Pois bem, a FILOSOFIA GREGA se inicia precisamente com o conhecimento de que a palavra é somente nome, isto é, que não representa (vertreten) o verdadeiro ser. Esta é a erupção do perguntar filosófico dentro da pressuposição imediatamente indiscutida do nome. Fé na palavra e dúvidas a respeito da palavra são o que caracteriza a situação do problema sob o qual o pensamento da ilustração grega considerava a relação entre palavra e coisa. Através dela o modelo do nome se converte em antimodelo. O nome que se outorga e que pode ser mudado é o que motiva que se duvide da verdade da palavra. Pode-se falar da correctura dos nomes? Mas não se tem de falar da correctura das palavras, isto é, exigir a unidade de palavra e coisa? E não foi um dos pensadores mais profundos da Antiguidade, Heráclito, quem descobriu o sentido profundo do jogo de palavras? Este é o pano de fundo de que surge o Crátilo de Platão, o escrito básico do pensamento grego sobre a linguagem, que abrange a extensão dos problemas, de tal modo que a discussão grega posterior, que só nos é conhecida de maneira muito incompleta, quase não acrescenta nada de essencial. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se a FILOSOFIA GREGA se obstina em não perceber essa relação ente palavra e coisa, entre falar e pensar, o motivo é que o pensamento tinha que defender-se da estreita relação entre palavra e coisa em meio à qual vive o homem falante. O domínio dessa língua, “a mais falável de todas” (Nietzsche), sobre o pensamento era tão intenso que a filosofia teve de dedicar seu [422] mais entranhado empenho à tarefa de libertar-se dele. Por isso, os filósofos gregos combateram, desde o princípio, o desvio e extravio do pensamento no “onoma” e se mantiveram, frente a isso, na idealidade que a própria linguagem realiza continuamente. Isso vale para Parmênides, que pensava a verdade da coisa partindo do logos, e vale plenamente a partir da mudança de rumo platônica na direção dos “discursos”, seguindo também pela orientação aristotélica das formas do ser nas formas da enunciação (schemata tes kategorias). Porque aqui, o logos era considerado determinado por sua orientação para o eidos, o ser próprio da linguagem só podia ser pensado como extravio, e o pensamento tinha que se esforçar em conjurá-lo e dominá-lo. A crítica da correctura dos nomes, realizada no Crátilo, representa o primeiro passo numa direção que desembocaria na moderna teoria instrumentalista da linguagem e no ideal de um sistema de signos da razão. Comprimido entre a imagem e o signo, o ser da linguagem só poderia acabar sendo nivelado em um puro ser-signo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
A dificuldade particular para tornar fecundo o pensamento escolástico para o nosso questionamento, consiste em que a compreensão cristã da palavra, tal como a encontramos na patrística, em parte como apoio, em parte como transformação de ideias da Antiguidade tardia, volta a se aproximar do conceito do logos da FILOSOFIA GREGA clássica, a partir da recepção da filosofia aristotélica pela alta escolástica. São Tomás, por exemplo, elabora sistematicamente a doutrina cristã, desenvolvida a partir do prólogo do Evangelho de João, mediada com o pensamento de Aristóteles. É significativo que nele mal se fale da multiplicidade das línguas, de que, todavia, Agostinho acaba sempre tratando, ainda que termine por descartá-la em favor da “palavra interior”. Para ele, a doutrina da “palavra interior” é o pressuposto evidente, sob o qual investiga o nexo de forma e verbum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
