” de um eu real, mas tampouco é mera reconstrução da “consciencialidade”, isto é, remissão dos conteúdos da consciência a um pólo transcendental ao eu (Natorp), mas um tema altamente diferenciado, próprio da reflexão transcendental. Face a um mero estar dado dos fenômenos da consciência objetiva, de um estar dado em vivências intencionais, essa reflexão representa o acréscimo de uma nova dimensão da pesquisa. Pois há também dados que, de sua parte, não são objeto de atos intencionais. Toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde, em última análise, com o continuum das vivências presentes no anterior e posterior na unidade da corrente vivencial. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da vida. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à vida, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da “vida da consciência”. E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de vida não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego, isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente conseqüente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O “outro” aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde “se converte”, por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a [255] interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da vida, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa questão especial do direito natural, desenvolvida in extenso por Aristóteles, não nos interessa aqui tanto por si mesmo, mas por sua significação fundamental. O que Aristóteles demonstra aqui vale para todos os conceitos que o homem tem com respeito ao que ele deve ser, e não somente para o problema do direito. Todos esses conceitos não constituem um ideal arbitrário, condicionado por convenção, mas em meio à grande variedade dos conceitos morais dos diversos tempos e populações, também aqui existe algo como uma natureza das coisas. Isso não quer dizer que essa natureza das coisas, por exemplo, o ideal da valentia, seja um padrão fixo que se pudesse conhecer e aplicar por si mesmo. Aristóteles reconhece que também o professor de ética — e em sua opinião isso vale para todo homem como tal — encontra-se sempre em uma determinada vinculação moral e política, a partir da qual ele adquire a imagem das coisas. Nas imagens diretrizes que descreve tampouco ele vê um saber que se possa ensinar. Essas só têm a pretensão de valer como esquemas. Elas se concretizam sempre só na situação particular do que atua. Não são portanto normas escritas nas estrelas ou que tivessem seu lugar inalterável nalgum mundo ético natural, como se estivessem à disposição da percepção. Mas, por outro lado, tampouco são meras convenções, já que reproduzem realmente a natureza das coisas; só que esta, por sua vez, somente se determina através da aplicação que a consciência moral faz dela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nos últimos tempos especialmente Edmund Husserl dedicou atenção a essa questão, empreendendo com investigações sempre renovadas, a tarefa de esclarecer a parcialidade inerente à idealização da experiência que subjaz às ciências. Com essa intenção, Husserl oferece uma genealogia da experiência que, como experiência do mundo da vida, antecede à sua idealização pelas ciências. Entretanto, o próprio Husserl me parece também dominado pela parcialidade que critica pois ele projeta o mundo idealizado da experiência científica exata sobre a experiência original do mundo, na medida em que faz da percepção, como coisa externa e orientada à mera corporalidade, o fundamento de toda experiência ulterior. Cito literalmente: “Mesmo quando atrai logo o nosso interesse prático ou anímico com base nessa presença sensível, logo se nos oferece como algo utilizável, atrativo ou repulsivo — todavia, tudo isso se funda no fato de ser um substrato com qualidades que se percebem de uma maneira simplesmente sensível, e às quais leva sempre um caminho de possível interpretação”. A tentativa de Husserl de retroceder pela gênese do sentido à origem da experiência, e de superar assim sua idealização pela ciência, tem de lutar duramente com a dificuldade de que a pura subjetividade transcendental do ego não está dada realmente como tal, mas sempre na idealização da linguagem que é sempre inerente a toda aquisição de experiência, e na qual opera a pertença do eu individual a uma comunidade lingüística. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Se quiséssemos acrescentar também algum testemunho para este terceiro momento da essência da experiência, o mais indicado seria certamente Ésquilo. Ele encontrou a fórmula, ou melhor, a reconheceu em seu significado metafísico, fórmula que expressa a historicidade interna da experiência: aprender pelo sofrer (pathei mathos). Esta fórmula não significa somente que nos tornamos inteligentes através do dano e que somente no engano e na decepção chegamos a conhecer mais adequadamente as coisas. Assim compreendida a fórmula deveria ser tão velha como a própria experiência humana. Porém Esquilo pensa mais que isso. Refere-se à razão pela qual isto é assim. O que o homem deve aprender pelo sofrer não é isto ou aquilo, mas a percepção dos limites de ser homem, a [363] compreensão de que as barreiras que nos separam do divino não podem ser superadas. No último extremo, é um conhecimento religioso — aquele conhecimento a partir donde se dá a origem da tragédia grega. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Se aprofundamos, assim, particularmente, algumas das fases da história do problema lingüístico, isso deu-se sob a percepção de pontos de vista que estão muito distantes da moderna filosofia e da ciência da linguagem. Desde Herder e Humboldt, o pensamento moderno sobre a linguagem está dominado por um interesse muito diferente. Seu objetivo seria estudar como se desenvolve a naturalidade da linguagem humana — uma perspectiva extorquida com dificuldades do racionalismo e da ortodoxia — na amplitude de experiências da diversidade da estrutura da linguagem humana. Reconhecendo em cada língua um organismo, procura estudar em sua consideração comparativa a riqueza dos meios de que se serviu o espírito humano para exercer sua capacidade de linguagem. Um questionamento comparativo e empírico como este estaria ainda muito distante de um Nicolau de Cusa. Este se manteve fiel ao platonismo em sua idéia de que as diferenças do impreciso não contêm nenhuma verdade própria, e, por conseguinte, somente ganham algum interesse na medida em que coincidem com o “verdadeiro”. Para ele não existe um interesse pelas peculiaridades das incipientes línguas nacionais, que é o que moveria a Humboldt. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa é também a razão por que os sistemas de entendimento artificial inventados nunca se tornam linguagens. As linguagens artificiais, p. ex., as linguagens secretas ou os simbolismos matemáticos, não têm em sua base uma comunidade, nem de linguagem nem de vida, já que são introduzidos e aplicados meramente como meios e instrumentos do entendimento. Isso se estriba no fato de que pressupõem sempre um entendimento exercido ao vivo, o qual é lingüístico. É sabido que o consenso, pelo qual se introduz uma linguagem artificial, pertence necessariamente a uma outra linguagem. Por outro lado, numa comunidade lingüística real não nos pomos primeiro de acordo, mas estamos já sempre de acordo, como o mostrou Aristóteles. É o mundo que se nos apresenta na vida comum, que abrange tudo, e sobre o qual se produz o entendimento. Já os meios lingüísticos não constituem por si mesmos o objeto daquele. O entendimento sobre uma língua não é o caso normal do entendimento, mas o caso especial de um acordo com respeito a um instrumento, com respeito a um sistema de signos que não têm seu ser na conversação, mas que serve como meio a objetivos informativos. A lingüisticidade da experiência humana do mundo proporciona um horizonte mais amplo à nossa análise da experiência hermenêutica. Aqui se confirma o que já havíamos mostrado no exemplo da tradução e da possibilidade de entender-se além dos limites da própria língua: O mundo lingüístico próprio, em que se vive, não é uma barreira que impede todo conhecimento do ser em si, mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se [451] a nossa percepção. É claro que os que se criaram numa determinada tradição lingüística e cultural vêem o mundo de uma maneira diferente de como o vêem os que pertencem a outras tradições. É verdade que os “mundos” históricos, que se dissolvem uns nos outros no curso da história, são diferentes entre si e também diferentes do mundo atual. E, no entanto, o que se representa é sempre um mundo humano, isto é, estruturado linguisticamente, seja lá qual for a sua tradição. Enquanto linguisticamente estruturado, cada mundo está aberto, a partir de si a toda acepção possível e, portanto, a todo gênero de ampliações; pela mesma razão, acessível a outros. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nisso, a relação é parecida ao que ocorre com a percepção das coisas. Fenomenologicamente falando, a “coisa em si” não consiste mais que na continuidade, com a qual os matizes perspectivistas da percepção das coisas vão se alternando uns aos outros, como já mostrou Husserl. Aquele que opõe a essas “acepções” o “ser em si”, terá de pensar teologicamente — então o ser em si já não será para ele, mas sim para Deus — , ou — diabolicamente, como alguém que gostaria de demonstrar sua própria divindade, fazendo com que o mundo inteiro lhe obedeça — então o ser em si do mundo será para ele uma restrição da onipotência de sua imaginação. De uma maneira análoga à da percepção, pode-se falar da “matização lingüística” que o [452] mundo experimenta nos diversos mundos lingüísticos. Não obstante, continua existindo uma diferença característica: Na percepção das coisas, cada matização é diferente e excludente das demais e contribui para constituir a “coisa em si” como o continuum dessas matizações, enquanto que na matização das acepções lingüísticas do mundo, cada uma delas contém potencialmente todas as demais, isto é, cada uma está capacitada para ampliar-se a cada uma das outras. Está capacitada para compreender e abarcar, a partir de si, também a “acepção” do mundo que se oferece noutra língua diferente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Isso se deixa esclarecer de uma maneira muito bela no fenômeno do ritmo, que é em si mesmo um momento estrutural de todo o fenômeno de linguagem. Como já havia destacado Richard Hönigswald, em sua análise da psicologia do pensamento, a essência do ritmo encontra-se num âmbito intermédio entre ser e alma. A seqüência marcada pelo ritmo não representa necessariamente o ritmo próprio dos fenômenos. Mesmo numa seqüência uniforme, a ritmação só pode ser ouvida interiormente, de tal forma que a seqüência aparece como algo articulado ritmicamente. Ou melhor, quando se pretende que a sensibilidade perceba uma seqüência uniforme, não apenas pode como deve acabar surgindo sempre uma tal ritmação. O que significa aqui “deve”? Será contra a natureza das coisas? Certamente não. Então, o que poderá significar ainda “ritmo próprio dos fenômenos”? Eles não são exatamente o que são, apenas porque são percebidos de forma rítmica ou [75] ritmada? Isso significa que a correspondência que reina entre ambos é ainda mais originária do que aquela seqüência acústica, de um lado, e aquela percepção ritmizante, de outro. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
