Se pensarmos a realidade da história como jogo de forças, essa idéia evidentemente não basta para urgir sua unidade. Também o que servia de guia para Herder e Humboldt, o ideal da riqueza de manifestações do humano, não alicerça como tal uma verdadeira unidade. Tem de haver algo que se mostre como meta orientadora na continuidade do acontecer. E, de fato, o lugar, que nas escatologias histórico-filosóficas de origem religiosa, e em suas versões secularizadas, estava ocupado, agora se encontra vago. Nenhuma opinião prévia sobre o sentido da história deve predeterminar a sua investigação. Mesmo assim, a pressuposição óbvia de sua investigação é que ela forma uma unidade. Deste modo, Droysen pode reconhecer expressamente o pensamento da unidade histórico-universal como idéia reguladora, ainda que não seja nenhuma representação de conteúdo do plano da providência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa descrição é, naturalmente, uma abreviação rudimentar: o fato de que toda revisão do projeto prévio está na possibilidade de antecipar um novo projeto de sentido; que projetos [272] rivais possam se colocar lado a lado na elaboração, até que se estabeleça univocamente a unidade do sentido; que a interpretação comece com conceitos prévio que serão substituídos por outros mais adequados. Justamente todo esse constante reprojetar, que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar, é o que constitui o processo que Heidegger descreve. Quem procura compreender está exposto a erros de opiniões prévias, as quais não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem ser confirmadas “nas coisas”, tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra “objetividade” que a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas, senão que no processo de sua execução acabam se aniquilando? A compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz sentido que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto à sua origem e validez. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O que afirmamos a respeito da opinião prévia do hábito lingüístico vale igualmente para as opiniões prévias de conteúdo, com as quais lemos os textos e que constituem nossa [273] pré-compreensão. Também aqui se coloca o problema de como achar a saída do cabo de força das próprias opiniões prévias. Não se pode, de modo algum, pressupor como dado geral, que o que nos é dito em um texto se encaixe sem rupturas nas próprias opiniões e expectativas. Pelo contrário, o que me é dito por alguém, em conversação, por carta, em um livro ou seja como for, encontra-se, de princípio, sob a pressuposição de que o que é exposto é sua opinião e não a minha, da qual eu tenho que tomar conhecimento, sem precisar compartilhá-la. Todavia, essa pressuposição não representa uma condição que facilite a compreensão, senão que, antes, uma nova dificuldade, na medida em que as opiniões prévias que determinam minha compreensão podem continuar completamente desapercebidas. Se elas motivam mal-entendidos, como seria possível chegar sequer a percebê-los face a um texto, onde não houver contra-objeções de um outro? Como se pode proteger um texto previamente frente a mal-entendidos? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa descrição é, de certo, um resumo grosseiro: o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unidade de sentido; que a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas “nas coisas elas mesmas”. Aqui não há outra “objetividade” além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao “texto”, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Essa exigência fundamental deve ser pensada como a radicalização de um procedimento que, na verdade, estamos constantemente empregando. Aqui não cabe a restrição, segundo a qual ao ouvir alguém ou fazer uma leitura não podemos ter nenhuma opinião prévia em relação ao conteúdo, devendo esquecer todas as opiniões próprias. Ao contrário, quando se abre espaço para a opinião do outro ou do texto, isso sempre já pressupõe a relação dessa opinião com o conjunto das opiniões próprias e vice-versa. É verdade que as opiniões representam a movimentação de uma multiplicidade de possibilidades. Dentro dessa multiplicidade do passível de opinião, isto é, dentro daquilo que um leitor pode encontrar e esperar encontrar de significativo, nem tudo é possível, e todo aquele que não leva em conta o que o outro realmente diz acabará por não poder integrá-lo à própria expectativa múltipla de sentido. Dessa forma, há aqui também um critério. A tarefa hermenêutica transforma-se assim, espontaneamente, num questionamento voltado para as coisas elas mesmas que sempre a codetermina. Com isso, a empresa hermenêutica alcança uma base sólida. Quem quiser compreender não pode de antemão abandonar-se cegamente à casualidade das próprias opiniões, para em conseqüência e de maneira cada vez mais obstinada não dar ouvidos à opinião do texto, até que esta opinião não mais se deixe ouvir, impedindo a compreensão presumida. Quem quiser compreender um texto está, ao contrário, disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto. Essa receptividade não pressupõe, no [61] entanto, uma “neutralidade” quanto à coisa, nem um anulamento de si mesmo, incluindo a apropriação seletiva das próprias opiniões e preconceitos. Há que se ter consciência dos próprios pressupostos a fim de que o texto se apresente a si mesmo em sua alteridade, de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. Quem recebe uma carta compreende suas notícias, vendo imediatamente as coisas como as viu o remetente, ou seja, considera verdadeiro o que o outro escreveu, sem procurar, por exemplo, compreender a opinião do remetente sobre o assunto. Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa. E assim como acreditamos nas notícias transmitidas por um repórter, porque ele esteve no local ou porque ele está mais a par do assunto, também frente a um texto que nos é transmitido, estamos fundamentalmente abertos à possibilidade de que ele está melhor informado do que a nossa opinião prévia o pretenderia. É só com o fracasso da tentativa de tomar por verdadeiro o que é dito que surge a pretensão de “compreender” — psicológica ou historicamente — o texto como a opinião de um outro. O preconceito da completude implica portanto não só que um texto deva expressar plenamente sua opinião, como também que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa. A partir disto, determina-se o que se pode realizar como sentido unitário e com isso o emprego da concepção prévia da completude. Assim completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa da hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a tradição ocupa entre estranheza e familiaridade, é portanto o Entre, entre a objetividade distante, referida pela história, e a pertença a uma tradição. Nesse Entre situa-se o verdadeiro local da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.