Esse conceito de vida é imaginado teleologicamente: Vida é, para Dilthey, produtividade, sem mais nem menos. Na medida em que a vida se objetiva em imagens dos sentidos, todo o entendimento de sentido é “uma retro-transposição das objetivações da vida na vivacidade espiritual, da qual são procedentes”. É assim que o conceito da vivência forma o fundamento epistemológico para todo o conhecimento do que seja objetivo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Só que essa relação não é unívoca. Em primeiro lugar, é através da experiência do limite, da pressão, da resistência, que o indivíduo se dá conta de sua própria força. Porém, o que experimenta não são somente as duras paredes da facticidade. Como ser histórico, experimenta, além do mais, realidades históricas, e essas são sempre, ao mesmo tempo, algo que sustenta o indivíduo, algo onde ele dá expressão a si mesmo e se reencontra. Nesse sentido, já não são “duras paredes”, mas objetivações da vida (Droysen havia falado de “poderes morais”). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Não há dúvida de que isso é uma reformulação do conceito hegeliano. Mas o que significa? Até que ponto leva em conta a “realidade da vida”? O mais significativo é evidentemente a expansão do conceito do espírito objetivo à arte, à religião e à filosofia; pois isso significa que Dilthey vê também neles não uma verdade imediata, mas formas de expressão da vida. Equiparando a arte e a religião com a filosofia, rechaça simultaneamente as pretensões do conceito especulativo. Dilthey não nega, em absoluto, que essas formas tenham primazia ante as outras formas do espírito objetivo, na medida em que é “justamente nas suas poderosas formas” onde o espírito se objetiva e é conhecido. De outra parte, foi essa primazia do pleno autoconhecimento do espírito que permitiu a Hegel compreender essas formas como formas do espírito absoluto. Nelas já não havia nada de estranho e, por isso, o espírito estaria inteiramente em casa, estando consigo mesmo. Também para Dilthey as objetivações da arte representavam, como já vimos, o verdadeiro triunfo da hermenêutica. E assim, a oposição a Hegel se releva a término o retorno do espírito, enquanto que para Dilthey o conceito filosófico não tem significado cognitivo, mas expressivo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
E assim teremos de nos indagar se não haverá também para Dilthey uma forma do espírito que seja verdadeiro “espírito absoluto”, isto é, plena autotransparência, total extensão de toda estranheza e de todo ser diverso. Para Dilthey, não há dúvida de que isso existe e que é a consciência histórica que corresponde a esse ideal, e não a filosofia especulativa. Essa consciência vê todos os fenômenos do mundo humano-histórico tão-somente como objetos, nos quais o espírito se conhece mais profundamente a si mesmo. E, na medida em que os entende como objetivações do espírito, transfere-os de volta “à vitalidade espiritual de onde procedem”. As configurações do espirito objetivo são para a consciência histórica, portanto, objetos do autoconhecimento desse espírito. A consciência histórica se estende ao universal, na medida em que entende todos os dados da historia como manifestação da vida, da qual procedem; “a vida compreende aqui a vida”. Nessa medida, toda a tradição se converte, para a consciência histórica, num auto-encontro do espirito humano. Com isso, atrai para si o que parecia reservado às criações específicas da arte, da religião e da filosofía. Não é no saber especulativo do conceito, mas na consciência histórica, onde se leva a cabo o saber de si mesmo do espírito. Esta descobre o espirito histórico em tudo. A [234] própria filosofía só vale como expressão da vida. E, na medida em que ela é consciente disso, renuncia à sua antiga pretensão de ser conhecimento por conceitos. Volta a ser filosofía da filosofía, uma fundamentação filosófica do fato de que, na vida — e junto à ciência — há filosofía. Em seus últimos trabalhos, Dilthey esboça uma tal filosofia na qual ele reconduz os diversos tipos de concepção de mundo à pluralidade de facetas da vida que se desenvolve neles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa ambigüidade tem seu fundamento último na falta de unidade interna de seu pensamento, no resíduo do cartesianismo, donde ele parte. Suas reflexões epistemológicas sobre a fundamentação das ciências do espírito não se coadunam bem com seu ponto de partida na filosofia da vida. Nas suas anotações mais tardias encontra-se um testemunho eloqüente. Ali, Dilthey exigirá a toda fundamentação filosófica que se estenda a todo o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de [242] vista da reflexão e da dúvida”. Essa frase parece uma afirmação inocente sobre a essência da ciência e da filosofia da época moderna como tal. Não há como não perceber uma ressonância cartesiana. Na verdade, porém, essa frase encontra sua aplicação em um sentido totalmente diferente, quando Dilthey continua: “Por toda parte a vida conduz a reflexões sobre o que está colocado nela, a reflexão quanto à dúvida, e somente se a vida quiser se firmar frente a esta, então e somente então pode o pensamento acabar sendo um saber válido”. Aqui já não mais existem preconceitos filosóficos que têm de ser superados por uma fundamentação epistemológica ao estilo de Descartes, já que se trata de realidades da vida, de tradições dos costumes, da religião e do direito positivo, que são desintegrados pela reflexão e necessitam de uma nova ordem. Quando Dilthey fala aqui do saber e da reflexão, não está querendo aludir à imanência geral do saber na vida, mas a um movimento dirigido contra a vida. Ao contrário, a tradição dos costumes, da religião e do direito repousa, de sua parte, sobre um saber da vida a partir de si mesma. Inclusive já