Gadamer (VM): objetividade

A formação como elevação à universalidade é pois uma tarefa humana. Exige um sacrifício do que é particular em favor do universal. O sacrifício do particular, porém, significa negativamente: inibição da cobiça e, com isso, liberdade de seu objeto (Gegenstand) e liberdade para sua objetividade. Aqui, as deduções da dialética fenomenológica complementam o que foi escrito na “Propedêutica”. Na “Fenomenologia do Espírito” Hegel desenvolve a gênese da autoconsciência livre “em si e para si” e mostra que a essência do trabalho é formar a coisa, e não deformá-la. Na consistência autônoma que o trabalho propicia à coisa, a consciência que trabalha se reencontra a si mesma como uma consciência autônoma. O trabalho é a cobiça inibida. Ao formar o objeto, portanto, enquanto ela é ativa de modo destituído do próprio e em busca de um sentido universal eleva-se a consciência que trabalha, acima do imediatismo de sua existência rumo à universalidade — ou, como Hegel se expressa: ao formar a coisa, forma-se a si mesmo. O que ele quer dizer é o seguinte: enquanto o homem está adquirindo um “poder” (Können), uma habilidade, ganha ele, através disso, uma consciência de senso próprio. O que pareceu ser-lhe negado no destituir-se do próprio, no servir, na medida em que ele se submeteu totalmente a um sentido que lhe era estranho, volta em seu proveito, na medida em que ele é uma consciência laboriosa. Como tal encontra ele em si mesmo um sentido próprio, sendo perfeitamente correto dizer do trabalho: ele forma. O senso próprio (Selbstgefühl) da consciência laboriosa contém todos os momentos daquilo que perfaz uma formação prática: distanciamento da imediatez da cobiça, das necessidades pessoais e do interesse privado e a exigência de um sentido universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Seja como for, parece claro que Dilthey não vê na vinculação do homem finito e histórico ao seu ponto de partida um prejuízo fundamental da possibilidade do conhecimento espiritual-científico. A consciência histórica teria de realizar em si mesma uma tal superação da própria relatividade, que, com isso, torne possível a objetividade do conhecimento espiritual-científico. E tem-se de indagar como se deve justificar essa pretensão, sem implicar um conceito do saber absoluto, filosófico, para além de toda a consciência histórica. Qual é a distinção da consciência histórica — face a todas as demais formas de consciência da história — , para que seus próprios condicionamentos não devam suspender a sua pretensão fundamental de alcançar um conhecimento objetivo? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Algo assim poderia também ser encontrado em Droysen, mas em Dilthey possui um matiz próprio. Tanto na direção da contemplação como na da reflexão prática surge, segundo Dilthey, a mesma tendência da vida: a “aspiração à estabilidade”. A partir disso compreende-se que Dilthey pudesse considerar a objetividade do conhecimento científico e da auto-reflexão filosófica como a realização suprema da tendência natural da vida. O que guia a reflexão de Dilthey não é uma adaptação externa da metodologia das ciências do espírito aos procedimentos das ciências da natureza, mas o fato de que detecta em ambas uma comunidade genuína. A essência do método experimental é a elevação acima da casualidade subjetiva da observação, e com ajuda disso dá-se o conhecimento da regularidade da natureza. Assim, as ciências do espírito também procuram elevar-se metodicamente acima da casualidade subjetiva do próprio ponto de partida e da tradição que lhes é acessível, alcançando assim a objetividade do conhecimento histórico. A própria auto-reflexão filosófica encaminha-se na mesma direção, na medida em que “se torna objetiva para si mesma como fato humano e histórico” e renuncia à pretensão de alcançar um conhecimento puro a partir de conceitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É verdade que o próprio Dilthey sempre levou em consideração essa objeção e procurou uma solução para a questão pelo modo como é possível a objetividade, dentro da relatividade, e como pode-se pensar a relação do finito com o absoluto. A tarefa é expor como se ampliaram esses conceitos de valor, relativos à época, a algo absoluto”. Em Dilthey, porém, será vã a procura de uma resposta real a esse problema do relativismo, e isto não porque ele jamais tenha encontrado a resposta certa, mas porque essa não era sua própria e verdadeira pergunta. Antes, no desenvolvimento da auto-reflexão histórica que o levava de relatividade a relatividade, ele se soube sempre no caminho rumo ao absoluto. Nesse sentido, Ernst Troeltsch resumiu perfeitamente o trabalho de toda a vida de Dilthey na formulação: da relatividade à totalidade. A fórmula que Dilthey emprega para isso diz o seguinte: “Ser conscientemente um ser condicionado” — uma fórmula que se dirige abertamente contra a pretensão da filosofia da reflexão, pretensão de deixar para trás todas as barreiras da finitude, ascendendo para o absoluto e para o infinito do espírito, para a consumação e a verdade da autoconsciência. No entanto, sua incansável reflexão sobre a objeção do “relativismo” mostra que ele não pôde manter realmente a conseqüência de sua investida da filosofia da vida contra a filosofia da reflexão do idealismo. Não fosse assim, ele teria de reconhecer, na objeção do relativismo, o “intelectualismo”, a que seu próprio ponto de partida da imanência do saber na vida pretendia minar pela base. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa ambigüidade tem seu fundamento último na falta de unidade interna de seu pensamento, no resíduo do cartesianismo, donde ele parte. Suas reflexões epistemológicas sobre a fundamentação das ciências do espírito não se coadunam bem com seu ponto de partida na filosofia da vida. Nas suas anotações mais tardias encontra-se um testemunho eloqüente. Ali, Dilthey exigirá a toda fundamentação filosófica que se estenda a todo o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de [242] vista da reflexão e da dúvida”. Essa frase parece uma afirmação inocente sobre a essência da ciência e da filosofia da época moderna como tal. Não há como não perceber uma ressonância cartesiana. Na verdade, porém, essa frase encontra sua aplicação em um sentido totalmente diferente, quando Dilthey continua: “Por toda parte a vida conduz a reflexões sobre o que está colocado nela, a reflexão quanto à dúvida, e somente se a vida quiser se firmar frente a esta, então e somente então pode o pensamento acabar sendo um saber válido”. Aqui já não mais existem preconceitos filosóficos que têm de ser superados por uma fundamentação epistemológica ao estilo de Descartes, já que se trata de realidades da vida, de tradições dos costumes, da religião e do direito positivo, que são desintegrados pela reflexão e necessitam de uma nova ordem. Quando Dilthey fala aqui do saber e da reflexão, não está querendo aludir à imanência geral do saber na vida, mas a um movimento dirigido contra a vida. Ao contrário, a tradição dos costumes, da religião e do direito repousa, de sua parte, sobre um saber da vida a partir de si mesma. Inclusive já vimos que na entrega à tradição, na qual certamente está envolvido algum saber, realiza-se a ascensão do indivíduo ao espírito objetivo. Terá de se concordar prazerosamente com Dilthey que a influência do pensamento sobre a vida “procede da necessidade interna de estabelecer algo fixo em meio à mudança inconstante das percepções sensoriais, dos desejos e sentimentos, algo fixo e estável que torne possível um modo de vida continuado e unitário”. Mas esse desempenho do pensamento é imanente à própria vida e se realiza nas objetivações do espírito que, como costumes, direito e religião sustentam o indivíduo, na medida em que este se entrega à objetividade da sociedade. O fato de que, para isso, tenha-se de adotar “o ponto de vista da reflexão e da dúvida” e que esse trabalho se realize “em todas as formas de reflexão e científica (e não fora disso), não se coaduna, em absoluto, com as idéias da filosofia da vida de Dilthey. Antes, aqui se descreve o ideal específico do Aufklärung científico, que bem pouco concorda com a reflexão imanente da vida, justamente ao modo como foi o “intelectualismo” do Aufklärung, contra o qual se orienta a fundamentação de Dilthey no fato da filosofia da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A partir disso pode-se entender o que Dilthey vincula à hermenêutica romântica. Com a sua ajuda consegue ele cobrir a diferença entre a essência histórica da experiência e a forma de conhecimento da ciência, ou melhor, pôr em consonância a forma de conhecimento das ciências do espírito com os padrões metodológicos das ciências da natureza. Já vimos acima que o que o levou a isso não foi uma adaptação externa. Reconhecemos agora que não o conseguiu sem descuidar a própria e essencial historicidade das ciências do espírito. Isso