Teremos de nos indagar, como pôde tornar-se compreensível aos historiadores o seu próprio trabalho, partindo de sua teoria hermenêutica. Seu tema não é um texto avulso, individual, mas a história universal. O que perfaz o historiador é o fato de que ele quer compreender a totalidade dos nexos da história da humanidade. Todo texto individual não possui, para ele, um valor próprio, mas serve-lhe meramente como fonte. Isto significa, porém, unicamente como um material mediador para o conhecimento do nexo histórico, não diverso de todas as ruínas mudas do passado. Esta é a razão por que a escola histórica não pode, na realidade, continuar edificando sobre a hermenêutica de Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
No entanto, deu-se que a concepção histórica do mundo, cuja grande meta era compreender a história universal, apoiou-se na teoria romântica da individualidade e na sua correspondente hermenêutica. Isso também pode ser expresso negativamente: o caráter de ser passado das relações históricas da vida, que a tradição representa para o presente, mesmo agora ainda não foram assumidas na reflexão metodológica. Antes, via-se essa tarefa somente no transporte do passado ao presente, através da investigação da tradição. O esquema fundamental, em conformidade com o qual a escola histórica pensa a 1202] metodologia da história universal, não é pois nada mais que o que é válido face a qualquer texto. É o esquema do todo e das partes. Há uma certa diferença entre a tentativa de compreender um texto como construção literária sob o ponto de vista de sua intenção e composição, e a tentativa de empregá-lo como documento para o conhecimento de um nexo histórico mais amplo, sobre o qual ele proporcione um esclarecimento que requer um exame crítico. Mesmo assim, esse interesse filológico e todo interesse histórico submetem-se reciprocamente um ao outro. A interpretação histórica pode servir como meio para compreender a conjuntura de um texto, embora, sob um interesse diverso, possamos ver nela não mais que uma fonte que se integra no todo da tradição histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Nem a posição de primazia da antiguidade clássica, nem a do presente ou a de um futuro a que ela nos conduz, nem decadência nem progresso, esses esquemas básicos tradicionais da história universal são compatíveis com um pensamento autenticamente histórico. Ao inverso disso, a famosa imediatez de todas as épocas com relação a Deus coordena-se [207] muito bem com a ideia de um nexo histórico universal. Pois, nexo — Herder dizia “ordem consecutiva” — é manifestação da própria realidade histórica. O que é historicamente real surge “segundo orações consecutivas escritas: o que segue esclarece o efeito e o modo daquilo que precedeu, luz comunitária”. Que o que permanece, na mudança dos sentidos humanos, é um nexo ininterrupto da vida, tal é o primeiro enunciado sobre a estrutura da história, o de ser devir no passar. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Seja como for, somente a partir daqui torna-se compreensível o que vem a ser para Ranke “uma ação verdadeiramente histórico-universal, assim como o que sustenta, na realidade, o nexo da história universal”. Ela não possui nenhum telos que se possa descobrir e fixar fora dela. Enquanto tal, na história não domina nenhuma necessidade que possa ser percebida a priori. E, no entanto, a estrutura do nexo histórico é, apesar de tudo, teleológica. Seu padrão é o êxito. Já vimos que o que segue é o que primeiramente decide sobre o significado daquilo que o precedeu. Ranke pode ter tido isso em mente como uma simples condição do conhecimento histórico. Mas, na realidade, repousa sobre isso também o peso característico que convém ao próprio ser da história. O fato de que se alcance sucesso ou se fracasse não decide somente sobre o conteúdo desse fazer, permitindo-lhe engendrar um efeito duradouro ou passar sem efeito algum, mas este sucesso ou fracasso faz que nexos completos de fatos e de acontecimentos sejam plenos de sentido ou se tornem sem sentido. A estrutura ontológica da história, portanto, embora não tenha telos, é em si mesma teleológica. O conceito da ação verdadeiramente histórico-universal, que Ranke utiliza, define-se precisamente por isso. Ela é tal, quando faz história, isto é, quando tem um efeito que lhe confere um significado histórico duradouro. Os elementos do nexo histórico determinam-se pois, de fato, no sentido de uma teleología inconsciente que os congrega e que exclui deles o que não tem significado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Uma teleologia como esta não se pode naturalmente elucidar, partindo do conceito filosófico. Ela não converte a história universal num sistema apriorista, em que os atores são inseridos como num mecanismo que os controla inconscientemente. É, antes, perfeitamente compatível com a liberdade da ação. Ranke pode inclusive dizer que os membros construtivos do nexo histórico são “cenas da liberdade”. Esta expressão quer [208] dizer que há decisão cada vez que se atua livremente, mas o que caracteriza os momentos verdadeiramente históricos é que, com essa decisão, decide-se verdadeiramente