Se reconhecermos como tarefa seguir mais Hegel do que Schleiermacher, teremos de acentuar a história da hermenêutica de um modo totalmente novo. Esta já não terá sua realização na liberação da compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, e já não poder-se-á considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey, seguindo os passos de Schleiermacher. Nossa tarefa, antes, será refazer o caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diversos dos que ele tinha em mente com a sua autoconsciência histórica. Nesse sentido desviar-nos-emos inteiramente do interesse dogmático pelo problema hermenêutico que o Antigo Testamento despertou já na igreja antiga, e nos contentaremos em palmilhar o desenvolvimento do método hermenêutico na Idade Moderna, que desemboca da consciência histórica. 945 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
a) Pré-história da hermenêutica romântica 947 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Aos olhos de Dilthey, a hermenêutica não chega, pois, à sua verdadeira essência, a não ser quando ela transforma sua posição, a serviço de uma tarefa dogmática — que para o teólogo cristão é a correta proclamação do Evangelho — na função de um organon histórico. E se, pelo contrário, o ideal do Aufklärung histórico, a que pertence Dilthey, tivesse de se revelar como uma ilusão, então toda a pré-história da hermenêutica, esboçada por ele, teria de adquirir, também, um significado totalmente diferente; a virada em direção à consciência histórica já não seria sua liberação das presilhas do dogma, mas uma mudança de sua essência. E exatamente o mesmo vale para a hermenêutica filológica. Pois a ars critica da filologia teve, em princípio, sua pressuposição no caráter modelar irrefletido da antiguidade clássica, de cuja transmissão cuidava. Também ela, portanto, terá que se transformar em sua essência, se entre a antiguidade e o próprio presente já não existe nenhuma relação inequívoca de modelo e seguimento. Um índice disso é a quereile des anciens et des modernes, que cunha o tema geral para toda época compreendida entre o classicismo francês e o alemão. Este seria também o tema em torno do qual se desenvolveria a reflexão histórica, que acabaria dissolvendo a pretensão normativa da antiguidade clássica. Nos dois caminhos, portanto, da filologia e da teologia, dá-se o mesmo processo, que acabou levando à concepção de uma hermenêutica universal, para a qual o caráter de modelo especial já não representa uma pressuposição para a tarefa hermenêutica. [182] 963 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em [184] algo. Já a linguagem mostra que o “sobre quê” e o “em quê” não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do “sobre quê” e do “em quê”, isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. 973 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Assim, se retrocedermos à pré-história da hermenêutica histórica, teremos de destacar, em primeiro lugar, que entre a filologia e a ciência da natureza, em sua primeira auto-reflexão, se estabelece uma correlação muito estreita, que se reveste de um duplo sentido. Em primeiro lugar, a “naturalidade” do procedimento científico-natural deve valer também para o posicionamento frente à tradição bíblica — e para isso serve o método histórico. Mas, ao inverso, também a naturalidade da arte filológica, exercida na exegese bíblica, a arte de compreender pelo texto, coloca ao conhecimento da natureza a tarefa de decifrar o “livro da natureza”. Nessa medida o modelo da filologia pode orientar o método da ciência da natureza. 981 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Como se vê, a pré-história da hermenêutica do século XIX adquire um aspecto bastante diferente se não a considerarmos mais sob as premissas de Dilthey. Que guinada se dá entre Spinoza e Chladenius, de um lado, e Schleiermacher, do outro! A incompreensibilidade, que para Spinoza, motivava o rodeio pelo histórico e que para Chladenius, convoca a arte da interpretação para um sentido de orientação completamente objetivo, adquire em Schleiermacher um significado completamente diverso e universal. 1001 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Examinemos agora mais de perto o que Schleiermacher quer dizer com essa equiparação. Pois obviamente, não pode tratar-se de pura e simples identificação. A reprodução sempre é essencialmente diferente da produção. É assim que Schleiermacher chega ao postulado, de que importa compreender um autor, melhor do que ele próprio teria se compreendido — uma fórmula que, desde então, tem sido repetida incessantemente, e em cujas interpretações cambiantes caracteriza-se toda a história da hermenêutica moderna. De fato, nesse postulado encerra-se o verdadeiro problema da hermenêutica. Por [196] isso valerá a pena que nos aproximemos um pouco mais do sentido dessa fórmula. 