se torna claro no conceito de objetividade válida nas ciências da natureza. E por isso que Dilthey gosta de empregar a palavra “resultados” e de demonstrar pela descrição da metodologia das ciências do espírito sua igualdade de categoria com as ciências da natureza. Para isso a hermenêutica romântica veio-lhe ao encontro, na medida em que, como já vimos, esta própria não levava em conta a essência histórica da experiência. Pressupunha que o objeto da compreensão é o texto a ser decifrado e compreendido em seu sentido. Assim, todo encontro com um texto é, para ela, um auto-encontro do espírito. Todo texto é suficientemente estranho para representar uma tarefa, e, no entanto, suficientemente familiar para manter sua essencial possibilidade de resolução, mesmo quando não se saiba de um texto a não ser que é texto, escrito ou espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É indubitável que, com isso, não se satisfaça ao objetivo da escola histórica. A hermenêutica romântica e o método filológico, sobre os quais ela se ergue, não são base suficiente para a história; da mesma forma, não é satisfatório para Dilthey o conceito dos procedimentos indutivos que se pede emprestado [246] às ciências da natureza. A experiência histórica, tal como ele fundamentalmente a entende, não é um procedimento e não possui a anonimidade de um método. Certamente que dela se podem deduzir regras de experiência gerais, mas o seu valor metodológico não é o do conhecimento de leis, sob as quais se possam subsumir univocamente os casos que apareçam. Antes, as regras da experiência exigem um uso já experimentado e são, no fundo, o que são apenas nesse uso particular. Frente a essa situação é preciso admitir que o conhecimento das ciências do espírito não é o mesmo das ciências indutivas, mas possui uma objetividade bem diferente e deve ser adquirido de uma maneira totalmente diversa. A fundamentação das ciências do espírito na filosofia da vida de Dilthey e a sua crítica a todo dogmatismo, bem como ao dos empiristas, procuram tornar válido exatamente isso. Mas o cartesianismo epistemológico, ao qual não consegue escapar, acabou sendo mais forte, de maneira que, para Dilthey, a historicidade da experiencia histórica não chegou a se tornar verdadeiramente determinante. É verdade que Dilthey não menosprezou a significação que tem a experiencia de vida, tanto individual como universal, para o conhecimento das ciencias do espirito — mas ambos, para ele, são determinados de maneira meramente privada. Trata-se de uma indução não-metódica, carente de verificação, que já aponta para a indução metódica da ciencia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Se nos lembrarmos agora do estado da auto-reflexão das ciencias do espírito, que nos serviu de ponto de partida, iremos reconhecer que a contribuição de Dilthey é particularmente característica para isso. A discrepancia que domina seus esforços nos torna patente o grau de coação que procede do pensamento metódico da ciência moderna, e que o que importa é descrever mais adequadamente a experiência operada nas ciencias do espírito e a objetividade que se pode alcançar nelas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isso é que se ganhou a idéia da “fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda suposição do ser e a investigação dos modos subjetivos de estarem dadas as coisas, fazendo-se disso um programa universal de trabalho, o que teria que tornar compreensível toda objetividade, todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana possui validez ôntica. Nessa perspectiva, deve também ser vista como “fenômeno”, ou seja, também ela deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de encontrar-se dada. Essa investigação do eu como fenômeno não é “percepção interna” de um eu real, mas tampouco é mera reconstrução da “consciencialidade”, isto é, remissão dos conteúdos da consciência a um pólo transcendental ao eu (Natorp), mas um tema altamente diferenciado, próprio da reflexão transcendental. Face a um mero estar dado dos fenômenos da consciência objetiva, de um estar dado em vivências intencionais, essa reflexão representa o acréscimo de uma nova dimensão da pesquisa. Pois há também dados que, de sua parte, não são objeto de atos intencionais. Toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde, em última análise, com o continuum das vivências presentes no anterior e posterior na unidade da corrente vivencial. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de [253] fato ameaça despedaçar essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele alcança o conceito “vida”. “Vida” não é meramente o “ir vivendo” da atitude natural. “Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida” encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “vida produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas…” Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da vida. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Se acompanharmos essas e outras indicações lingüísticas e conceituais parecidas, que se encontram de quando em quando em Husserl, sentimo-nos próximos do conceito especulativo da “vida” do idealismo alemão. O que Husserl pretende dizer é, sem dúvida, que não se deve pensar a subjetividade como oposta à objetividade, porque esse conceito de subjetividade estaria então sendo pensado de maneira objetivista. Sua fenomenologia transcendental pretende ser, ao contrário, uma “investigação de correlações”. Mas isso quer dizer que o primário é a relação, e que os “pólos” nos quais se desenrola estão circunscritos por ela, da mesma forma que o ser vivo circunscreve todas as suas manifestações vitais na unidade do seu ser orgânico. “A ingenuidade do discurso que fala da ‘objetividade’, que deixa totalmente fora de questão a subjetividade, a qual experimenta e conhece e é a única que produz de uma maneira [254] verdadeiramente concreta; a ingenuidade do cientista da natureza e do mundo em geral, que é cego para o fato de que todas as verdades que ele ganha como objetivas, e mesmo o próprio mundo objetivo que é o substrato de suas fórmulas, é a sua própria configuração de vida, que se tornou nele mesmo — essa ingenuidade deixa de ser possível na medida em que se coloca a vida como objeto de consideração”. É o que escreve Husserl com relação a Hume. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma [256] de toda vida, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl, mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey. O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como “conceber a partir da vida”, tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente [259] radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma “hermenêutica da facticidade” Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro “cogito”, como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma idéia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado [260] a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A idéia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença, que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença, pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O esforço de Dilthey para tornar compreensíveis as ciências do espírito a partir da vida e para tomar como ponto de partida a experiência vital, não havia chegado nunca a equiparar-se realmente com o conceito cartesiano da ciência, a que se mantinha apegado. Por mais que ele acentuasse a tendência contemplativa da vida e o “impulso à estabilidade” que lhe é inerente, a objetividade da ciência, ao modo como ele a entendia, como uma objetividade dos resultados, provinha de uma origem diferente. Foi por isso que Dilthey não conseguiu superar as tarefas que ele mesmo havia escolhido e que consistiam em justificar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências do espírito, equiparando-se assim em dignidade com as da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Em face disso, Heidegger pôde empreender um caminho completamente diferente, porquanto Husserl, como já se viu, já tinha convertido o recurso à vida num tema de trabalho praticamente universal, deixando para trás, com isso, a redução à questão do método das ciências do espírito. Sua análise do mundo da vida e da fundação anônima de sentido, que constitui o terreno de toda experiência, proporcionou um contexto completamente novo ao problema da objetividade da ciência como um caso especial. A ciência pode ser tudo, menos um factum de que se tivesse de partir. Antes, a constituição do mundo científico propõe uma tarefa própria, ou seja, a tarefa de esclarecer a idealização que se dá junto com a ciência. Mas essa não é a primeira tarefa. Com o recurso à “vida produtiva” a oposição entre natureza e espírito não se mostra como a única que vale. Tanto as ciências do espírito como as da natureza deverão derivar-se dos desempenhos da intencionalidade da vida universal, portanto, de uma