A íntima unidade de palavra e coisa era, nos tempos primitivos, algo tão natural que o nome verdadeiro era experimentado como parte de seu portador e, quando não, ao representar o outro como substituto, era experimentado como ele mesmo. É significativo que, em grego, a expressão que significa “palavra”, onoma, signifique ao mesmo tempo nome, e em particular nome próprio, isto é, apelativo. A palavra é entendida imediatamente a partir do nome. O nome é o que é em virtude de que alguém se chama assim e atende por ele. Pertence ao seu portador. A correctura de um nome se confirma em que seu portador atende por ele. Parece, por conseqüência, que pertence ao próprio ser. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Seja qual for o caso, onde Platão supera o nível de discussão do Crátilo, apontando para a sua própria dialética, tampouco encontramos outra relação com a linguagem do que a que já se discutiu a esse nível: ferramenta, cópia e produção, e julgamento da mesma a partir do modelo original, a partir das próprias coisas. Portanto, mesmo quando não reconhece ao âmbito das palavras (onomata) nenhuma função cognitiva autônoma, e precisamente quando exige a superação desse âmbito, retém o horizonte de questionamento em que se coloca a questão da “correctura” dos nomes. Inclusive quando não quer saber de uma correctura natural destes (como no contexto da sétima carta), continua mantendo, como padrão, uma relação de semelhança (omoion): cópia e modelo original continuam sendo para ele o modelo metafísico pelo qual ele pensa toda a relação com o noético. A arte do artesão tão bem quando a do demiurgo divino, a arte do orador tão bem quanto a do dialético filosófico copia no seu médium o verdadeiro ser das idéias. Sempre há uma distância (apexei). ainda que o verdadeiro dialético consiga por si mesmo superar essa distância. O elemento do verdadeiro discurso continua sendo a palavra (onoma e rema), a mesma palavra na qual a verdade se oculta até o irreconhecível e mesmo até sua completa anulação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Essa subordinação, que é logos, é pois, muito mais que a mera correspondência de palavras e coisas, tal como, em última análise, estaria correspondendo à teoria eleática do ser e como se pressupõe na teoria da cópia. Precisamente porque a verdade que o logos contém não é a da mera recepção (noein), não é um mero deixar aparecer o ser, mas coloca o ser sempre numa determinada perspectiva, reconhecendo e atribuindo-lhe algo, o portador da verdade, e, conseqüentemente também de seu contrário, não é a palavra (onoma), mas o logos. Daí segue-se também necessariamente que, a essa estrutura de relações, na qual o logos articula a coisa e precisamente com isso interpreta, lhe é inteiramente secundário seu caráter enunciativo, e, por conseguinte, sua vinculação à linguagem. Compreende-se que o verdadeiro paradigma do noético não é a palavra, mas o número, cuja designação é obviamente pura convenção e cuja “exatidão” consiste em que cada número se define por sua posição na série e é, por conseqüência, uma pura construção da inteligibilidade, um ens rationes, não no sentido de uma validez ôntica apequenada, mas no de sua perfeita racionalidade. Esse é o verdadeiro resultado a que faz referência o Crátilo, e cujas conseqüências são tão amplas que determinam, na realidade, todo o pensamento ulterior sobre a linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se a filosofia grega se obstina em não perceber essa relação ente palavra e coisa, entre falar e pensar, o motivo é que o pensamento tinha que defender-se da estreita relação entre palavra e coisa em meio à qual vive o homem falante. O domínio dessa língua, “a mais falável de todas” (Nietzsche), sobre o pensamento era tão intenso que a filosofia teve de dedicar seu (422) mais entranhado empenho à tarefa de libertar-se dele. Por isso, os filósofos gregos combateram, desde o princípio, o desvio e extravio do pensamento no “onoma” e se mantiveram, frente a isso, na idealidade que a própria linguagem realiza continuamente. Isso vale para Parmênides, que pensava a verdade da coisa partindo do logos, e vale plenamente a partir da mudança de rumo platônica na direção dos “discursos”, seguindo também pela orientação aristotélica das formas do ser nas formas da enunciação (schemata tes kategorias). Porque aqui, o logos era considerado determinado por sua orientação para o eidos, o ser próprio da linguagem só podia ser pensado como extravio, e o pensamento tinha que se esforçar em conjurá-lo e dominá-lo. A crítica da correctura dos nomes, realizada no Crátilo, representa o primeiro passo numa direção que desembocaria na moderna teoria instrumentalista da linguagem e no ideal de um sistema de signos da razão. Comprimido entre a imagem e o signo, o ser da linguagem só poderia acabar sendo nivelado em um puro ser-signo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Pois bem, também a filosofia do logos grego conhecia certamente este fato. Platão descreve o pensamento como uma conversação interior da alma consigo mesma, e a infinitude do esforço dialético que ele exige do filósofo é a expressão da discursividade da nossa compreensão finita. E, no fundo, por mais que Platão exigisse o “pensar puro”, ele mesmo não deixa de reconhecer constantemente que, para o pensamento da coisa, não se pode prescindir do meio da onoma e do logos. Mas se a doutrina da palavra interior não quer dizer outra coisa que a discursividade do pensar e do falar humano, como pode então a “palavra” ser uma analogia do processo das pessoas divinas, de que fala a doutrina da trindade? Não está em jogo nisso precisamente a oposição entre intuição e discursividade? Onde está o fator comum entre este e aquele “processo”? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.