O caso da tradução nos faz conscientes da linguisticidade como o médium do acordo, através do fato de que este meio tem de ser produzido artificialmente através de uma mediação expressa. Este agenciamento artificial não é, evidentemente, o caso normal das conversações. Tampouco a tradução é o caso normal de nosso comportamento com respeito a uma língua estrangeira. Antes, o fato de depender da tradução é como que uma renúncia da autonomia por parte do interlocutor. Quando a tradução é necessária, não há outro remédio a não ser dar-se conta da distância entre o espírito da literalidade originária do que é dito e o de sua reprodução, distância que nunca chegamos a superar por completo. Neste caso o acordo não se dá realmente entre os companheiros de DIÁLOGO mas entre os intérpretes, que estão realmente capacitados para se encontrar realmente num mundo comum de compreensão. (É sabido que não há nada mais difícil do que um DIÁLOGO em duas línguas diferentes, em que um usa uma língua, o outro, outra, visto que cada um dos dois entende a outra, mas sem saber falá-la. Em tais casos uma das línguas procura, como através de um poder superior, impor-se à outra como o médium para se chegar ao acordo.) VERDADE E MÉTODO PARTE III 1
A questão então é: como o jogo da linguagem, que é o jogo mundano de cada um, se conjuga com o jogo da arte. Como um se relaciona com o outro? É claro que em ambos os casos o caráter próprio da linguagem está incluído na dimensão hermenêutica. Creio ter mostrado de maneira convincente que a compreensão do falado deve ser pensada a partir da situação de DIÁLOGO, e isto significa em última instância, a partir da dialética de pergunta e resposta, na qual nos entendemos e pela qual articulamos o mundo comum. Ultrapassei a lógica de pergunta e resposta, como já havia sido esboçada por Collingwood, isso porque a orientação de mundo não se dá apenas no fato de desenvolver-se, entre os dialogantes, pergunta e resposta, mas por proceder das próprias coisas de que se fala. A coisa (Sache) “suscita perguntas”. Por isso, o processo de pergunta e resposta desenrola-se também entre o texto e seu intérprete. A escritura como tal não modifica em nada a situação do problema. Em questão está a coisa de que se fala, seu ser-assim-ou-assado. Meios de comunicação, como a carta, por exemplo, são a continuação de um DIÁLOGO, através de outros meios. Desta forma, também um livro, que aguarda pela resposta do leitor, é a abertura de um DIÁLOGO dessa natureza. Ali, algo vem à fala. VERDADE E METODO II Introdução 1
O que ocorre, porém, com a obra de arte e especialmente com a obra de arte no âmbito da linguagem? Será possível falar ali de uma estrutura de DIÁLOGO da compreensão e do entendimento? Pois não há autor que possa fazer as vezes de um interlocutor que responde, e não há nenhuma coisa em discussão, que seja deste ou daquele modo. A obra textual sustenta-se por si mesma. Aqui, a dialética de pergunta e resposta, se é que ela ocorre, parece dar-se numa única direção, isto é, a partir daquele que procura compreender a obra de arte, que a interroga, se questiona e procura escutar a resposta da obra. Sendo um, esse sujeito poderá, como ser pensante, exercer ao mesmo tempo o papel de quem pergunta e de quem responde, como acontece no DIÁLOGO real entre duas pessoas. Esse DIÁLOGO consigo mesmo do leitor que busca compreender não parece contudo um DIÁLOGO com o texto, que é fixo e, como tal, acabado. Ou não? Existirá, na verdade, um texto acabado e pronto? VERDADE E METODO II Introdução 1
Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela “famosa analogia”. É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger frequentemente a expressão “co-originariedade” — uma ressonância da “analogia” e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à ideia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis, muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de DIÁLOGO da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do DIÁLOGO, ou melhor, dos diálogos de Sócrates, compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno, ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no DIÁLOGO com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o DIÁLOGO, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um DIÁLOGO que dura através dos tempos. VERDADE E METODO II Introdução 1