É evidente que essa rememoração não nos faz falta, quando se observa a história da filosofia. Já vimos como no pensamento medieval a relevância teológica do problema linguístico aponta, uma ou outra vez, para a unidade de pensar e falar e traz assim ao primeiro plano um momento que a FILOSOFIA GREGA clássica todavia não tinha pensado assim. O fato de que a palavra seja um processo, em que chega à sua plena expressão a unidade do intencionado — como é pensado na especulação sobre o verbo — é, face à dialética platônica do uno e do múltiplo, algo verdadeiramente novo. Para Platão o logos se movia, ele mesmo, no interior dessa dialética, e não era nada além do que o padecer a dialética das ideias. Nisso não há um verdadeiro “problema da interpretação”, na medida em que os meios da mesma, a palavra e o discurso, estão sendo constantemente superados pelo espírito que pensa. Diferentemente disso, encontramos que na especulação trinitaria o processo das pessoas divinas encerra em si o questionamento neoplatônico sobre o desenvolvimento, isto é, o surgir a partir do uno, com o que se faz justiça, pela primeira vez, ao caráter processual da palavra. Não obstante, o problema da linguagem somente poderia irromper com toda a sua força, quando a mediação escolástica de pensamento cristão e filosofia aristotélica se completasse com um novo momento, que daria uma mudança de rumo positiva à distinção entre o pensamento divino e humano, mudança que alcançaria na idade moderna a maior significação. É o comum do criacional. E, na minha opinião, é esse o conceito que caracteriza mais adequadamente a posição de Nicolau de Cusa, que nos últimos tempos está sendo estudada tão intensamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Com isso, confirma-se a proximidade de nossa colocação com Hegel e com o pensamento clássico, a que já nos referimos. Nosso ponto de partida tinha sido a insuficiência do moderno conceito de método. Não obstante, a justificação filosófica mais importante dessa insuficiência é a apelação expressa ao conceito grego do método por parte de Hegel. Sob o conceito da “reflexão externa”, Hegel critica esse conceito de método, que se realiza numa ação junto à coisa e alheia a ela. O verdadeiro método seria o fazer da própria coisa. Naturalmente essa afirmação não quer dizer que o conhecimento filosófico não seja também um fazer que requer seu esforço, o “esforço do conceito”. Mas esse fazer e esse esforço consistem em não entrar arbitrariamente, através de ideias que nos ocorram, ou lançando mão desta ou daquela ideia preconcebida, na necessidade imanente do pensamento. Obviamente que a coisa não anda seu caminho nem segue seu curso sem que nós pensemos. Pensar, porém, quer dizer precisamente desenvolver uma coisa em sua própria consequência. E manter a distância as representações “que costumam se interpor”, e ater-se estritamente à consequência do pensamento faz parte disso. É a isso que, desde a FILOSOFIA GREGA, se deu o nome de dialética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
E esse é o ponto no qual a proximidade de nossa própria colocação com respeito à dialética especulativa de Platão e de Hegel tropeça numa barreira fundamental. A superação da diferença entre especulativo e dialético que encontramos na ciência especulativa do conceito em Hegel mostra até que ponto este se entende a si mesmo como aquele que verdadeiramente consuma a FILOSOFIA GREGA do logos. O que ele chama de dialética, como o que Platão chamava de dialética, repousa objetivamente na submissão da linguagem a seu “enunciado”. O conceito do enunciado, o aguçamento dialético até a contradição, acha-se, todavia, na mais radical oposição à essência da experiência hermenêutica e à linguisticidade da experiência humana do mundo. É verdade que também a dialética de Hegel se guia de fato pelo espírito especulativo da linguagem. Mas se atendemos à maneira como Hegel se entende a si mesmo, ele só pretende extrair da linguagem o jogo reflexivo de sua determinação do pensamento, e elevá-lo pelo caminho da mediação dialética, dentro da totalidade do saber sabido, até a autoconsciência do conceito. Com isso a linguagem fica na dimensão do enunciado e não alcança a dimensão da expressão linguística do mundo. Assim, deve-se mostrar com alguns traços, como se apresenta a essência dialética da linguagem para os problemas hermenêuticos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Ninguém poderá pensar, certamente, em querer tornar retroativo esse desenvolvimento e procurar recompor, por exemplo, a categoria metafísica do belo, como a encontramos na FILOSOFIA GREGA, renovando a última reformulação dessa tradição, a estética da perfeição do século