Gadamer (VM): exigência hermenêutica

E evidente que não se trata de uma exigência hermenêutica no sentido tradicional do conceito de hermenêutica. Pois isso não quer dizer que a investigação tenha que desenvolver um questionamento de história efeitual paralelo ao questionamento direto da compreensão da obra. A exigência tem um cunho teorético. A consciência histórica tem de se conscientizar de que, na suposta imediatez com que se orienta para a obra ou para a tradição, está sempre em jogo esse outro questionamento, ainda que de uma maneira despercebida e, por consequência, incontrolada. Quando procuramos compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual. Ela determina de antemão o que se mostra a nós de questionável e como objeto de investigação, e nós esquecemos logo a metade [306] do que realmente é, mais ainda, esquecemos toda a verdade deste fenômeno, a cada vez que tomamos o fenômeno imediato como toda a verdade. 1661 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É também interessante falar de horizontes no âmbito da compreensão histórica, sobretudo quando nos referimos à pretensão da consciência histórica de ver o passado em seu próprio ser, não a partir de nossos padrões e preconceitos contemporâneos, mas a partir de seu próprio horizonte histórico. A tarefa da compreensão histórica inclui a exigência de ganhar em cada caso o horizonte histórico, a fim de que se mostre, assim, o que queremos compreender em suas verdadeiras medidas. Quem omitir esse deslocar-se ao horizonte histórico a partir do qual fala a tradição, estará sujeito a mal-entendidos com respeito ao significado dos conteúdos daquela. Nesse sentido, parece ser uma exigência hermenêutica justificada o fato de termos de nos colocar no lugar do outro para poder entendê-lo. Só que teremos de indagar então se esse lema não se torna devedor precisamente da compreensão que nos é exigida. Ocorre como no diálogo que mantemos com alguém com o único propósito de chegar a conhecê-lo, isto é, de termos uma ideia de sua posição e horizonte. Esse não é um verdadeiro diálogo; não se procura o entendimento sobre um tema, já que os conteúdos objetivos do diálogo não são mais que um meio para conhecer o horizonte do outro. Pense-se, por exemplo, numa situação de exame ou em determinadas formas de consultas médicas. A consciência histórica opera de um modo análogo, quando se desloca para a situação do passado e supõe ter assim seu verdadeiro horizonte histórico. E tal como no diálogo, o outro se torna compreensível em suas opiniões, a partir do momento em que se tornou reconhecida sua posição e horizonte, sem que, no entanto, isso implique no fato de que chegamos a nos entender com ele, para quem pensa historicamente, a tradição se torna compreensível em seu sentido, sem que nos entendamos com ela e nela. 1673 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se imaginarmos agora um historiador que encontra na [340] tradição uma ordem desse tipo e procura compreendê-la, é claro que sua posição será muito diferente da do destinatário original. Na medida em que ele não é o intencionado da ordem, não pode referi-la a si mesmo. E, não obstante, se quer entender de verdade a ordem em questão, tem que realizar, idealiter, o mesmo desempenho que o destinatário a que se referia a ordem. Também este último, que refere a ordem a si mesmo, está em condições de distinguir entre compreender a ordem e segui-la. Cabe-lhe a possibilidade de não segui-la, ainda que haja compreendido, ou precisamente por isso. Para o historiador pode acabar sendo difícil reconstruir a situação para a qual se emitiu a ordem em questão. Mas também ele a terá entendido inteiramente quando tiver realizado a tarefa dessa concreção. Esta é a clara exigência hermenêutica: compreender o que diz um texto a partir da situação concreta na qual foi produzido. 1823 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma “aplicação consciente” que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação [261] apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se “normativa”, no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.