historicidade absoluta. Essa é a única forma de compreender, através da qual a auto-reflexão da filosofia faz justiça a si mesma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a idéia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas conseqüências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas conseqüências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Essa descrição é, naturalmente, uma abreviação rudimentar: o fato de que toda revisão do projeto prévio está na possibilidade de antecipar um novo projeto de sentido; que projetos [272] rivais possam se colocar lado a lado na elaboração, até que se estabeleça univocamente a unidade do sentido; que a interpretação comece com conceitos prévio que serão substituídos por outros mais adequados. Justamente todo esse constante reprojetar, que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar, é o que constitui o processo que Heidegger descreve. Quem procura compreender está exposto a erros de opiniões prévias, as quais não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem ser confirmadas “nas coisas”, tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra “objetividade” que a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas, senão que no processo de sua execução acabam se aniquilando? A compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz sentido que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto à sua origem e validez. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não há dúvidas de que é uma provocação à autocompreensão das ciências do espírito libertar-se, no conjunto de suas atividades, do modelo das ciências da natureza, e considerar a mobilidade histórica de seu tema não somente como um prejuízo de sua objetividade, mas também como algo positivo. Nesse meio tempo, surgiram no novo desenvolvimento das próprias ciências do espírito algumas iniciativas visando a um gênero de reflexão que verdadeiramente pode fazer jus ao estado do problema. O metodologismo ingênuo da investigação histórica já não domina sozinho o campo. O progresso da investigação já não se entende de modo generalizado como expansão e penetração em novos âmbitos e materiais, senão que, em vez disso, como o alcançar um nível de reflexão mais elevado dentro dos correspondentes questionamentos. É evidente que, mesmo desse ponto de vista, continua-se pensando teleologicamente, sob o padrão do progresso da investigação, como sempre convém ao investigador. Porém, junto a isso começa a entrever-se também uma consciência hermenêutica que perpassa a investigação com um interesse mais auto-reflexivo. Isso ocorre sobretudo nas ciências do espírito que contam com uma tradição mais antiga. A ciência clássica da antigüidade, por exemplo, depois de ter elaborado sua própria tradição em círculos cada vez mais extensos, voltou-se sempre de novo, com questionamentos cada vez mais afinados, para os velhos objetos preferenciais de sua ciência. Com isso introduziu uma espécie de autocrítica, na medida em que começou a refletir sobre o que perfaz realmente a excelência de seus objetos mais excelentes. O conceito do clássico, que no pensamento histórico, a partir do descobrimento do helenismo por Droysen, tinha sido reduzido a um mero conceito estilístico, obtém agora um novo direito de cidadania. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Quando Schleiermacher e, seguindo seus passos, a ciência do século XIX vão mais além da “particularidade” dessa reconciliação da antigüidade clássica e cristianismo e concebem a tarefa da hermenêutica a partir de uma generalidade formal, conseguem estabelecer a concordância com o ideal de objetividade próprio das ciências da natureza, mas somente ao preço de renunciar a fazer valer a concreção da consciência histórica dentro da teoria hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição. Existe realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, e nela se baseia a tarefa da hermenêutica, mas não no sentido psicológico de Schleiermacher, como o âmbito que oculta o mistério da individualidade, mas num sentido verdadeiramente hermenêutico, isto é, com a atenção posta no que foi dito: a linguagem em que nos fala a tradição, a saga que ela nos conta. Também aqui se manifesta uma tensão. Ela se desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós, entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma tradição. E esse entremeio (Zwischen) é o verdadeiro lugar da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O tempo já não é mais, primariamente, um abismo a ser transposto porque divide e distancia, mas é, na verdade, o fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes. A distância de tempo não é, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. Esta era, antes, a pressuposição ingênua do historicismo, ou seja, que era preciso deslocar-se ao espírito da época, pensar segundo seus conceitos e representações em vez de pensar segundo os próprios, e somente assim se poderia alcançar a objetividade histórica. Na verdade trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um abismo devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição, a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido. Não será exagerado, se falarmos aqui de uma genuína produtividade do acontecer. Todo o mundo conhece essa peculiar impotência do juízo, aí onde não há a distância de tempo a nos proporcionar padrões seguros. Assim, o juízo sobre a arte contemporânea reveste, para a consciência científica, uma desesperadora insegurança. Quando nos aproximamos destas criações o fazemos, evidentemente, a partir de preconceitos incontroláveis, pressuposições que possuem sobre nós demasiado [303] poder para que possamos conhecê-las, e que conseguem conferir à criação contemporânea uma hiper-ressonância que não corresponde ao seu verdadeiro conteúdo e significado. Somente a extinção de todos os nexos atuais torna visível sua verdadeira forma e possibilita, com isso, uma compreensão do que é dito neles, que possa pretender alcançar uma generalidade vinculante. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na suposta ingenuidade da nossa compreensão, na qual nos guiamos pelo padrão da compreensibilidade, o outro se mostra a partir do próprio, e isso de tal modo que ele não se expressa mais, em absoluto, como próprio e como outro. O objetivismo histórico, na medida em que apela para o seu método crítico, oculta o entrelaçamento efeitual-histórico em que se encontra a própria consciência histórica. É verdade que, graças ao seu método crítico, ele desmorona a arbitrariedade e o capricho de certos atualizadores congraçamentos com o passado, mas com isso ele se livra da má consciência de negar aquelas pressuposições que não são arbitrárias nem aleatórias, mas sustentadoras, as quais guiam seu próprio compreender; dessa forma negligencia a verdade que seria acessível, apesar de toda finitude de nossa compreensão. Nisso o objetivismo histórico se parece à estatística, que é um meio propagandístico tão distinto por deixar falar a linguagem dos fatos, e aparenta assim uma objetividade que, na verdade, depende da legitimidade de seu questionamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a idéia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da “congenialidade” que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um “saber dominador”, isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não me pareceria suficiente limitar a tarefa do historiador do direito à “reconstrução do sentido original do conteúdo da fórmula legal”, e ao contrário, dizer do jurista, que “ele deve, além disso, pôr em concordância aquele conteúdo, com a atualidade presente da vida”. Uma delimitação desse tipo implicaria que o labor do jurista é o mais amplo, e incluiria em si também o do historiador. Quem quiser adaptar adequadamente o sentido de uma lei tem de conhecer também o seu conteúdo de sentido originário. Ele tem de pensar também em termos histórico-jurídicos. Só que a compreensão histórica não seria, aqui, mais do que um meio para um fim. Na direção oposta, a tarefa jurídico-dogmática não interessa ao historiador como tal. Como historiador ele se movimenta numa contínua confrontação com a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicionai na história, enquanto que o jurista, além disso, procura reconduzir essa compreensão para a sua adaptação ao presente jurídico. A descrição de Betti trilha mais ou menos esse caminho. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso é exatamente o que se tem de reter para a análise da consciência da história efeitual: que ela tem a estrutura da experiência. Por paradoxal que seja, o conceito da experiência me parece um dos menos que possuímos. Devido ao papel orientador que desempenha na lógica da indução, para as ciências da natureza, viu-se submetido a uma esquematização epistemológica que me parece encurtar amplamente seu conteúdo originário. Gostaria de recordar que já Dilthey acusava, no empirismo inglês, uma certa falta de formação histórica. Para nós, que detectamos em Dilthey uma vacilação não explícita entre o motivo da “filosofia da vida” e o da teoria da ciência, essa nos parece somente uma crítica pela metade. De fato, a deficiência da teoria da experiência, que constatamos até hoje, e que afeta também a Dilthey, consiste em que ela está integralmente orientada para a ciência e, por conseguinte, não percebe a historicidade interna da experiência. O escopo da ciência é objetivar a experiência até que fique livre de qualquer momento histórico. No experimento natural-científico consegue-se isso através do modo de seu aparato metodológico. Algo parecido realiza também o método histórico-crítico nas ciências do espírito. Num e noutro caso a objetividade ficaria garantida pelo fato de que as experiências que jazem ali poderiam ser repetidas por qualquer pessoa. Tal como na ciência da natureza os experimentos têm de ser possíveis de comprovação posterior, também nas ciências do espírito o procedimento completo tem que ser passível de controle. Nesse sentido, na ciência não pode restar lugar para a historicidade da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Aplicando ao problema hermenêutico a forma de comportamento com relação ao tu e de compreensão do tu, que representa o conhecimento de pessoas, achamos como correlato dele a fé ingênua no método e na objetividade que este proporciona. Aquele que compreende a tradição dessa maneira a converte em objeto, e isso significa que se confronta com ela livremente, sem ver-se afetado, e que adquire certeza com respeito ao seu conteúdo, desconectando metodicamente todos os momentos subjetivos de sua relação para com ela. Já vimos como, desse modo, ele se liberta da sobrevivência da tradição, na qual ele próprio tem sua realidade histórica. Este é o método das ciências sociais correspondente à metodológica do século XVII e sua formulação pragmática por Hume, na realidade um clichê extraído da metodologia natural-científica. Do [35] procedimento efetivo das ciências do espírito toma-se um aspecto parcial, e este reduzido esquematicamente, na medida em que só se reconhece no comportamento humano o que é típico e regular. A essência da experiência hermenêutica fica assim nivelada da mesma maneira que tivemos ocasião de perceber na interpretação teleológica do conceito da indução, desde Aristóteles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

No terreno hermenêutico o correlato dessa experiência do tu é o que se costuma chamar a consciência histórica. A consciência histórica tem notícia da alteridade do outro e do passado em sua alteridade, tal como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. No outro do passado não busca o caso de uma regularidade geral, mas algo historicamente único. Mas, na medida em que nesse reconhecimento procura elevar-se por inteiro acima de seu próprio condicionamento, fica aprisionado na aparência dialética, pois o que realmente procura é tornar-se ao mesmo tempo senhor do passado. Isto não precisa acontecer nos moldes da pretensão especulativa de uma filosofia da história universal — pode também rebrilhar como o ideal do esclarecimento consumado, que ilumina o caminho de experiência das ciências históricas, como vimos, por exemplo, em Dilthey. Já revelamos a aparência dialética que a consciência histórica produz, e que é correlata da aparência dialética da experiência consumada no saber, quando na nossa análise da consciência hermenêutica descobrimos que o ideal . do esclarecimento histórico é algo irrealizável. Aquele que se crê seguro na sua falta de preconceitos, porque se apoia na objetividade de seu procedimento e nega seu próprio condicionamento histórico, experimenta o poder dos preconceitos que o dominam incontroladamente como uma vis a tergo. Aquele que não quer conscientizar-se dos preconceitos que o dominam acaba considerando erroneamente o que vem a se mostrar sob eles. É como na relação entre o eu e o tu. Aquele que sai reflexivamente da reciprocidade de uma tal relação altera-a e destrói sua vinculatividade moral. Da mesma maneira, aquele que sai reflexivamente da relação vital para com a tradição destrói o verdadeiro sentido desta. A consciência histórica que quer compreender a tradição não pode abandonar-se à forma metódico-crítica de trabalho com que se aproxima das fontes, como se ela fosse suficiente para proteger contra a intromissão dos seus próprios juízos e preconceitos. Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade. Estar na tradição não [367] restringe a liberdade do conhecer, mas a faz possível, como já o formulamos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A desconexão do que “é” a linguagem, para além de seu funcionamento teleológico como coisa-signo, isto é, a auto-superação da linguagem através de um sistema de símbolos artificiais definidos univocamente, esse ideal do Aufklärung dos séculos XVIII e XX, representou ao mesmo tempo a linguagem ideal, porque corresponder-lhe-ia o todo do cognoscível, o ser como a objetividade absolutamente disponível. Nem sequer valeria a objeção fundamental de que não se pode pensar uma tal linguagem matemática de signos, sem uma linguagem que introduza suas convenções. Esse problema de uma “metalinguagem” será irresolúvel, porque encerra um processo interativo. Entretanto, a inesgotabilidade desse processo não diz nada contra o reconhecimento básico do ideal a que se aproxima. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em conseqüência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação lingüística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

De outra parte, a objetividade que a ciência conhece, e através da qual ela própria recebe sua objetividade, faz parte das relatividades que abrangem a relação da linguagem com o mundo. Nela o conceito do “ser em si” obtém o caráter de uma determinação volitiva. O que é em si é independente do que queremos ou escolhemos. Não obstante, quando o conhecemos em seu ser em si, torna-se disponível, de uma maneira tal, que se pode contar com isso, integrando-o nos próprios objetivos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Se retivermos isso, já não poderemos continuar confundindo a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem com a objetividade (Objektivität) da ciência. A distância inerente à relação lingüística para com o mundo não proporciona, por si mesma, e enquanto tal, esse outro gênero de objetividade que produzem as ciências naturais, eliminando os elementos subjetivos do conhecer. A distância e a objetividade da linguagem é também, evidentemente, um verdadeiro produto que não se faz por si. Já sabemos quanto contribui ao domínio de uma experiência o apreendê-la em linguagem. Com eia parece como se se pusesse distância à sua imediatez ameaçadora fulminante, como se fosse reduzida às devidas proporções, se tornasse comunicável e domesticada. No entanto, essa maneira de dominar a experiência é claramente diferente de sua elaboração pela ciência, que a objetiva e a torna disponível para fins de seu desígnio. Quando o cientista reconheceu as leis de um processo da natureza, ele recebeu algo em suas mãos e pode tentar ver se pode reconstruí-lo. Na experiência natural do mundo, tal como é cunhada linguisticamente, não há nada disso. Falar não significa, de maneira alguma, tornar coisas disponíveis e calculáveis. E não somente porque o enunciado e o juízo representam uma mera forma especial, dentro da multiplicidade do comportamento lingüístico, mas porque essa experiência permanece, ela mesma, entrelaçada no comportamento vital. A ciência objetivadora considera, por isso, a conformação lingüística da experiência natural do mundo como uma fonte de preconceitos. Como ensina o exemplo de Bacon, a nova ciência, com seus métodos de medição matemática, teria que abrir um espaço para seus próprios planos construtivos de investigação, precisamente contra o preconceito da linguagem e sua ingênua teleología. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