1039 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Mas tampouco o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, atinge o cerne da questão. Já vimos que o objetivo de todo acordo e de toda compreensão é o entendimento sobre a própria coisa. A hermenêutica sempre se propôs como tarefa restabelecer o entendimento alterado ou inexistente. A história da hermenêutica é um bom testemunho disso; por exemplo, se se pensa em Santo Agostinho, onde o Antigo Testamento deve ser mediado através da mensagem cristã222, ou no protestantismo primitivo, que estava às voltas com o mesmo problema, ou finalmente na era do Aufklärung, onde de imediato se produz quase a renúncia ao entendimento, quando “a compreensão completa” de um texto só deve ser alcançada pelo caminho da interpretação histórica. Só que, quando o romantismo e Schleiermacher fundam uma consciência histórica de alcance universal, prescindindo da forma vinculante da tradição, da qual procedem e na qual se encontram, como fundamento de todo esforço hermenêutico, isso representa uma verdadeira inovação qualitativa. 1611 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A história da hermenêutica nos ensina que junto à hermenêutica filológica existiram também uma teológica e outra jurídica, e que somente as três juntas comportam o conceito pleno de hermenêutica. É uma consequência do desenvolvimento da consciência histórica nos séculos XVIII e XIX o fato de que a hermenêutica filológica e a historiografia se desfizessem de seu vínculo com as outras disciplinas hermenêuticas e se estabelecesse automaticamente como teoria metodológica da investigação espiritual-científica. 1707 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É claro que poder-se-ia tentar escapar dessa consequência, dizendo que basta saber que os textos religiosos só devem ser compreendidos como textos que respondem à questão a respeito de Deus. Não exigir-se-ia do intérprete nenhuma motivação religiosa. Mas qual seria a opinião de um marxista, que considera que toda afirmação religiosa só é compreendida, quando é revelada como jogo de interesses das relações de domínio social? Evidentemente o marxista não aceitará o pressuposto de que a existência humana como tal é movida pela questão a respeito de Deus. Esse pressuposto só vale para aquele que já reconheceu nisso a alternativa da crença ou não-crença face ao Deus verdadeiro. Por isso tenho a impressão de que o sentido hermenêutico da pré-compreensão teológica é, ele próprio, teológico. A própria história da hermenêutica mostra como o questionamento de um texto está determinado por uma pré-compreensão muito concreta. A hermenêutica moderna, como disciplina protestante, tem, enquanto arte da interpretação da Escritura, uma relação polêmica para com a tradição dogmática da igreja católica e sua doutrina da justificação pelas obras. Tem pois, ela própria, um sentido dogmático e confessional. Isso não quer dizer que uma hermenêutica teológica desse tipo parta [338] de preconceitos dogmáticos, de tal modo que somente lê no texto o que ela própria aí colocou. Antes, ela própria se põe realmente em jogo. Mas o que pressupõe é que a palavra da Escritura atinge verdadeiramente, e que somente a compreende aquele a quem a sua verdade afeta, quer na fé, quer na dúvida. Nesse sentido, a aplicação é a primeira. 1811 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Uma corrente um pouco diferente, que contribuiu para o progresso de meus estudos, refere-se aos problemas das ciências sociais e da filosofia prática. O interesse crítico que Jurgen Habermas demonstrou, nos anos sessenta, pelos meus trabalhos, foi criticamente significativo. Sua crítica e minha contra-argumentação fizeram-me ver a dimensão em que havia ingressado quando transpus o âmbito do texto e da interpretação em direção ao caráter de [22] linguagem de toda compreensão. Isso permitiu-me aprofundar ainda mais a participação que a retórica tem na história da hermenêutica, que é ainda maior na forma de existência da sociedade. Alguns estudos deste volume também testemunham essa questão. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Mas também o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, não atinge o cerne do problema. O objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa. Dessa forma, a hermenêutica teve, desde sempre, a tarefa de suprir a falta de acordo ou de restabelecer o acordo, quando perturbado. A história da hermenêutica comprova isso. Por exemplo, quando Santo Agostinho afirma que o Antigo Testamento deve ser mediado pela mensagem cristã, ou quando o protestantismo primitivo se via colocado diante do mesmo problema, ou finalmente na época do Iluminismo, onde, na vontade de alcançar a “compreensão plena” de um texto somente pelas vias da interpretação histórica, tinha-se quase que renunciar ao acordo. Trata-se, pois, de algo qualitativamente novo, quando o romantismo e Schleiermacher, criando uma consciência histórica com alcance universal, já não dão mais valor à figura vinculante da tradição, da qual procedem e na qual estão postados, como uma base sólida para todo esforço hermenêutico. Um dos precursores imediatos de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, compreendeu o conteúdo fundamental da tarefa hermenêutica, ao reivindicar para ela o restabelecimento do acordo entre Antiguidade e Cristianismo, entre uma verdadeira antiguidade, vista de modo novo, e a tradição cristã. Frente ao Iluminismo, isso é algo totalmente novo, à medida que agora já não se trata mais de uma mediação entre a autoridade da tradição, por um lado, e a razão natural, por outro, mas da mediação de dois elementos da tradição, ambos vindos à consciência pelo Iluminismo, que impõe a tarefa de sua reconciliação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
À luz dessa questão, a venerada tradição da hermenêutica jurídica ganha nova vida. No seio da dogmática jurídica moderna, esse questionamento exerceu um papel insignificante, mesmo que uma dogmática só possa aperfeiçoar-se a si mesma quando conta com inevitáveis manchas vergonhosas. De qualquer modo, não se pode negar que a hermenêutica seja uma disciplina normativa e que exerça a função dogmática de complemento jurídico. Como tal, desempenha uma função indispensável, visto que precisa superar o hiato insuperável entre a generalidade do direito estabelecido e a concreção do caso individual. Nesse sentido, Aristóteles havia delimitado, na Ética a Nicômaco, o espaço hermenêutico relativo à teoria do direito, ao discutir o problema do direito natural e do conceito da epieikeia. Mesmo a reflexão sobre a história da hermenêutica jurídica mostra que o problema da interpretação compreensiva está indissoluvelmente ligado ao problema da aplicação. Essa era a dupla tarefa da ciência jurídica, sobretudo desde a recepção do direito romano. A questão não era apenas compreender os juristas romanos, mas também aplicar a dogmática do direito romano ao universo cultural moderno. Com isso, uma ligação tão estreita como a que se impôs na teologia, surgiu também entre a tarefa hermenêutica e a tarefa dogmática. Uma teoria da interpretação do direito romano não poderia abandonar-se a uma alienação histórica, pelo menos enquanto o direito romano detivesse sua vigência legal. Isso explica por que a interpretação do direito romano considera óbvio que a teoria da interpretação empreendida por Thibaut (1806) não possa se apoiar apenas na intenção do legislador, tendo que elevar o “fundamento da lei” ao nível de um verdadeiro cânon hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
O que está em jogo aqui é uma verdade hermenêutica, relacionada com o conceito de compreensão prévia. Mesmo a investigação da história da hermenêutica encontra-se sob a lei geral hermenêutica da compreensão prévia. Inicialmente, vamos mostrar isso em três exemplos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
O primeiro exemplo é o que constitui a base dos estudos de Wilhelm Dilthey sobre a história da hermenêutica, aquela obra premiada da Academia das ciências de Berlim, escrita por Dilthey em sua juventude e da qual só conhecíamos alguns fragmentos e um resumo de 1900, até ser finalmente publicada em 1966 graças à redação de Martin Redekner do segundo volume inacabado da Vida de Schleiermacher, de Dilthey. Ali Dilthey faz uma apresentação magistral de Flacius documentada com inúmeras citações. Examina e valoriza a teoria hermenêutica de Flacius utilizando o critério do sentido histórico que tomou consciência de si próprio e do método científico, histórico-crítico. À luz desse critério mescla-se na obra de Flacius a antecipação genial de certas verdades com incríveis recaídas na estreiteza dogmática e no formalismo vazio. Na realidade, se a interpretação da Sagrada Escritura não tivesse apresentado outro problema a não ser o que ocupou a teologia histórica da época liberal, à qual pertenceu Dilthey, teríamos dito a última palavra com isso. A intenção louvável de se compreender cada texto desde