Empreguei o conceito de simultaneidade para possibilitar um modo de aplicação desse conceito, que se nos tornou evidente através de Kierkegaard. Foi ele quem caracterizou a verdade do anúncio cristão como “simultaneidade”. Para ele a verdadeira tarefa do ser cristão apresentava-se como a subsunção da distância do passado pela simultaneidade. Aquilo que, em versão teológica, Kierkegaard formulou como paradoxo vale, quanto ao objeto, para toda nossa relação com a tradição e o passado. Creio que a linguagem desempenha a função de uma síntese constante entre o horizonte do passado e o do presente. Compreendemo-nos uns aos outros, à medida que conversamos, também quando nos desentendemos, e por fim, à medida que utilizamos as palavras que expõem diante de nós, compartilhadas, as coisas por elas referidas. A linguagem tem sua própria historicidade. Cada um de nós tem sua própria linguagem. Não existe, em absoluto, o problema de uma linguagem comum para todos. Existe apenas a maravilha de que, apesar de termos todos uma linguagem diferente, podemos nos compreender além dos limites dos indivíduos, dos povos e dos tempos. Essa maravilha não pode certamente ser dissociada do fato de que também as coisas, sobre que falamos, apresentam-se diante de nós como algo comum, quando falamos sobre elas. O modo de ser de uma coisa só se expressa quando falamos sobre ela. O que entendemos por verdade — revelação, desocultação das coisas — tem, portanto, sua própria temporalidade e historicidade. Em todo o nosso esforço por alcançar a verdade, descobrimos admirados que não podemos dizer a verdade sem interpelação e sem resposta e assim sem o caráter comum do consenso obtido. O mais admirável, porém, na essência da linguagem e do DIÁLOGO é que eu próprio não estou ligado ao que penso quando falo com outras pessoas sobre algo, e que nenhum de nós abarca toda a verdade em seu pensar, mas que a verdade no seu todo, no entanto, pode abarcar a todos nós em nosso pensar individual. Uma hermenêutica adequada à nossa existência histórica deveria assumir a tarefa de desenvolver as relações semânticas entre linguagem e DIÁLOGO, que nos atingem e ultrapassam. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4
A hermenêutica tem, em todo caso, uma temática própria. Apesar de sua generalidade, não pode ser integrada legitimamente na lógica. Em certo sentido, partilha com a lógica a universalidade. Em outro, chega, porém, a superá-la. É claro que todo conjunto enunciativo pode ser considerado do ponto de vista de sua estrutura lógica: As regras da gramática, da sintaxe e finalmente as leis da dedução lógica podem sempre ser empregadas aos contextos do discurso e do pensamento. Raras são, contudo, as vezes em que um conjunto discursivo realmente vivo satisfaz as exigências estritas da lógica de enunciado. O discurso e o DIÁLOGO não são “enunciados” no sentido de um juízo lógico, cuja univocidade e significado pode ser comprovado e verificado por todos, mas têm seu lado ocasional. Eles se dão num processo comunicativo, no qual o monólogo do discurso científico e o processo de demonstração representam apenas um caso especial. O modo de realizar-se da linguagem é o DIÁLOGO, mesmo que seja o DIÁLOGO da alma consigo mesma, que é como Platão caracteriza o pensamento. Nesse sentido, enquanto teoria da compreensão e do entendimento, a hermenêutica congrega a máxima generalidade. Compreende todo enunciado não apenas em sua validade lógica, mas como resposta a uma pergunta. Isto significa, porém, que aquele que compreende, precisa compreender a pergunta, e uma vez que a compreensão precisa alcançar seu sentido a partir de sua história motivacional, precisa ir necessariamente além do conteúdo do enunciado concebido pela lógica. No fundo, isto já estava presente na dialética do espírito de Hegel, tendo sido retomado por B. Croce, Collingwood e outros. Vale a pena ler, na Autobiography de Collingwood, o capítulo sobre The logic of question and answer (A lógica de pergunta e resposta). Mas mesmo uma análise puramente fenomenológica não pode furtar-se ao fato de que não existem percepções nem juízos isolados. Foi o que demonstrou fenomenologicamente H. Lipp, em sua Hermeneutische Logik (Lógica hermenêutica), à base da teoria husserliana das intencionalidades anônimas, desenvolvendo uma análise na linha do conceito existencial de mundo, de Heidegger. Na Inglaterra, Austin desenvolveu, em sentido análogo, a virada do Wittgenstein tardio. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8