De outra parte, existe um nexo positivo e objetivo entre a objetividade da linguagem e a capacidade do homem para fazer ciência. Isso se mostra de um modo particularmente claro na ciência antiga, cuja procedência, a partir da experiência lingüística do mundo, constitui ao mesmo tempo a sua caracterização e a sua debilidade específicas. Para poder superar sua debilidade, o seu ingênuo antropocentrismo, a ciência moderna teve de renunciar também à sua caracterização, isto é, à sua [458] integração no comportamento natural do homem no mundo. Isso pode ser ilustrado muito bem com o conceito de “teoria”. O que se chama teoria, dentro da ciência moderna, pelo que parece, quase mais nada tem a ver com aquela atitude de observar e saber, na qual os gregos acolhiam a ordem do mundo. A teoria moderna é um meio construtivo, pelo qual reúnem-se unitariamente experiências e torna-se possível seu domínio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão por referência a Kant, e a idéia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento “mecânico” da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da idéia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache), que ainda tem a dignidade da “coisa” (“Ding”). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por conseqüência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da dialética na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A dialética, esse antagonista do logos, não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da dialética grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua dialética das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Quando relacionamos com o pano de fundo da metafísica geral esse conceito da pertença, que ganhamos a partir das aporias do historicismo, não é que pretendamos renovar a doutrina clássica da inteligibilidade do ser, nem transpô-la ao mundo histórico. Toda a coisa não faria mais que repetir Hegel, uma repetição que não se sustentaria nem ante Kant e a experiência da ciência moderna, nem menos ainda ante uma experiência da história que já não se encontra guiada pelo saber de nenhuma redenção. Quando rebaixamos o conceito do objeto e da objetividade da compreensão em direção a uma mútua pertença do subjetivo e do objetivo, limitamo-nos a seguir uma necessidade da coisa. Já a crítica à consciência, tanto estética como histórica, obrigou-nos a criticar o conceito do objetivo e forçou-nos a nos apartar da fundamentação cartesiana da ciência moderna, para ressuscitar certos “momentos de verdade do pensamento grego. Não obstante, não podemos seguir simplesmente nem os gregos nem a filosofia da identidade do idealismo alemão: Nós pensamos a partir do mediu da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição lingüística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu [480] conhecimento metodologicamente. Anatemiza, conseqüentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da lingüisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer lingüístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Na engenhosa interpretação agostiniana do “Gênesis” reconhecemos um prenúncio daquela interpretação especulativa da linguagem que desenvolvemos na análise estrutural da experiência hermenêutica do mundo, segundo a qual a multiplicidade do que é pensado surge somente a partir da unidade da palavra. Ao mesmo tempo podemos reconhecer que a [488] metafísica da luz faz valer um aspecto do conceito antigo do belo, que pode afirmar seu direito inclusive à margem de sua relação com a metafísica da substância e da referência metafísica do espírito divino infinito. O resultado da nossa análise da posição do belo na filosofia grega clássica é, pois, que, também para nós, esse aspecto da metafísica pode, todavia, adquirir um significado produtivo. O fato de que o ser seja um representar-se, e de que todo compreender seja um acontecer, essa primeira e essa última perspectiva superam o horizonte da metafísica da substância do mesmo modo que o experimentou o conceito da substância ao converter-se nos conceitos da subjetividade e da objetividade científicas. Desse modo, a metafísica do belo não carece de conseqüências para o nosso próprio questionamento. Já não se trata, como se mostrou na tarefa da discussão do século XIX, de justificar pela teoria da ciência a pretensão de verdade da arte e do artístico — ou também a da história e a da metodologia das ciências do espírito. A tarefa que nos é colocada agora é muito mais geral: consiste em fazer valer o pano de fundo ontológico da experiência hermenêutica do mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (Dasein) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit), mas que importa sobretudo “elaborar a diferença genérica entre o [34] ôntico e o histórico”. O ser da pre-sença humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença temporal do homem “tem um mundo”. Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença histórica do homem é tempo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

II — Escutar a tradição e situar-se nela é o caminho para a verdade que se deve encontrar nas ciências do espírito. A própria crítica que fazemos à tradição, enquanto historiadores, acaba servindo ao objetivo de localizar-nos na autêntica tradição em que nos encontramos. O condicionamento, portanto, não prejudica o conhecimento histórico, sendo um momento da própria verdade. Precisa ser levado em conta se não quisermos agir arbitrariamente com relação a ele. Deve-se considerar aqui como “científico” destruir o fantasma de uma verdade desvinculada do ponto de vista do sujeito cognoscente. Este é o sinal de nossa finitude, e ao permanecermos imbuídos de sua idéia ficamos protegidos da ilusão. A crença ingênua na objetividade do método histórico foi uma dessas ilusões. O que veio, no entanto, a ocupar o seu lugar não é um relativismo frouxo. O que nós mesmos somos e o que conseguimos ouvir do passado não é casual e nem arbitrário. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Essa descrição é, de certo, um resumo grosseiro: o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unidade de sentido; que a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas “nas coisas elas mesmas”. Aqui não há outra “objetividade” além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao “texto”, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. Quem recebe uma carta compreende suas notícias, vendo imediatamente as coisas como as viu o remetente, ou seja, considera verdadeiro o que o outro escreveu, sem procurar, por exemplo, compreender a opinião do remetente sobre o assunto. Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa. E assim como acreditamos nas notícias transmitidas por um repórter, porque ele esteve no local ou porque ele está mais a par do assunto, também frente a um texto que nos é transmitido, estamos fundamentalmente abertos à possibilidade de que ele está melhor informado do que a nossa opinião prévia o pretenderia. É só com o fracasso da tentativa de tomar por verdadeiro o que é dito que surge a pretensão de “compreender” — psicológica ou historicamente — o texto como a opinião de um outro. O preconceito da completude implica portanto não só que um texto deva expressar plenamente sua opinião, como também que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa. A partir disto, determina-se o que se pode realizar como sentido unitário e com isso o emprego da concepção prévia da completude. Assim completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa da hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a tradição ocupa entre estranheza e familiaridade, é portanto o Entre, entre a objetividade distante, referida pela história, e a pertença a uma tradição. Nesse Entre situa-se o verdadeiro local da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Desse posto intermediário em que se posiciona a hermenêutica, segue-se que o seu núcleo é exatamente o que até o presente havia sido deixado completamente à margem pela hermenêutica: a distância temporal e seu significado para a compreensão. O tempo não é primeiramente um abismo que se deve ultrapassar porque separa e distancia. É na verdade o fundamento sustentador do acontecer, onde se enraíza a compreensão atual. Desse modo, a distância temporal não é algo que deva ser superado. A pressuposição ingênua do historicismo era a exigência de se transferir para o espírito da época, de se pensar com os conceitos e representações da época e não com os próprios e, desse modo, forçar uma passagem para a objetividade histórica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Surge aqui a máxima da objetividade (Sachlichkeit), conhecida também como a reflexão da filosofia, a partir da famosa frase de Bacon, que Kant escolheu como lema de sua Crítica da razão pura: De nobis ipsis silemus, de re autem quae agitur… VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Entre os clássicos do pensamento filosófico, Hegel é um dos maiores defensores dessa objetividade (Sachlichkeit). Fala sobre a ação da coisa e caracteriza a verdadeira especulação filosófica pelo fato de que na objetividade (Sachlichkeit) estaria atuando a própria coisa (Sache) e não o capricho livre das idéias que nos ocorrem, isto é, de nosso comportamento reflexivo para com a coisa (Sache). Também a conhecida máxima fenomenológica “para as coisas elas mesmas”, que cunhou uma nova atitude de investigação filosófica no princípio do século, tem em mente algo parecido. O que a análise fenomenológica quis colocar a descoberto foram as pressuposições incontroladas das construções e teorias inadequadas, preconceituosas e arbitrárias, demonstrando sua ilegitimidade pela análise imparcial. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