XVIII. Por mais insatisfatório que nos tenha parecido o caminho que Kant traçou rumo ao subjetivismo na nova estética, não obstante, Kant conseguiu demonstrar de maneira convincente até que ponto é insustentável o racionalismo estético. Só que não é correto fundamentar a metafísica do belo unicamente sobre a ontologia da medida e da ordem teleológica do ser, a que apela, em última instância, a aparência classicista da estética da regra do racionalismo. De fato, a metafísica do belo não é a mesma coisa que essa aplicação do racionalismo estético. Ao contrário, o retorno a Platão permite reconhecer no fenômeno do belo um aspecto completamente diferente, justamente o que nos vai interessar agora para o nosso questionamento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Na engenhosa interpretação agostiniana do “Gênesis” reconhecemos um prenúncio daquela interpretação especulativa da linguagem que desenvolvemos na análise estrutural da experiência hermenêutica do mundo, segundo a qual a multiplicidade do que é pensado surge somente a partir da unidade da palavra. Ao mesmo tempo podemos reconhecer que a [488] metafísica da luz faz valer um aspecto do conceito antigo do belo, que pode afirmar seu direito inclusive à margem de sua relação com a metafísica da substância e da referência metafísica do espírito divino infinito. O resultado da nossa análise da posição do belo na FILOSOFIA GREGA clássica é, pois, que, também para nós, esse aspecto da metafísica pode, todavia, adquirir um significado produtivo. O fato de que o ser seja um representar-se, e de que todo compreender seja um acontecer, essa primeira e essa última perspectiva superam o horizonte da metafísica da substância do mesmo modo que o experimentou o conceito da substância ao converter-se nos conceitos da subjetividade e da objetividade científicas. Desse modo, a metafísica do belo não carece de consequências para o nosso próprio questionamento. Já não se trata, como se mostrou na tarefa da discussão do século XIX, de justificar pela teoria da ciência a pretensão de verdade da arte e do artístico — ou também a da história e a da metodologia das ciências do espírito. A tarefa que nos é colocada agora é muito mais geral: consiste em fazer valer o pano de fundo ontológico da experiência hermenêutica do mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O fato de que uma ou outra vez possamos nos reportar a Platão, apesar de que a FILOSOFIA GREGA do logos somente permite apreciar de maneira muito fragmentária o solo da experiência hermenêutica, o centro da linguagem, o devemos evidentemente a essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da finitude da existência humana necessita. Também a afinidade que reconhecemos entre a teoria platônica da beleza e a ideia de uma hermenêutica universal testemunha a continuidade dessa tradição platônica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Ora, o relevante para o pensamento é que na guinada que experimentou o conceito de ciência no começo da modernidade é que mesmo ali o princípio fundamental do pensamento grego sobre o ser acabou se conservando. A física moderna pressupõe a metafísica antiga. Heidegger reconheceu essa cunhagem do pensamento ocidental, de origem remota, e com isso a autoconsciência histórica da atualidade ganhou uma significação específica. Isto porque esse conhecimento veda o caminho a todas as tentativas de restauração romântica dos ideais antigos, sejam eles medievais ou helenístico-humanistas, à medida que torna patente o caráter inevitável da história da civilização ocidental. Também o esquema hegeliano de uma filosofia da história e de uma história da filosofia já não pode ser suficiente, visto que, segundo Hegel, a FILOSOFIA GREGA não [49] é nada mais que um prelúdio especulativo daquilo que encontrou sua realização plena na autoconsciência moderna do espírito. O idealismo especulativo e seu postulado de uma ciência especulativa acabaram convertendo-se numa restauração totalmente impotente. Por mais cerceada que seja, a ciência acaba sendo o alfa e o ômega de nossa civilização. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.