sua circunstância própria, sem submetê-lo a nenhuma pressão dogmática, leva finalmente, na aplicação ao Novo Testamento, à dissolução do cânon, se dermos prioridade, com Schleiermacher, à interpretação “psicológica”. Cada escritor do Novo Testamento é um caso à parte nessa perspectiva hermenêutica, e isso leva a solapar a dogmática protestante apoiada no princípio bíblico. É uma consequência que Dilthey aprovou implicitamente. Está implícita em sua crítica a Flacius. Dilthey contesta a exegese de Flacius em sua concepção histórica e abstratamente lógica do princípio da Escritura global ou do cânon. A tensão entre dogmática e exegese aparece também em outras passagens da exposição de Dilthey e sobretudo na crítica a Franz e à sua ênfase na primazia do contexto da Escritura global frente aos textos soltos. Atualmente a crítica à teologia histórica levada a efeito nos últimos cinquenta anos e que culmina na elaboração do conceito de “querigma” nos tornou mais receptivos à legitimidade hermenêutica do cânon e em consequência à legitimidade hermenêutica do interesse dogmático em Flacius. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua autoridade, que busca sempre a defesa consequente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As ideias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel, parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a “analogia da fé” não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito [279] científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Um terceiro tipo de compreensão prévia que ilumina a história da hermenêutica numa dimensão especial é uma contribuição muito erudita da história primitiva da hermenêutica feita recentemente por Hasso Jaeger. Jaeger outorga uma relevância capital a Dannhauer, que emprega pela primeira vez a palavra “hermenêutica” e a ideia de uma ampliação da lógica aristotélica com a lógica da interpretação. Vê nesse autor o último testemunho da res publica literária humanista, antes desta ser congelada pelo racionalismo e antes que o irracionalismo e o subjetivismo moderno, desde Schleiermacher, passando por Dilthey até Husserl e Heidegger (e outros ainda piores) produzissem seus frutos venenosos. Surpreendentemente o autor não toca no tema da relação entre o movimento humanista e o princípio bíblico da Reforma nem no tema do papel determinante que a retórica desempenha para toda a problemática da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da “virada”, levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha ideia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama “linguagem da metafísica”, significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da ideia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Isso leva-me a falar da história da hermenêutica. A sua tematização em meu próprio ensaio representou no fundo uma tarefa preparatória, formando um pano de fundo para o meu trabalho. A consequência disso é que todas as minhas exposições demonstraram uma certa unilateralidade. Isso vale sobretudo para Schleiermacher. Nem as lições sobre hermenêutica — encontradas tanto na edição de Lucke quanto no material original que H. Kimmerle editou nas “Abhandlungen der heidelberger Akademie der Wissenschaften” (e entrementes completadas com um minucioso epílogo [463] crítico) — nem tampouco as conferências acadêmicas de Schleiermacher — que comportam a casual referência polêmica a Wolf e Ast — podem ser comparadas com o conteúdo do seu curso de dialética, no que diz respeito ao peso teórico para uma hermenêutica filosófica, sobretudo o nexo entre pensar e falar elaborado ali. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Seja como for, dispomos atualmente de novos materiais de Dilthey que apresentam a filosofia de Schleiermacher desenhando de modo especial e com muita maestria seu pano de fundo contemporâneo, Fichte Novalis e Schlegel. É mérito de M. Redeker ter composto uma edição crítica minuciosa do segundo volume do Leben Schleiermachers (Vida de Schleiermacher) de Dilthey, a partir dos manuscritos legados. Assim, publica-se pela primeira vez a famosa e até agora desconhecida exposição de Dilthey da pré-história da hermenêutica nos séculos XVII e XVIII, da qual temos apenas um resumo no tratado acadêmico de 1900. Pela profundidade de seu estudo das fontes, pela universalidade de seu horizonte histórico e pela sua detalhada apresentação, supera em muito tudo que se fez até agora, não apenas as modestas contribuições que eu mesmo elaborei com muito esforço, mas também a obra estandártica de Joachim Wach. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.