O modelo fundamental de todo consenso é o DIÁLOGO, a conversa. Sabe-se que uma conversa não é possível, se uma das partes crê absolutamente estar numa posição superior em relação à outra, algo como se afirmasse possuir um conhecimento prévio dos preconceitos a que o outro se atém. Com isso, ele ver-se-ia trancado em seus próprios preconceitos. Em princípio, um consenso dialogal torna-se impossível quando um dos interlocutores do DIÁLOGO não se libera realmente para a conversa. Um caso semelhante seria, por exemplo, se alguém num ambiente social quisesse desempenhar o papel de psicólogo ou psicanalista e na pretensão de compreender psicanaliticamente os enunciados do outro não leva a sério o seu sentido. Neste caso, o companheirismo, base da vida social, estaria destruído. Essa problemática foi discutida sistematicamente sobretudo por Paul Ricoeur, ao falar do “conflito de interpretações”. Nessa discussão, situa Marx, Nietzsche e Freud de um lado e a intencionalidade fenomenológica da compreensão de “símbolos” de outro, buscando uma mediação dialética. De um lado, a derivação genética, como arqueologia, e de outro, a orientação para um sentido intencional, como teleología. Segundo ele, esse passo é apenas uma distinção preparatória, que limpa o terreno para uma hermenêutica geral, à qual caberia esclarecer a função constitutiva da compreensão de símbolos e da autocompreensão por meio de símbolos. Uma tal teoria geral hermenêutica parece-me inconsistente. Os modos de compreensão de símbolos, dispostos aqui em paralelo, visavam sentidos de símbolo distintos, e por isso não constituem um “sentido” cada vez diverso da mesma realidade. Na verdade, um modo de compreender exclui o outro, porque se refere a algo diverso. Um compreende o que o símbolo quer dizer, o outro o que ele quer esconder ou mascarar. Trata-se de um sentido de “compreender” totalmente distinto. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8
Contribuir para um DIÁLOGO em que tanto se desconhece a primeira palavra que não se haverá de ouvir a última, é sem dúvida um risco. Trata-se, todavia, de um risco que devemos constantemente assumir. É o que acontece aqui onde me disponho a falar do problema da história desde a perspectiva que a filosofia desenvolveu nas últimas décadas. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10
Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo DIÁLOGO pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do DIÁLOGO, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em DIÁLOGO mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no DIÁLOGO, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o DIÁLOGO sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um DIÁLOGO interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11
Conjugado com isso aparece o terceiro aspecto, que gostaria de chamar de universalidade da linguagem. A linguagem não constitui um âmbito fechado do que pode ser dito ao lado de outros âmbitos do indizível, mas ela é oniabrangente. Uma vez que o simples ter em mente já se refere a algo, não há nada que se subtraia fundamentalmente à possibilidade de ser dito. A possibilidade de dizer avança sem deter-se por causa da universalidade da razão. Todo DIÁLOGO possui, portanto, uma infinitude interna e não acaba nunca. O DIÁLOGO é interrompido, seja porque os interlocutores consideram já ter dito o suficiente, seja por não terem mais nada a dizer. Toda interrupção desse DIÁLOGO guarda, por sua vez, uma referência interna à retomada do DIÁLOGO. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11
Fazemos essa experiência, às vezes de maneira dolorosa, quando nos exigem um enunciado ou uma declaração. A pergunta que se deve responder — pense-se no exemplo extremo do interrogatório ou da declaração diante de um tribunal — é como uma barreira que se ergue contra o espírito da linguagem que quer expressar-se e dialogar (”Aqui falo eu” ou “Responda à minha pergunta!”). Tudo que é dito não tem sua verdade simplesmente em si mesmo, mas remete amplamente ao que não é dito. Todo enunciado é motivado, isto é, a tudo que é dito podemos perguntar com razão: “Por que dizes isso?” Um enunciado só consegue tornar-se compreensível quando no dito compreende-se também o não dito. Sabemos isso sobretudo pelo fenômeno da linguagem. Uma pergunta da qual não sabemos a motivação não pode ser respondida. Pois é só a história da motivação da pergunta que abre o âmbito a partir do qual pode-se procurar e dar uma resposta. Assim, tanto no perguntar quanto no responder dá-se um DIÁLOGO infinito em cujo espaço se dão palavra e resposta. Tudo que é dito encontra-se nesse espaço. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11