algo, isto é, que uma decisão faz história, e que só em seu efeito se manifesta seu significado pleno e duradouro. Tais momentos conferem sua articulação ao nexo histórico. Nós chamamos a esses momentos, nos quais uma ação livre se torna historicamente decisiva, de momentos que fazem época, ou também crise, e aos indivíduos, cuja ação tornou-se tão decisiva, pode-se dar o nome, acompanhando Hegel, de “indivíduos da história universal”. Ranke os chama de “espíritos originais que se embrenham autonomamente na luta das ideias e das potências do mundo e congregam as mais potentes dentre elas, aquelas sobre as quais repousa o futuro”. Isto é espírito do espírito de Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Em Ranke aparece uma reflexão muito instrutiva sobre o problema de como surge o nexo histórico a partir dessas decisões da liberdade: “Reconheçamos que a história não pode ter nunca a unidade de um sistema filosófico; mas tampouco carece de nexo interno. Temos diante de nós uma série de acontecimentos que se seguem e se condicionam uns aos outros. Quando digo que se condicionam, isso não se refere, obviamente, que seja através de uma necessidade absoluta. A grandeza é, antes, o fato de que por toda parte faz-se mister a liberdade humana: a historiografia faz o rastreamento das cenas da liberdade; isso é o que a torna tão apaixonante. Mas com a liberdade se associa a força, uma força original; sem ela a liberdade se acaba tanto nos acontecimentos mundiais, como no terreno das ideias. A cada momento pode começar algo novo, que somente deve ser conduzido à fonte primeira e comum de todo fazer e deixar de fazer humano; nada está aí inteiramente por causa do outro; nada se esgota totalmente na realidade do outro. E, no entanto, em tudo isso governa uma profunda conjunção interna da qual ninguém é completamente independente e que o penetra por todo lado. Junto à liberdade está sempre a necessidade. Ela se encontra aí no que já se formou, que não pode ser desfeito, que será a base de toda nova atividade emergente. O que veio a ser constitui o nexo com o que devêm. Mas esse mesmo nexo não — é algo que deva ser tomado arbitrariamente, porque ele foi de uma maneira determinada, assim e não de outro modo. É também um objeto de conhecimento. Uma ampla série de acontecimentos — um após o outro e um ao lado do outro — unidos entre si dessa maneira, forma um [209] século, uma época…”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O passo decisivo que Dilthey terá de dar na sua fundamentação epistemológica das ciências do espírito será o de empreender, a partir da construção do nexo na experiência vital do indivíduo, a transição ao nexo histórico que já não é vivido riem experimentado por indivíduo algum. Mesmo com toda a crítica à especulação, é necessário, nesse ponto, pôr sujeitos reais no lugar de “sujeitos lógicos”. Dilthey vê claramente essa aporia. Mas responde a si mesmo que isso não pode ser improcedente em si, na medida em que a pertença mútua do indivíduo a um todo — por exemplo, na unidade de uma geração ou de uma nação — representa uma realidade psíquica, que teria de ser reconhecida como tal, precisamente porque não se pode transcendê-la em suas explicações. É verdade que aqui não se trataria de sujeitos reais. A fluidez de suas fronteiras seria demonstração disso; nem tampouco os indivíduos concretos participariam nisso, cada um com uma parte de seu ser. Não obstante, para Dilthey não é problema o fato de se poder fazer afirmações sobre tais sujeitos. O historiador o faz continuamente quando fala dos fatos e destinos dos povos. O único problema é como se justificam epistemologicamente essas afirmações. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada [304] pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da dialética na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A dialética, esse antagonista do logos, não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da dialética grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua dialética das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A problemática ontológica do tempo consiste, portanto, no [136] fato de não ser possível expressar e nem conceber seu próprio ser com os recursos da filosofia do ser desenvolvida pela Antiguidade. Creio que o conceito de continuidade da história vem a refletir o mesmo problema. Isso não significa que o discurso da continuidade da história derive diretamente dessa experiência constante dos agoras que se sucedem ininterruptamente. Quiçá a experiência de continuidade tem uma base muito diferente da simples experiência do fluir incessante do tempo. A continuidade da história investigada na pergunta pelo ser da história culmina em última instância no fato de que, apesar de toda transitoriedade, todo passar implica necessariamente um devir. A verdade da consciência histórica parece alcançar sua perfeição quando percebe o devir no passar e o passar no devir e quando extrai do fluir incessante das transformações a continuidade de um nexo histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia “descritiva e analítica”, purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.