vimos que na entrega à tradição, na qual certamente está envolvido algum saber, realiza-se a ascensão do indivíduo ao espírito objetivo. Terá de se concordar prazerosamente com Dilthey que a influência do pensamento sobre a vida “procede da necessidade interna de estabelecer algo fixo em meio à mudança inconstante das percepções sensoriais, dos desejos e sentimentos, algo fixo e estável que torne possível um modo de vida continuado e unitário”. Mas esse desempenho do pensamento é imanente à própria vida e se realiza nas objetivações do espírito que, como costumes, direito e religião sustentam o indivíduo, na medida em que este se entrega à objetividade da sociedade. O fato de que, para isso, tenha-se de adotar “o ponto de vista da reflexão e da dúvida” e que esse trabalho se realize “em todas as formas de reflexão e científica (e não fora disso), não se coaduna, em absoluto, com as idéias da filosofia da vida de Dilthey. Antes, aqui se descreve o ideal específico do Aufklärung científico, que bem pouco concorda com a reflexão imanente da vida, justamente ao modo como foi o “intelectualismo” do Aufklärung, contra o qual se orienta a fundamentação de Dilthey no fato da filosofia da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de [253] fato ameaça despedaçar essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele alcança o conceito “vida”. “Vida” não é meramente o “ir vivendo” da atitude natural. “Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida” encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “vida produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas…” Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da vida. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Não é por acaso que Dilthey trabalha com o exemplo da compreensão estética. O que sustenta toda a sua doutrina do ser histórico e de sua atuação pela força e pelo significado é, pois, a pressuposição de que há uma distância real da compreensão e de que é possível haver soberania da razão histórica. Assim como a compreensão estética se realiza na distância compreensiva, também a compreensão da história fundamenta-se nessa distância. E justamente isto que Dilthey concebe como o movimento da própria vida, que a reflexão surge a partir dela. Dito negativamente, isto significa que a vida precisa libertar-se do conhecimento por conceitos, a fim de formar suas próprias objetivações. Será que existe essa liberdade da compreensão? Essa crença na liberação pelo esclarecimento histórico fundamenta-se de forma decisiva num momento estrutural da autoconsciência histórica: o fato de a autoconsciência ser concebida num processo infinito e irreversível. Já Kant e o idealismo haviam partido desse ponto: todo saber sobre si próprio, passível de se alcançar, pode tornar-se objeto de um novo saber. Se eu sei, posso também sempre saber que sei. Esse movimento da reflexão é infinito. Para a autoconsciência histórica, essa estrutura significa que, na própria busca de sua autoconsciência, o espírito transforma constantemente seu ser. Ao conceber a si mesmo, já se transformou num outro, diferente do que era. Esclareçamos isto num exemplo: Quando alguém se torna consciente da raiva que o assalta, essa autoconsciência já é sempre uma transformação, quando não, uma superação dessa raiva. Hegel descreveu esse movimento da autoconsciência em direção a si mesma, na Fenomenologia do espírito. Enquanto Hegel considerava a autoconsciência filosófica como o fim absoluto desse movimento, Dilthey refutou essa reivindicação metafísica considerando-a dogmática. Com isto, abrem-se-lhe as portas ao horizonte ilimitado da razão histórica. A compreensão histórica significa um constante crescimento da autoconsciência, uma constante ampliação do horizonte da vida. Esse processo não pode ser brecado nem poderá retroceder. A universalidade de Dilthey como historiador do espírito repousa justamente nessa ampliaição infinita da vida na compreensão. Dilthey é o pensador do» Iluminismo histórico. A consciência histórica representa o fim cLa metafísica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 2.
Não nos estamos limitando, assim, a um mundo do sentido, que representaria uma espécie de objeto secundário do conhecimento, nos moldes do “conhecer o conhecido” (A. Boeckh), uma apropriação do já conhecido. Um processo que com os recursos da “transmissão cultural” enriqueceria as realidades verdadeiramente econômicas e políticas, que determinam em primeira linha a vida da sociedade. No espelho da linguagem reflete-se, antes, tudo que é. Nele e somente nele encontramos o que não encontramos em [243] parte alguma, porque somos nós mesmos (e não apenas o que pensamos e sabemos acerca de nós mesmos). No fundo, a linguagem não é nenhum espelho, e o que vemos nela não é reflexo de nosso ser nem do ser de todos, mas uma interpretação e revitalização do que existe conosco, tanto na dependência real de trabalho e dominação como em tudo mais que constitui nosso mundo. A linguagem não é um sujeito anônimo, finalmente encontrado, de todos os processos e ações sócio-históricos, que se oferece ao nosso olhar contemplativo junto com o conjunto de suas atividades e objetivações. Ela é, antes, o jogo em que todos participamos. Aqui ninguém tem precedência. Cada qual está “envolvido” e é “mão” no jogo. Isso acontece quando compreendemos, e justamente quando vislumbramos os preconceitos ou desmascaramos subterfúgios que desfiguram a realidade. É ali que mais “compreendemos”. Então, quando vislumbramos algo que nos parecia estranho e incompreensível, quando o alojamos sob nosso mundo ordenado pela linguagem, então, finalmente, a coisa fica clara, como num árduo cálculo de xadrez onde só compreendemos a necessidade de alguma posição absurda na resolução final da partida. VERDADE E METODO II OUTROS 18.