O conceito de coisa (Sache) não traduz apenas o conceito jurídico romano de res; a palavra alemã Sache (coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra latina causa. No uso da língua alemã, a palavra Sache significa em primeiro lugar causa, isto é, a coisa (Sache) litigada, que está em questão. Originalmente é a coisa que se coloca no centro entre as partes litigantes, porque ainda não se tendo sentenciado sobre ela há que se tomar uma decisão. A coisa (Sache) precisa ser protegida contra a apoderação particular de uma ou de outra parte. Nesse contexto, objetividade (Sachlichkeit) significa o oposto, a parcialidade, isto é, o contrário do abuso do direito para fins particulares. O conceito jurídico “a natureza da coisa (Sache)” não significa, por certo, uma coisa (Sache) disputada entre as partes, mas os limites colocados ao arbítrio pelo legislador, na imposição da lei ou na interpretação jurídica da mesma. O apelo à natureza da coisa (Sache) refere-se a uma ordenação livre do arbítrio humano e quer fazer prevalecer o espírito vivo da justiça mesmo contra a literalidade da lei. Também aqui, portanto, a natureza da coisa (Sache) é algo que se faz valer, algo que temos que respeitar. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

A base psicológica da hermenêutica idealista mostrou seu lado problemático: Será que o sentido de um texto realmente se esgota no sentido que o autor “tem em mente” (mens auctoris)? Será a compreensão nada mais do que a reprodução de um produto original? Está claro que esse questionamento não pode ser aplicado a uma hermenêutica jurídica, que exerce uma evidente função de criação do direito. Costuma-se relegá-lo à esfera de uma tarefa normativa, considerando-o como uma aplicação prática que nada tem a ver com “ciência”. O conceito da objetividade da ciência exige ater-se ao cânon determinado pela mens auctoris. Mas será esse cânon realmente suficiente? O que se dá, por exemplo, na interpretação de obras de arte (que no diretor de teatro, no regente e no próprio tradutor apresentam também a forma de uma produção prática)? Pode-se, por acaso, negar que o artista executor “interpreta” a criação original, não se limitando a fazer dela uma nova criação? Costumamos distinguir com muita clareza entre interpretações adequadas e interpretações “inadmissíveis” ou “fora de estilo” de peças musicais ou dramáticas. Com que direito podemos excluir da ciência esse sentido reprodutivo de interpretação? Será que essa reprodução pode dar-se em estado de sonambulismo e desconhecimento? O conteúdo semântico da reprodução não pode restringir-se ao sentido que o autor presta conscientemente à obra. Sabe-se que a auto-interpretação do artista tem um valor questionável. O sentido de sua criação impõe uma tarefa de aproximação inequívoca, mesmo para a interpretação prática. Assim como a interpretação feita pela ciência, tampouco a reprodução pode, de modo algum, estar exposta à arbitrariedade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Na teoria literária defende-se algo semelhante, em parte sob o título “estética da recepção” (Jauss, Iser, Gerigk). Mas foi justamente nesse âmbito que se intensificou a resistência da filologia, sempre pautada pela metodologia (D. Hirsch, Th. Seebohm), no intuito de preservar a objetividade da investigação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: “Conceber aquilo que nos toca” (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio. Isso não deixa de ter conseqüências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma “aplicação” posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida “de maneira puramente teórica”, a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A escola histórica, porém, sobretudo na forma decisiva que Droysen, seu metodologista mais arguto, reivindica para a tarefa [124] do historiador, não aceitou de modo algum essa total alienação objetivista do objeto da história. Pelo contrário, Droysen perseguiu essa “objetividade eunuca” com um sarcasmo mordente, e caracterizou a pertença às grandes forças morais, que regem a história, como a condição prévia de toda compreensão histórica. Sua célebre fórmula, segundo a qual a tarefa do historiador consiste em compreender pela via da investigação, contém um aspecto teológico. Os planos da Providência estão ocultos para o homem. Contudo, mediante a investigação das estruturas da história do mundo, o espírito histórico pode adquirir uma idéia do sentido oculto da totalidade. Compreender, aqui, é mais do que um método universal apoiado ocasionalmente na afinidade ou congenialidade do historiador com seu objeto histórico. Não é só uma questão de casual simpatia pessoal. Na escolha dos objetos e dos pontos de vista sob os quais se apresenta um objeto como um problema histórico, já está atuando um elemento da própria historicidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela idéia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como conseqüência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma idéia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

O que é factível não é simplesmente o possível ou, dentro do que é possível, simplesmente o mais vantajoso. Mas toda possível vantagem ou preferência de um sobre o outro mede-se por um determinado critério, que alguém se impõe ou que lhe é imposto. Trata-se do cerne do que na sociedade é válido, das normas que, cristalizadas em convicções políticas e morais, orientam toda educação e [164] autoformação, e mesmo a educação para a objetividade científica. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

As elites dos chamados países em desenvolvimento apoiarão com toda força o planejamento científico, mostrando-se especialmente sensíveis contra os efeitos retardatários que provêm da tradição religiosa e social desses povos. Se a objetividade do planejamento exige, em todas as circunstâncias, um alto nível moral de autocontrole, esse virá ligado a uma capacidade de fé política e uma crítica consciente da ideologia. Já nos países altamente desenvolvidos jamais se responderá com uma saturação acomodada à fantasia do planejamento que promete o aumento do bem-estar humano. Também ali temos que lutar contra os obstáculos do progresso implícitos nas relações de propriedade ou nas possibilidades de lucro. Quanto mais viável parece a libertação das necessidades externas e do trabalho excessivo, tanto mais acessível parece a moderação do ritmo de vida das sociedades modernas industriais e tanto menor a esperança de que a única saída seja o planejamento científico do futuro. O que está em questão não são apenas diferenças no desenvolvimento econômico dos povos. Trata-se de diferenças entre as [172] tradições culturais antigas, que se tornam cada vez mais conscientes num mundo cada vez mais globalizado. Assim a conscientização das diferenças que há entre os homens e os povos tornar-se-á uma necessidade premente na hora em que o planejamento e o progresso permitirem alcançar o que se queira. Essa conscientização não será mais um produto da ciência, mas antes um produto da crítica à ciência. É antes uma educação para a tolerância. Em sua conscientização, as consagradas concepções de ordem na convivência cidadã, como por exemplo o ideal da democracia (no sentido ocidental ou oriental), acabarão tomando consciência também de seus próprios pressupostos. Mesmo que o progresso econômico possa ser desejável em todas as partes do mundo, ainda assim não significará a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Com efeito, a hermenêutica se impõe onde não há entendimento com os demais e consigo próprio. Existem duas importantes formas de encobrimento pela fala, às quais a reflexão hermenêutica deve dedicar-se acima de tudo. Elas estão ligadas àquele encobrimento pela fala que determina a totalidade do comportamento com relação ao mundo. É o que pretendo abordar agora. Uma dessas formas é o tácito e silencioso emprego de preconceitos. Constitui uma estrutura fundamental de nosso dizer tanto o fato de sermos orientados por preconceitos quanto o fato desses permanecerem de tal modo encobertos que somente mediante uma ruptura do que subjaz à orientação intencional do discurso é que podem se tornar conscientes. De modo geral, essa ruptura gera uma nova experiência, que torna o preconceito insustentável. Mas os preconceitos básicos são mais poderosos. Asseguram-se, ou bem por reivindicar para si uma certeza evidente ou por se mostrarem relativamente isentos de preconceitos, confirmando assim sua validade. Conhecemos essa configuração de linguagem, em que os preconceitos se consolidam, como a repetição obstinada inerente a todo dogmatismo. Mas também a conhecemos na ciência, quando por exemplo, em nome do conhecimento sem preconceitos e de sua objetividade, transfere-se sem nenhuma modificação o método de uma ciência experimental, como a física, para outros âmbitos, como, por exemplo, o conhecimento da sociedade. E ainda mais, quando a ciência é aclamada como a mais elevada