Gadamer (VM): hermenêutica geral

O que essa fórmula quer dizer em Schleiermacher, é claro. Para ele, o ato da compreensão é a realização re-construtiva de uma produção. Tem que nos tornar conscientes de algumas coisas que ao produtor original podem ter ficado inconscientes. O que Schleiermacher introduz, aqui, em sua hermenêutica geral, é evidentemente a estética do gênio. O modo de criar do artista genial é o caso modelo, a que se reporta a teoria da produção inconsciente e da consciência necessária na reprodução. 1041 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas, segundo isso, tampouco a hermenêutica teológica poderia ainda arrogar-se um significado sistemático e autônomo. Schleiermacher a havia reconduzido conscientemente à hermenêutica geral, considerando-a simplesmente como uma aplicação especial desta. Mas, desde então, a teologia científica afirma sua capacidade de competir com as modernas ciências históricas, tendo por base que a interpretação da Sagrada Escritura não deve guiar-se por leis e nem por regras diversas das que presidem a compreensão de qualquer outra tradição. Nesse sentido não haveria porque existir uma hermenêutica especificamente teológica. 1775 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O exemplo do tradutor que tem de superar o abismo das línguas mostra, com particular clareza, a relação recíproca que se desenvolve entre o intérprete e o texto, que corresponde à reciprocidade do acordo na conversação. Pois, todo tradutor é intérprete. O fato de que algo esteja numa língua estrangeira significa somente um caso elevado de dificuldade hermenêutica, isto é, de estranheza ,e de superação da mesma. Na verdade, nesse sentido determinado igual e inequivocamente, todos os “objetos” com os quais tem a ver a hermenêutica tradicional são estranhos. A tarefa de reprodução, própria do tradutor, não se distingue qualitativa, mas somente gradualmente da tarefa hermenêutica geral que qualquer texto coloca. 2097 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Há que se perguntar também se a minha própria tentativa de conjugar a diferença da compreensão com a unidade do texto ou da obra, e em especial, se minha insistência no conceito de obra, no âmbito da arte, não pressupõe um conceito de identidade em sentido metafísico: quando a reflexão da consciência hermenêutica também reconhece que compreender é compreender-sempre-diferentemente, será que com isso se leva em conta a resistência e a opacidade que caracterizam a obra de arte? E será que o exemplo da arte pode realmente formar o quadro em que se desenvolve uma hermenêutica geral? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant e Fichte privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do “eu penso”, na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: “Conceber aquilo que nos toca” (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio. Isso não deixa de ter consequências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma “aplicação” posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida “de maneira puramente teórica”, a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O modelo fundamental de todo consenso é o diálogo, a conversa. Sabe-se que uma conversa não é possível, se uma das partes crê absolutamente estar numa posição superior em relação à outra, algo como se afirmasse possuir um conhecimento prévio dos preconceitos a que o outro se atém. Com isso, ele ver-se-ia trancado em seus próprios preconceitos. Em princípio, um consenso dialogai torna-se impossível quando um dos interlocutores do diálogo não se libera realmente para a conversa. Um caso semelhante seria, por exemplo, se alguém num ambiente social quisesse desempenhar o papel de psicólogo ou psicanalista e na pretensão de compreender psicanaliticamente os enunciados do outro não leva a sério o seu sentido. Neste caso, o companheirismo, base da vida social, estaria destruído. Essa problemática foi discutida sistematicamente sobretudo por Paul Ricoeur, ao falar do “conflito de interpretações”. Nessa discussão, situa Marx, Nietzsche e Freud de um lado e a intencionalidade fenomenológica da compreensão de “símbolos” de outro, buscando uma mediação dialética. De um lado, a derivação genética, como arqueologia, e de outro, a orientação para um sentido intencional, como teleología. Segundo ele, esse passo é apenas uma distinção preparatória, que limpa o terreno para uma hermenêutica geral, à qual caberia esclarecer a função constitutiva da compreensão de símbolos e da autocompreensão por meio de símbolos. Uma tal teoria geral hermenêutica parece-me inconsistente. Os modos de compreensão de símbolos, [117] dispostos aqui em paralelo, visavam sentidos de símbolo distintos, e por isso não constituem um “sentido” cada vez diverso da mesma realidade. Na verdade, um modo de compreender exclui o outro, porque se refere a algo diverso. Um compreende o que o símbolo quer dizer, o outro o que ele quer esconder ou mascaran Trata-se de um sentido de “compreender” totalmente distinto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, [400] dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O que tem me ocupado nos últimos anos e o que tenho buscado em diversas conferências ainda não publicadas (Bild und Wort; Das Sein des Gedichteten; Von der Wahrheit des Wortes; Philo-sophical, poetical, religious speaking = Imagem e palavra; O ser do poético; Sobre a verdade da palavra; Diálogo filosófico, poético e religioso) são os problemas hermenêuticos especiais dos textos eminentes. Esse tipo de texto fixa a pura ação de linguagem, e tem com isso um eminente relacionamento com o escrito. Nele, a linguagem está presente de tal modo que sua relação cognitiva com o dado está tão suspensa como a referência comunicativa no sentido da interpelação. Então, a situação hermenêutica geral básica da constituição e fusão de horizontes, a que dei um desenvolvimento conceitual expresso, deverá ser aplicada também a esses textos eminentes. Estou longe de afirmar que o modo como uma obra de arte fala à sua época e ao seu mundo (o que H.R. Jauss chama de sua “negatividade”) não ajuda a determinar seu significado, ou seja, o modo como ela nos fala. Este era realmente o núcleo da consciência da história dos efeitos, a saber, pensar a obra (Werk) e seu efeito (Wirkung) como a unidade de um sentido. O que descrevi como fusão de horizontes representa a forma como essa unidade se realiza. Esta não permite ao intérprete falar de um sentido originário de uma obra sem que na compreensão da mesma já não esteja sempre implicado o sentido próprio do intérprete. Toda vez que se pensar, por exemplo, que é possível “romper” o círculo da compreensão, através do método histórico-crítico (como pensou recentemente Kimmerle), se está ignorando essa estrutura hermenêutica fundamental. O que Kimmerle descreve, assim, é simplesmente o que Heidegger caracterizava como “entrar no círculo de maneira correta”, ou seja, não é uma atualização anacrônica e nem um acrítico puxar brasas para a sardinha das próprias opiniões prévias. A elaboração do horizonte histórico de um texto já é sempre uma fusão de horizontes. O horizonte histórico não pode ser erigido primeiramente por si. Isso é conhecido na hermenêutica mais recente como a problemática da compreensão prévia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.