Não se pode chamar de experiência como tal o ponto de partida dos sentidos e de seus dados. Também aprendemos a ver como os dados de nossos sentidos articulam-se cada vez em contextos interpretativos. O mesmo acontece com a percepção — que toma algo por verdadeiro — que já interpretou os testemunhos dos sentidos antes da imediaticidade dos seus dados. Podemos pois dizer que, do ponto de vista hermenêutico, a formação dos conceitos já está sempre condicionada pela língua falada. Se isto for verdade, o único caminho filosófico convincente será tomar consciência da relação entre palavra e conceito como uma relação que determina nosso pensar. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
O melhor a fazer é examinar isso num exemplo concreto. Vejamos, por exemplo, para ficar dentro do âmbito de minha competência, a história da interpretação dos pensadores pré-socráticos no século XX. Ali, cada interpretação coloca em jogo determinados preconceitos: Joël, usa o preconceito da ciência da religião; Karl Reinhardt, o do iluminismo lógico; Werner Jaeger, um monoteísmo religioso inexplícito (como W. Bröcker mostrou de maneira brilhante [262]), e eu mesmo, quando inspirado na exposição da questão do ser de Heidegger, procuro compreender “o divino” à luz da filosofia clássica e do pensamento filosófico. Em todos esses casos pode-se perceber a atuação de um preconceito orientador, que se torna produtivo exatamente por corrigir preconceitos vigentes até o presente. Aqui não se aplicam aos textos concepções preconcebidas, mas procura-se compreender o que se encontra ali. Procura-se compreender melhor, uma vez que se percebe o preconceito do outro. Mas essa percepção só é possível porque se olha o que se encontra ali com novos olhos. A reflexão hermenêutica não é dissociável da práxis hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Somente à luz da interpretação algo se converte em fato e uma observação possui força enunciativa. A crítica de Heidegger denunciou de modo radical o dogmatismo presente no conceito fenomenológico de consciência. Com Scheler, desmascarou o dogmatismo presente no conceito de “percepção pura”. Assim na própria percepção descobriu-se a compreensão hermenêutica de algo-como-algo. Mas isso não significa compreender a interpretação como um recurso complementar do conhecimento. Ela constitui, antes, a estrutura originária do “ser-no-mundo”. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Isso se conhece no trabalho filológico como a tarefa de gerar [342] um texto legível. Mas é evidente que essa tarefa somente se impõe partindo de uma certa compreensão do texto. É só quando um texto já está decifrado e resiste à compreensão que indagamos pelo seu verdadeiro conteúdo, perguntando se a leitura tradicional ou a variante eleita era correta. O tratamento que o filólogo dá a um texto, que gera um texto legível, corresponde, pois, perfeitamente, à percepção não meramente acústica que tem lugar numa transmissão auditiva direta. Dizemos que alguém ouviu quando pôde compreender. Correspondentemente, a insegurança na percepção acústica de uma mensagem oral é parecida com a insegurança de um modo de ler. Em ambos os casos, produz-se um acoplamento com o anterior. A compreensão prévia, a expectativa de sentido e circunstâncias de todo gênero que não se encontram no texto como tal influem na apreensão do texto. Isso fica patente quando se trata de tradução a partir de uma língua estrangeira. O domínio do idioma estrangeiro é uma mera condição prévia para a tradução. Quando se fala de “texto” nesses casos significa que não se trata somente de compreendê-lo, mas de vertê-lo a outra língua. Desse modo, converte-se em “texto”, pois o que é dito nele não somente é compreendido, mas passa a ser o “objeto” que está aí frente a uma infinidade de possibilidades de traduzir o dito na “língua-meta”. Isso implica por sua vez uma relação hermenêutica. Toda tradução, mesmo a simples reprodução literal, é sempre um gênero de interpretação. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da “pre-sença”, a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base européia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler, a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt (“mundo da vida”). VERDADE E METODO II OUTROS 25.
No Teeteto, quando Platão apresenta a tese de que o conhecimento é exclusivamente percepção sensível, seguindo a Collingwood, como leitor atual, não consigo reconhecer o contexto que o levou a essa tese. No meu modo de pensar, creio que o contexto para isso é outro: a discussão gerada pelo sensualismo moderno. Essa idéia também não sofre nenhum prejuízo pelo fato de tratar-se de um “pensamento”. Um pensamento pode ser inserido em diversos contextos sem perder sua identidade (315). Gostaríamos de lembrar a Collingwood, aqui, a crítica à discussão sobre o statement de Oxford, em sua própria “Logic of Question and answer”. Creio, na verdade, que só será possível a reprodução do pensamento de Platão, quando se tiver compreendido o verdadeiro contexto platônico (o de uma teoria matemática da evidencia, que pelo que me consta ainda não tem total clareza sobre o modo de ser inteligível do matemático). Será possível compreendermos esse contexto se não suspendermos expressamente os preconceitos do sensualismo moderno? VERDADE E METODO II ANEXOS 27.