Aos olhos de Dilthey, a hermenêutica não chega, pois, à sua verdadeira essência, a não ser quando ela transforma sua posição, a serviço de uma tarefa dogmática — que para o teólogo cristão é a correta proclamação do Evangelho — na função de um organon histórico. E se, pelo contrário, o ideal do Aufklärung histórico, a que pertence Dilthey, tivesse de se revelar como uma ilusão, então toda a pré-história da hermenêutica, esboçada por ele, teria de adquirir, também, um significado totalmente diferente; a virada em direção à consciência histórica já não seria sua liberação das presilhas do dogma, mas uma mudança de sua essência. E exatamente o mesmo vale para a hermenêutica filológica. Pois a ars critica da filologia teve, em princípio, sua pressuposição no caráter modelar irrefletido da antiguidade clássica, de cuja transmissão cuidava. Também ela, portanto, terá que se transformar em sua essência, se entre a antiguidade e o próprio presente já não existe nenhuma relação inequívoca de modelo e seguimento. Um índice disso é a quereile des anciens et des modernes, que cunha o tema geral para toda época compreendida entre o classicismo francês e o alemão. Este seria também o tema em torno do qual se desenvolveria a reflexão histórica, que acabaria dissolvendo a pretensão normativa da antiguidade clássica. Nos dois caminhos, portanto, da filologia e da teologia, dá-se o mesmo processo, que acabou levando à concepção de uma hermenêutica universal, para a qual o caráter de modelo especial já não representa uma pressuposição para a tarefa hermenêutica. [182] 963 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Os filólogos, que foram seus precedentes imediatos, se encontravam ainda numa outra posição. Para eles a hermenêutica era determinada pelo conteúdo do que se devia compreender — e isso consistia a unidade óbvia da literatura vétero-cristã. O que Ast propõe como objetivo de uma hermenêutica universal, isto é, “alcançar a unidade da vida grega e cristã”, expressa o que pensam, no fundo, todos os “humanistas cristãos”. — Schleiermacher, ao contrário, já não busca a unidade da hermenêutica na unidade de conteúdo da tradição, a que se deve aplicar a compreensão, mas a procura, à margem de toda especificação de conteúdo, na unidade de um procedimento que nem sequer é diferenciada pelo modo como as ideias foram transmitidas, se por escrito ou oralmente, se numa língua estranha ou na própria e contemporânea. O esforço da compreensão tem lugar cada vez que não se dá uma compreensão imediata, e correspondentemente cada vez que se tem de contar com a possibilidade de um mal-entendido. 967 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Este é o contexto, a partir do qual se determina a ideia de Schleiermacher de uma hermenêutica universal. Essa ideia [183] nasceu da representação de que a experiência da alteridade e da possibilidade do mal-entendido são universais. Não resta dúvida de que essa alteridade torna-se maior no discurso artístico, e o mal-entendido mais provável do que no discurso sem arte, e torna-se mais aguda no discurso fixado por escrito do que no oral, que na viva voz é de igual modo constantemente também interpretado. Mas precisamente a extensão da tarefa hermenêutica ao “diálogo significativo”, tão característica de Schleiermacher, mostra como se transformou o sentido da estranheza, cuja superação a hermenêutica deve promover, frente ao que até então havia sido a proposição de tarefas da hermenêutica. Num sentido novo e universal, a estranheza está ligada indissoluvelmente com a individualidade do tu. 969 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
b) O projeto de Schleiermacher de uma hermenêutica universal 999 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Este é, efetivamente, o pressuposto de Schleiermacher: que cada individualidade é uma manifestação do viver total e que, por isso, “cada qual traz em si um mínimo de cada um dos demais, e isso estimula a adivinhação por comparação consigo mesmo”. Assim, ele pode dizer que se deve conceber imediatamente a individualidade do autor, “transformando a si mesmo ao mesmo tempo no outro”. Ao pontualizar desse modo a compreensão no problema da individualidade, surge, para Schleiermacher a tarefa da hermenêutica como uma hermenêutica universal. Pois tanto o extremo da alteridade como o da familiaridade dão-se com a diferença relativa de toda individualidade. O “método” do compreender terá em vista tanto o comum — por comparação — como o peculiar — por adivinhação — isto é, terá de ser tanto comparativo como adivinhatório. Em ambas as perspectivas, porém, continuará sendo “arte”, porque não pode ser mecanizado como se fosse mera aplicação de regras. O adivinhatório continua imprescindível. 1025 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Por isso, de antemão é possível que apenas para Schleiermacher, que autorizou a hermenêutica até fazer dela um método à margem de qualquer conteúdo, pôde ser levada em consideração uma formulação que reivindicou tão fundamentalmente a superioridade do intérprete sobre seu objeto. Se observarmos mais de perto, compreenderemos que a aparição da fórmula em Fichte e Kant corresponde a isso. Pois o contexto em que, ali, aparece essa suposta regra filológica de trabalho, demonstra que Fichte e Kant tinham em mente algo totalmente diferente. Ali não se trata, de modo algum, de um princípio da filologia, mas de uma pretensão da filosofia, ou seja, a de superar as contradições que possam ser encontradas numa tese, através de uma maior clareza conceitual. E pois um princípio que expressa, absolutamente consoante o espírito do racionalismo, que só se alcançam as evidências que correspondem à verdadeira intenção do autor através do pensamento, através do desenvolvimento das consequências localizadas nos conceitos do autor — evidências que o autor teria que ter compartilhado, se tivesse pensado com suficiente clareza e nitidez. Também a tese, hermeneuticamente absurda, em que se mete Fichte na sua polêmica contra a interpretação kantiana [199] dominante, segundo a qual “uma coisa é o inventor de um sistema e outra, seus intérpretes e seguidores”, assim como sua pretensão de explicar Kant “segundo o espírito”, estão inteiramente impregnadas com as pretensões da crítica objetiva. A discutida fórmula não forrnula nada mais do que a reivindicação de uma crítica filosófica objetiva. Aquele que melhor souber pensar até o fim aquiío de que fala o autor estará capacitado para ver o que este diz, à luz de uma verdade ainda oculta para o próprio autor. Neste sentido, o princípio, segundo o qual devemos compreender um autor melhor do que ele se compreendeu a si mesmo, é antiquíssimo, tanto como a crítica científica em geral. Todavia, ele recebe sua cunhagem como fórmula para a crítica filosófica objetiva no espírito do racionalismo. E é natural que, como tal, ganhe um sentido muito diverso do que a regra filológica em Schleiermacher. É quase de se supor que justamente Schleiermacher reinterpretou este princípio da crítica filosófica, transformando-o em um princípio da arte da interpretação filológica. E com isso marca-se com exatidão a posição na qual se encontram Schleiermacher [200] e o romantismo. Ao criar uma hermenêutica universal, eles expulsam a crítica guiada pela compreensão da coisa em causa, para fora do âmbito da interpretação científica. 1059 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição linguística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu [480] conhecimento metodologicamente. Anatemiza, consequentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da linguisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer linguístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. 2571 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O fato de que uma ou outra vez possamos nos reportar a Platão, apesar de que a filosofia grega do logos somente permite apreciar de maneira muito fragmentária o solo da experiência hermenêutica, o centro da linguagem, o devemos evidentemente a essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da finitude da existência humana necessita. Também a afinidade que reconhecemos entre a teoria platônica da beleza e a ideia de uma hermenêutica universal testemunha a continuidade dessa tradição platônica. 2621 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.