instância nos processos de decisão social, como ocorre cada vez mais em nossos dias. Em casos assim, só a reflexão hermenêutica pode demonstrar que os verdadeiros interesses ligados ao conhecimento permanecem desconhecidos. Conhecemos essa reflexão hermenêutica como crítica da ideologia, uma crítica que coloca essa ideologia sob suspeita, isto é, que revela a suposta objetividade como expressão da estabilidade das relações de poder social. A pretensão da crítica ideológica é conscientizar e dissolver os preconceitos sociais reinantes com ajuda da reflexão histórica e social. Sua intenção é desfazer o encobrimento que rege a influência incontrolada desses preconceitos. Trata-se de uma tarefa extremamente difícil, uma vez que colocar sob suspeita o óbvio provoca sempre a resistência de todas as evidências práticas. Mas é justamente aqui que se encontra a função da teoria hermenêutica, a saber, inaugurar uma disposição geral capaz de bloquear a disposição especial de hábitos e preconceitos arraigados. A crítica da ideologia constitui uma forma especial de reflexão hermenêutica que busca desfazer criticamente certo tipo de preconceitos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Nietzsche é certamente um testemunho extático, mas a experiência histórica que fizemos nos últimos cem anos com essa consciência histórica nos ensinou de modo impressionante que essa consciência, com sua pretensão a uma objetividade histórica, é acometida de dificuldades bem características. Um dos pontos mais [222] óbvios de nossa experiência científica é o fato de, com certeza inabalável, podermos subordinar as magistrais obras da investigação histórica — nas quais Ranke parece ter elevado a pretensão de auto-anulação da individualidade a uma espécie de perfeição — às tendências políticas de sua própria época. Quando lemos a história romana de Mommsen, sabemos quem pode tê-la escrito, isto é, qual a situação política de sua época que levou o historiador a compilar as vozes do passado numa formulação racional. Podemos comprovar isso também em Treitschke ou em Sybel, para citar apenas alguns exemplos marcantes da historiografia prussiana. Isso significa de imediato que a autoconcepção do método histórico não revela toda a realidade da experiência histórica. Poder controlar os preconceitos da própria atualidade para que não prejudiquem a compreensão dos testemunhos do passado é incontestavelmente um objetivo justificado. Mas o que assim se realiza não esgota toda a tarefa da compreensão do passado e sua tradição. Poderia ser, também — e o rastreamento dessa questão é na realidade uma das primeiras tarefas a serem feitas pela ciência histórica no exame crítico de sua autoconcepção — , que o que permite à investigação histórica aproximar-se desse ideal de uma total anulação da individualidade não passe de matéria irrelevante, enquanto que os resultados da investigação realmente grandes e produtivos conservariam sempre algo da magia de um espelhamento imediato do presente no passado e do passado no presente. Também essa segunda experiência, que representa o ponto de partida de minha investigação, a ciência histórica, só revela uma parte do que é a verdadeira experiência, isto é, do que significa para nós o encontro com a tradição histórica, limitando-se a conhecer, assim, apenas numa configuração alienada. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Mas o que faz a reflexão hermenêutica quando é efetiva? Qual a relação da reflexão histórico-efeitual com a tradição da qual ela se torna consciente? Minha tese é de que — e penso que ela seja a conseqüência necessária do reconhecimento de nosso condicionamento histórico-efeitual e de nossa finitude — a hermenêutica nos ensina a perceber o dogmatismo presente na contradição entre a tradição viva e “natural” e a apropriação reflexiva da mesma. Ai esconde-se um objetivismo dogmático que deforma também o conceito de reflexão. O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer. O historiador, mesmo aquele da chamada ciência crítica, está tão longe de desfazer-se das tradições vivas, por exemplo das tradições nacionais, que, enquanto historiador nacional, acaba ao contrário formando-as e conformando-as pela sua atuação. E o mais importante: quanto mais conscientemente reflete sobre seu condicionamento hermenêutico tanto mais atua. Droysen, que desmascarou a “objetividade eunuca” dos historiadores em sua ingenuidade hermenêutica, atuou decisivamente em favor de uma consciência nacional da cultura burguesa do século XIX — em todo caso, teve muito mais influência do que a consciência épica de Ranke, que buscava educar para uma apolitéia estatal. A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. Só um historicismo ingênuo e irrefletido poderia considerar as ciências histórico-hermenêuticas como algo absolutamente novo, [241] capaz de eliminar o poder da tradição. Através do aspecto da estruturação da linguagem, como um fenômeno capaz de sustentar toda compreensão, procurei demonstrar inequivocamente a mediação constante pela qual sobrevive a tradição social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Ora, a significação paradigmática que corresponde à psicanálise para a crítica à hermenêutica e para a crítica dentro da comunicação social encontra-se no papel da reflexão emancipatória, que tem sua função terapêutica nela. A reflexão liberta alguém na medida em que torna visível o que o domina imperceptivelmente. De certo, trata-se de reflexão crítica num sentido diferente do que o sentido que se dá na reflexão hermenêutica, que como eu dizia destrói a autocompreensão inadequada descobrindo a falta de retidão metodológica. Não que a crítica que se orienta no paradigma da psicanálise estivesse em contradição com a crítica hermenêutica (mesmo que, como gostaria de demonstrar, a crítica hermenêutica deva negar-se a assumir esse paradigma). Isso não lhe é suficiente. Por meio da reflexão hermenêutica, as ciências hermenêuticas defendem-se contra a tese de que seu procedimento seria acientífico, visto negarem a “objetividade” da science. Nesse ponto, a crítica da ideologia concorda com a hermenêutica filosófica. Acusa, porém, a hermenêutica de perpetuar de modo indevido uma persistência tradicionalista de preconceitos herdados. Desde a irrupção da revolução industrial e da ciência na vida social, o momento da tradição desempenharia um papel meramente secundário. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

É também o motivo que me leva a crer que o conceito de “emancipação” não está em condições para descrever o curso gradual das formas que percorre o espírito em devir na fenomenologia de Hegel. De certo que a experiência da dialética em Hegel atua como mudança produzida pela conscientização. Parece-me que Bubner destaca, com razão e muita objetividade, na dialética fenomenológica de Hegel, que uma figura do espírito que procede de outra, na verdade não procede desta, mas desenvolve uma nova imediatez. O curso gradual das figuras do espírito é de certo modo projetado a partir de sua conclusão. Não é deduzido a partir de seu início. Foi o que me levou à formulação de que a “Fenomenologia do espírito” deve ser lida de trás para frente, como na verdade foi concebida: partindo do sujeito em direção à substância expandida nele e que ultrapassa sua consciência. Essa tendência de inversão comporta uma crítica radical à idéia do saber absoluto. A transparência absoluta do saber equivale a um encobrimento idealista da infinitude ruim, na qual o ser finito chamado homem faz suas experiências. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua autoridade, que busca sempre a defesa conseqüente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As idéias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel, parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a “analogia da fé” não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito [279] científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma “hermenêutica da facticidade” de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das “ciências do espírito” não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da cientificidade, com o ideal de “participação”. Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do diálogo é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Essas observações prévias serviram para dar credibilidade ao significado da filosofia prática de Aristóteles e da tradição despertada por esta. Trata-se, em última instância, de encontrar uma base comum além da retórica e da crítica, além da figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científica moderna que degrada tudo em objetividade. Aristóteles desenhou a filosofia prática, que engloba a política, num debate aberto com o ideal da teoria e da filosofia teórica. Elevou, assim, a praxis humana a uma esfera autônoma do saber. “Praxis” designa o conjunto das coisas práticas e portanto toda conduta e toda auto-organização humana nesse mundo, incluindo também a política e dentro dessa a legislação. Essa, a política, é a principal tarefa cuja solução regula e ordena os assuntos humanos; ela é auto-regulação através da “constituição”, no sentido mais amplo de uma vida social e estatal ordenada. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da “virada”, levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha idéia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama “linguagem da metafísica”, significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da idéia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Com isso, Betti encontra-se na esteira de Schleiermacher, Boeckh, Croce entre outros. Estranhamente ele pensa poder garantir a “objetividade” da compreensão com esse estrito psicologismo [394] de cunho romântico. Ele acredita que essa objetividade estaria ameaçada por todos aqueles que, apoiados em Heidegger, consideram errôneo esse retorno à subjetividade da intenção. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Rothacker mostra-se um defensor temperamental do mesmo. Dilthey tentara eliminar o perigo do historicismo, reconduzindo as diversas concepções de mundo às múltiplas facetas da vida. Rothacker segue seus passos quando fala das dogmáticas como explicações de imagens de mundo vividas ou quando fala de correntes de estilo, reconduzindo-as ao fato de que o homem que atua está vinculado a suas concepções de mundo e a seu perspectivismo. Com isso, todas elas tornam-se irrefutáveis por serem perspectivistas (35). Isso significa que o relativismo não reina ilimitadamente na aplicação da ciência, resguardando seus limites precisos. Não põe em perigo a “objetividade” imanente da investigação. Seu ponto de partida está na diversidade e liberdade do questionamento científico, onde desembocam os direcionamentos variáveis da significabilidade das imagens de mundo que se viveu. A partir desse ponto de vista, até mesmo a ciência moderna da natureza caracteriza-se como a dogmática de uma perspectiva quantificadora (53). Para isso, basta admitir a idéia de que possa haver outro modo de conhecimento na natureza. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Todas as atuais críticas ao objetivismo e positivismo histórico têm um ponto em comum, a saber, a idéia de que o chamado sujeito do conhecimento tem o mesmo modo de ser do objeto, de modo que objeto e sujeito pertencem à mesma mobilidade histórica. A oposição entre sujeito e objeto talvez seja adequada onde o objeto, frente à res cogitans, é o absolutamente outro, a res extensa. O conhecimento histórico, porém, não pode ser descrito adequadamente por meio desse conceito de objeto e objetividade. Segundo as palavras do Conde York, trata-se de compreender a diferença “genérica” entre “ôntico” e “histórico”, ou seja, trata-se de reconhecer o chamado sujeito no modo de ser da historicidade que lhe é conveniente. Vimos anteriormente como Dilthey não se aprofundou o bastante para poder tirar todas as conseqüências dessa idéia, mesmo que posteriormente tenham sido tiradas. Faltavam os pressupostos conceituais necessários para superar o problema do historicismo, como explicitou, por exemplo, Ernst Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de [426] individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito “subjetivo” ao caráter de espírito “objetivo”. Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo “manifesto” hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Mas a interpretação não se limita aos textos e à compreensão histórica que neles se deve alcançar. Todas as estruturas de sentido concebidas como textos, desde a natureza (interpretatio naturae, [435] Bacon), passando pela arte (cuja carência de conceitos [Kant] converte-se em exemplo preferencial de interpretação [Dilthey]), até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana, são suscetíveis de interpretação. Essa pretende mostrar não o que é óbvio mas as verdadeiras e latentes concreções de sentido da ação humana, mesmo que o faça revelando o ser real de cada um como o ser de sua própria história (P. Ricoeur), mostrando assim que os condicionamentos sociais e históricos determinam imperceptivelmente nosso pensamento. A psicanálise e a crítica da ideologia, como inimigos a se enfrentar ou aliados em uma síntese cética ou utópica (Adorno, Marcuse), devem submeter-se ainda a uma reflexão hermenêutica. Isso porque o que eles assim descobrem e compreendem não é independente da situação do intérprete. Nenhum campo interpretativo se dá aleatoriamente e muito menos “objetivamente”. A reflexão hermenêutica mostra ao objetivismo do historicismo e da teoria positivista das ciências que eles agem a partir de pressupostos ocultos determinantes. Sobretudo a sociologia do saber e a crítica marxista da ideologia demonstraram aqui sua fecundidade hermenêutica. O valor cognitivo dessas interpretações só pode ser garantido mediante uma consciência crítica e uma reflexão da história dos efeitos. O fato de não possuírem a objetividade da science não desmerece seu valor cognitivo. Mas é só uma reflexão hermenêutica crítica, atuante nelas consciente ou inconscientemente, que faz aflorar sua verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

O acirramento da tensão entre verdade e método guiava-se em meus trabalhos por um sentido polêmico. Como reconhece o próprio Descartes, isso acaba fazendo parte de um processo especial de endireitar uma coisa que estava torta, a qual deve ser dobrada na direção contrária. E a coisa estava realmente torta, não tanto a metodologia das ciências, mas sua autoconsciência reflexiva. Parece-me que a historiografia e a hermenêutica pós-hegelianas que tematizei demonstram isso suficientemente. Quando, segundo as pressuposições de E. Betti, se teme que a minha reflexão hermenêutica pudesse representar um desvio da objetividade científica, isso não passa de um mal-entendido ingênuo. Nessa questão tanto [454] Apel, quanto Habermas e os representantes da “racionalidade crítica” parecem acometidos da mesma cegueira. Todos eles desconhecem a intenção reflexiva de minhas análises e conseqüentemente o sentido da aplicação, que tentei apresentar como um momento estrutural de todo compreender. Eles estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação. Não percebem que a reflexão sobre a práxis não é técnica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O tema que abordei em minhas reflexões foi o procedimento da própria ciência e a restrição da objetividade que se pode observar nelas (e que não é recomendado). Creio que reconhecer o sentido produtivo de tais restrições, por exemplo, na forma dos preconceitos produtivos, não é nada mais que um mandamento da honestidade científica, pelo qual o filósofo deve responder. Como é possível então acusar a filosofia, que traz isso à consciência, de estar encorajando um procedimento acrítico e subjetivo no âmbito da ciência? Isso parece-me tão absurdo quanto querer esperar, por exemplo, que a lógica matemática vá promover o pensamento lógico, ou que a teoria da ciência do racionalismo crítico, que se denomina “lógica da investigação”, vá promover a investigação científica. Tanto a lógica teórica quanto a filosofia das ciências satisfazem, antes, uma necessidade filosófica de justificação e são secundárias frente à práxis científica. Apesar de todas as diferenças existentes entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, a validade imanente da metodologia crítica das ciências jamais poderá ser contestada. Mesmo o racionalista crítico mais extremado não pode negar que a aplicação da metodologia científica é precedida por certos fatores que dizem respeito à relevância de sua escolha temática e de seu questionamento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Para situar grosso modo meu próprio ensaio de pensamento, posso afirmar com efeito que busque reabilitar o direito da “má infinitude”. Mas, a meu ver, com uma modificação importante. Porque o diálogo inesgotável da alma consigo mesma, característico do pensamento, não consiste em determinar com precisão cada vez maior o mundo de objetos que se deve conhecer, nem no sentido neokantiano da tarefa inesgotável, nem no sentido dialético de ultrapassar qualquer limite mediante o pensamento. Parece-me que [506] nesse contexto Heidegger abriu um novo caminho, ao converter a crítica à tradição metafísica em uma preparação para recolocar a pergunta pelo ser de um novo modo. Com isso, encontrou-se “a caminho para a linguagem”. É o caminho de uma linguagem que não se reduz ao juízo enunciativo nem a sua presumida validez objetiva, mas que aponta sempre para a totalidade do ser. A totalidade não é uma objetividade definível. Nesse sentido, creio que a crítica de Kant às antinomias da razão pura pode ser aplicada também a Hegel. A totalidade não é um objeto, mas o horizonte de mundo que nos rodeia e no qual vivemos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.