Creio que se torna necessário tematizar aqui as universalidades interativas da retórica, da hermenêutica e da sociologia em sua interdependência e esclarecer a legitimidade característica de cada uma dessas universalidades. Isso torna-se ainda mais importante à medida que comportam — principalmente as duas primeiras — uma certa ambiguidade em sua pretensão científica, co-determinada por sua relação com a praxis. Isso porque a retórica não é evidentemente uma mera teoria das formas de falar e dos recursos de persuasão. Ela pode, antes, progredir de uma capacidade natural para uma destreza prática. Sejam quais forem seus recursos e métodos, tampouco a arte da compreensão depende imediatamente da consciência pela qual segue suas regras. Também aqui a habilidade natural que todos possuem pode tornar-se numa capacidade pela qual alguém pode suplantar todos os outros, e a teoria, na melhor das hipóteses, só poderá perguntar pelo porquê. Em ambos os casos dá-se uma suplementaridade entre a teoria e aquilo de que foi extraída e que chamamos de práxis. Uma pertence à FILOSOFIA GREGA primitiva, a outra é uma consequência da dissolução tardia dos fortes vínculos da tradição e do esforço para manter o que está em vias de desaparecer, superando-o por uma consciência lúcida. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
Temos assim, de um lado, a semiótica e a linguística, que criaram novos conhecimentos sobre o modo funcional e a estrutura dos sistemas de linguagem e dos sistemas de signos. E, de outro, a teoria do conhecimento, segundo a qual a linguagem fornece a todos o acesso ao mundo. Ambas as correntes atuam conjuntamente para fazer-nos ver desde uma nova ótica os pontos de partida de uma justificação filosófica de acesso científico ao mundo. Seu pressuposto era de que o sujeito domina a realidade empírica com uma autocerteza metodológica, graças aos recursos da construção racional matemática, expressando-a em forma de enunciados de juízo. Desse modo, realizou sua autêntica tarefa cognitiva, realização que culmina no simbolismo matemático, que serve para conferir uma validez geral à formulação da ciência natural. O mundo intermediário da linguagem fica idealmente em suspenso. Quando a linguagem se torna consciente como tal, então apresenta-se como a mediação primeira para o acesso ao mundo. Assim, se esclarece o caráter insuperável do esquema de mundo formulado na linguagem. O mito da autocerteza, que em sua forma apodíctica passou a ser a origem e a justificação de toda validez, e o ideal de fundamentação última, disputado pelo apriorismo e o empirismo, perdem sua credibilidade ante a prioridade e ineludibilidade do sistema da linguagem que articula toda consciência e todo saber. Nietzsche nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência. Freud nos fez conhecer as admiráveis descobertas científicas que levaram a sério esta dúvida. E, da [339] crítica radical de Heidegger ao conceito de consciência, aprendemos a ver os pressupostos conceituais que procedem da FILOSOFIA GREGA do logos e que na guinada moderna elevaram o conceito de sujeito ao primeiro plano. Tudo isso confere a primazia à “estrutura da linguagem” própria de nossa experiência de mundo. Frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do real, do dado. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
O que nos fascinou foi sobretudo a intensidade com que Heidegger fazia reviver a FILOSOFIA GREGA. Quase não tínhamos consciência de que essa FILOSOFIA GREGA representava muito mais um contraponto do que um paradigma de seu próprio perguntar. A “destruição” da metafísica por Heidegger, porém, não era aplicável somente ao idealismo da consciência da época moderna, mas também a suas origens na metafísica grega. Sua crítica radical questionou tanto o caráter cristão da teologia quanto a cientificidade da filosofia. Frente à inanidade do filosofar acadêmico, que se movia numa linguagem kantiana ou hegeliana degradada e pretendia completar ou superar sempre de novo o idealismo transcendental, Platão e Aristóteles apareciam de imediato como aliados de todo aquele que tinha perdido a fé nos jogos de sistemas da filosofia acadêmica, inclusive nesse sistema aberto de problemas, categorias e valores que orientava a investigação fenomenológica das essências ou a análise categorial baseada na história dos problemas. Os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a ideia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra [485] sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A história da ciência grega difere evidentemente da história da ciência moderna. No período platônico foi possível religar o caminho seguido pelo esclarecimento, pela investigação e pela explicitação do mundo com os esquemas tradicionais da religião e da visão grega da vida. Foram Platão e Aristóteles, e não Demócrito, os que presidiram a história da ciência na Antiguidade tardia, e de modo algum foi uma história de decadência científica. A ciência helenística, como é chamada hoje, não precisou se defender da “filosofia” e seus postulados, mas alcançou sua emancipação justamente através da FILOSOFIA GREGA, através do Timeu e da Física aristotélica, como procurei demonstrar em um trabalho intitulado Gibt es die Materie? (Existirá a matéria?). Na verdade, mesmo o projeto oposto representado pela física de Galileu e de Newton determina-se a partir daquela. Um trabalho sobre Antike Atomtheorie (Teoria atômica antiga, 1934) foi o único fragmento que publiquei então desse grupo de estudos. Buscava desfazer os preconceitos infantis que a ciência moderna alimenta a respeito de Demócrito, o grande desconhecido. A grandeza de Demócrito nada perderia com isso. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A hermenêutica e a FILOSOFIA GREGA foram os dois pontos básicos de meu trabalho. Permitam-me expor brevemente o nexo interno que sustenta meu pensamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.