As pesquisas que virão a seguir têm a ver com o problema da hermenêutica. O fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo instruído. Por isso, desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método. O que importa a ele, em primeiro lugar, não é estruturação de um conhecimento seguro, que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência — embora, sem dúvida, se trate também aqui do conhecimento e da verdade. Ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? VERDADE E MÉTODO Introdução
Em face do predomínio que a ciência contemporânea possui no âmbito do esclarecimento filosófico e da justificação do conceito do conhecimento e do conceito de verdade, essa pergunta parece ficar sem uma correta legitimação. E no entanto, não se pode escapar a ela, no seu campo científico. O fenômeno da compreensão perpassa não somente tudo que diz respeito ao mundo do ser humano. Tem vitalidade independente também no terreno da ciência e resiste à tentativa de deixar-se ser reinterpretado como um método da ciência. As pesquisas a serem apresentadas vinculam-se a essa resistência que vem se afirmando, no âmbito da moderna ciência, contra a reivindicação universal da metodologia científica. Seu propósito é o de procurar por toda parte a experiência da verdade, que ultrapassa o campo de controle da metodologia científica, e indagar de sua própria legitimação, onde quer que a encontre. É assim que se aproximam as ciências do espírito das formas de experiência que se situam fora da ciência: com a experiência da filosofia, com a experiência da arte e com a experiência da própria história.Todos estes são modos de experiência, nos quais se manifesta uma verdade que não pode ser verificada com os meios metódicos da ciência. VERDADE E MÉTODO Introdução
Daí procede a muito marcante consciência que possui a filosofia dos nossos dias. Mas há uma outra pergunta, bem diferente: até que ponto a reivindicação da verdade de tais formas de conhecimento, situadas fora do âmbito da ciência, podem ser filosoficamente legitimadas? A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, ao meu ver, no fato de que apenas um aprofundamento no fenômeno da compreensão pode trazer uma tal legitimação. Não foi apenas em última instância que essa convicção veio a se fortalecer em mim, devido à importância que a história da filosofia possui no trabalho filosófico da atualidade. Diante da tradição histórica da filosofia, a compreensão se nos depara como uma experiência meditada, que nos deixa distinguir facilmente o que há de aparente no método histórico que paira sobre a pesquisa filosófica e a histórica. Faz parte da elementar experiência do filosofar, que os clássicos do pensamento filosófico, sempre que procuramos entendê-los, façam valer, de si mesmos, uma reivindicação de verdade que não pode ser rejeitada nem sobrepujada pela consciência contemporânea. A ingênua consciência da dignidade própria da atualidade até pode se rebelar contra o fato de que a consciência filosófica admite que seu próprio ponto de vista filosófico seja o de um Platão ou Aristóteles, de um Leibniz, Kant ou Hegel, em contraposição a de outros de menor categoria. Pode-se considerar uma fraqueza do filosofar atual, que se dedique à interpretação e à compilação de sua tradição clássica, confessando sua própria fraqueza. No entanto, há uma fraqueza bem maior do pensamento filosófico, quando alguém não se submete a uma tal prova e prefere fazer o papel de tolo por conta própria. E preciso que a gente admita que na compreensão dos textos desses grandes pensadores se reconhece a verdade, que não seria acessível por outros meios, ainda que isso contradiga o padrão de pesquisa e de progresso com que a ciência mensura a si própria. VERDADE E MÉTODO Introdução
Não se pode afirmar que, sobre esse ponto, no qual Dilthey vê o problema decisivo, as suas ideias não tivessem alcançado completa clareza. O que apresenta o ponto decisivo, aqui, é o problema do passo a ser dado da fundamentação psicológica para a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. Nisso Dilthey não passou nunca de simples esboços. Na mencionada passagem do Aufbau, a autobiografia e a biografia — dois casos especiais de experiência e conhecimento históricos — conservam uma preponderância não inteiramente fundamentada. Pois já vimos que o problema da história não é saber como pode ser vivido e conhecido o nexo geral, mas como devem ser conhecíveis também aqueles nexos que nenhum indivíduo pôde viver como tal. Seja como for, não há muitas dúvidas sobre o modo como Dilthey imaginava o esclarecimento desse problema, partindo do fenômeno da compreensão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão o que é expressado está presente de uma maneira distinta do que [229] a causa no efeito. Ele está presente na expressão e é compreendido quando se compreende esta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Se, a modo de conclusão, colocarmos em relação com o nosso questionamento a descrição aristotélica do fenômeno ético, em particular, da virtude do saber moral, então a análise aristotélica se nos apresenta como uma espécie de modelo dos problemas inerentes à tarefa hermenêutica. Também nós tínhamos nos convencido de que a aplicação não é uma parte última e eventual do fenômeno da compreensão, mas que o determina desde o princípio e no seu todo. Tampouco aqui a aplicação consistia em relacionar algo geral e prévio com uma situação particular. O intérprete que se confronta com uma tradição procura aplicá-la a si mesmo. Mas isso tampouco significa que o texto transmitido seja, para ele, algo dado e compreendido como um algo geral que pudesse ser empregado posteriormente para uma aplicação particular. Pelo contrário, o intérprete não pretende outra coisa que compreender esse geral, o texto, isto é, compreender o que diz a tradição e o que faz o sentido e o significado do texto. E para compreender isso ele não deve querer ignorar a si mesmo e a situação hermenêutica concreta, na qual se encontra. Está obrigado a relacionar o texto com essa situação, se é que quer entender algo nele. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Afirmo, por isso, que devemos desvincular conscientemente o fenômeno da compreensão da prioridade concedida aos distúrbios na compreensão, se quisermos descobrir realmente qual o seu lugar no todo de nossa realidade humana e social. Na verdade, são relativamente raros os obstáculos no entendimento e na compreensão, que imponham a tarefa de um querer compreender deliberado com vistas a superar o mal-entendido. Em outras palavras, o exemplo do “acordo tácito”, longe de ser uma objeção à estrutura de linguagem inerente à compreensão, assegura, antes, a sua amplitude e universalidade. Trata-se de uma verdade fundamental, que no meu entender deve recuperar seu valor, sobretudo após tantos séculos em que o conceito moderno científico tem predominado de forma absoluta em nossos esforços de autocompreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Foi justamente esse nexo entre a nova ciência e o ideal de método que ela comporta que tornou irreconhecível, por assim dizer, o fenômeno da compreensão. Assim como a natureza significa, de imediato, algo estranho e impenetrável para o pesquisador da natureza, que pelo cálculo e coerção, ele obriga a falar na tortura através do experimento, também as ciências que fazem uso da compreensão passaram a moldar-se cada vez mais a esse gênero de conceito de método. Dessa maneira, a compreensão foi preferencial e primordialmente concebida como eliminação de mal-entendidos, como superação da estranheza entre um eu e um tu. Mas será o tu por definição tão estranho como o objeto de investigação empírica da natureza? Deve-se reconhecer que o entendimento é mais [188] originário que o mal-entendido, de tal modo que a compreensão retorna sempre de novo para o entendimento restabelecido. É isso que a meu ver legitima plenamente a universalidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Mas por que será que o fenômeno da compreensão tem caráter de linguagem? Por que o “entendimento tácito”, que se estabelece sempre e de novo como uma orientação comum no mundo, significaria estrutura de linguagem? Esse tipo de pergunta já traz implícita a resposta. É a linguagem que constrói e conserva essa orientação comum no mundo. Conversa não é primariamente controvérsia. Parece-me característico da modernidade apreciar em demasia a identificação entre conversa e controvérsia. Conversar também não é mutuamente desentender-se ou passar ao largo do outro. Constrói-se, ao contrário, um aspecto comum do que é falado. A verdadeira realidade da comunicação humana é o fato de o diálogo não ser nem a contraposição de um contra a opinião do outro e nem o aditamento ou soma de uma opinião à outra. O diálogo transforma a ambos. O êxito de um diálogo dá-se quando já não se pode recair no dissenso que lhe deu origem. Uma solidariedade ética e social só pode acontecer na comunhão de opiniões, que é tão comum que já não é nem minha nem tua opinião, mas uma interpretação comum do mundo. Tudo que é justo e se considera como justiça exige, por sua natureza, essa comunhão que se instala na compreensão recíproca das pessoas. Na verdade, a opinião comum constrói-se sempre na mutualidade da conversa e é somente depois que recai no silêncio do consenso e do evidente. Por esse motivo, parece-me justificado afirmar que todas as formas extraverbais de compreensão apontam para a compreensão que se difunde no falar e na mutualidade da conversa. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Assim, quando proponho o desenvolvimento da consciência hermenêutica como uma possibilidade mais abrangente, como contraponto a essa consciência estética e histórica, minha intenção imediata é buscar superar a redução teórico-científica que sofreu o que chamamos tradicionalmente de “ciência da hermenêutica” pela sua inserção na ideia moderna de ciência. Na hermenêutica de Schleiermacher fez-se ouvir tanto a voz do romantismo histórico quanto os interesses do teólogo cristão, na medida em que enquanto uma teoria geral da compreensão sua hermenêutica deveria favorecer a tarefa específica da interpretação da Sagrada Escritura. E, quando nos detemos a analisar essa hermenêutica, a perspectiva de Schleiermacher para essa disciplina mostra-se peculiarmente restringida pelo pensamento moderno de ciência. Schleiermacher define a hermenêutica como a arte de evitar mal-entendidos. Decerto, essa não é uma descrição totalmente errônea do esforço hermenêutico. O estranho induz facilmente mal-entendidos, produzidos pela distância temporal, pela mudança dos costumes de linguagem, a modificação do significado das palavras e dos modos de representação. Deve-se evitar o mal-entendido pela reflexão controlada por métodos. Mas também aqui devemos perguntar do seguinte modo: Quando afirmamos que compreender significa evitar mal-entendidos, estaremos definindo adequadamente o fenômeno da compreensão? Será que todo mal-entendido não pressupõe uma espécie de “acordo latente”? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Tampouco a fundamentação do conceito de consciência em uma rigorosa fenomenologia da temporalidade, como a que persegue Husserl no esforço de toda sua vida, transcende esse conceito grego de presença. Daí, o problema da linguagem não alcançar no pensamento da tradição o lugar central que hoje lhe outorgamos. Nem Hegel nem Husserl abordaram expressamente esse problema, e mesmo as fundamentações modernas do conhecimento com os recursos da semântica e de uma semiótica universal não conferem o lugar central que deve ser atribuído ao acontecimento da linguagem como tal. O debate hermenêutico moderno colocou o fenômeno do diálogo no centro das discussões, porque a linguagem só se dá, se forma, se amplia e atua no diálogo. Em todo caso, o fenômeno da compreensão sustenta-se no caráter de linguagem desse processo, sem implicar por isso a unilateralidade da teoria psicológica da interpretação de Schleiermacher. A dimensão hermenêutica permanece caracterizada, antes, justamente pelo caráter escrito de todo fenômeno de linguagem. Se há um modelo que pode ilustrar realmente as tensões presentes na compreensão, esse é o modelo da tradução. Na tradução apropria-se o estranho enquanto tal, o que não significa deixá-lo estar como estranho nem incorporá-lo na própria língua pela mera reprodução de seu caráter estranho. Nela fundem-se, antes, os horizontes do passado e do presente num constante movimento, como o que constitui a essência da compreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.