Isso aparece exemplarmente naquelas traduções que deveriam possibilitar um DIÁLOGO oral, pela intermediação do intérprete, entre pessoas de idiomas diferentes. Um intérprete que se limita a reproduzir o que representam na outra língua as palavras e frases ditas por um dos interlocutores torna o DIÁLOGO incompreensível. O que deve reproduzir não é o que foi dito em seu sentido literal, mas o que o outro quis dizer e disse, deixando muita coisa impronunciada. O limite de sua reprodução também deve ganhar o único espaço que possibilita o DIÁLOGO, isto é, a infinitude interna que convém a todo entendimento. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11
Mas por que será que o fenômeno da compreensão tem caráter de linguagem? Por que o “entendimento tácito”, que se estabelece sempre e de novo como uma orientação comum no mundo, significaria estrutura de linguagem? Esse tipo de pergunta já traz implícita a resposta. É a linguagem que constrói e conserva essa orientação comum no mundo. Conversa não é primariamente controvérsia. Parece-me característico da modernidade apreciar em demasia a identificação entre conversa e controvérsia. Conversar também não é mutuamente desentender-se ou passar ao largo do outro. Constrói-se, ao contrário, um aspecto comum do que é falado. A verdadeira realidade da comunicação humana é o fato de o DIÁLOGO não ser nem a contraposição de um contra a opinião do outro e nem o aditamento ou soma de uma opinião à outra. O DIÁLOGO transforma a ambos. O êxito de um DIÁLOGO dá-se quando já não se pode recair no dissenso que lhe deu origem. Uma solidariedade ética e social só pode acontecer na comunhão de opiniões, que é tão comum que já não é nem minha nem tua opinião, mas uma interpretação comum do mundo. Tudo que é justo e se considera como justiça exige, por sua natureza, essa comunhão que se instala na compreensão recíproca das pessoas. Na verdade, a opinião comum constrói-se sempre na mutualidade da conversa e é somente depois que recai no silêncio do consenso e do evidente. Por esse motivo, parece-me justificado afirmar que todas as formas extraverbais de compreensão apontam para a compreensão que se difunde no falar e na mutualidade da conversa. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14
Ninguém nega que a linguagem exerce uma influência sobre nosso pensamento. Pensamos com e por palavras. Pensar significa sempre pensar alguma coisa. E pensar alguma coisa significa dizer algo para si. Nesse sentido, parece-me que Platão definiu com muita precisão a essência do pensamento, identificando-o com o DIÁLOGO da alma consigo mesma, um DIÁLOGO que é um constante superar — se, um retomar a si mesmo mediante dúvidas e objeções a suas próprias opiniões e juízos. E se há algo que caracteriza bem nosso pensar humano, é justamente esse DIÁLOGO infinito com nós mesmos, que não leva a nada definitivo. É isso que nos distingue daquele ideal de um espírito infinito, para o qual tudo que é e tudo que é verdadeiro se encontraria diante dele no abrir-se de um único instante vital. Ademais, a nossa experiência de linguagem, a nossa inserção crescente no DIÁLOGO interno conosco mesmos, esse que representa igualmente uma antecipação do DIÁLOGO com os outros e um envolvimento dos outros no DIÁLOGO conosco, essa experiência é onde o mundo se nos abre e ordena em todos os âmbitos de experiência. Isso significa, porém, que não temos outro caminho para a ordenação e orientação a não ser aquele que nos leva dos dados apresentados na experiência para pontos de orientação conhecidos pelo nome de conceito ou o universal, para o qual o que se dá a cada vez passa a ser considerado um caso particular seu. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15
O que se dá na linguagem dá-se também no todo de nossa orientação vital: o fato de estarmos familiarizados com um mundo convencional pré-formado. A questão é saber se em nossa própria autocompreensão chegamos tão longe como acreditamos chegar às vezes nesses casos raros do falar, mencionados acima, em que alguém diz realmente o que quer dizer. Será que isso haveria de significar que alcançamos o ponto de compreender o que realmente é? Ambos, tanto a compreensão total quanto o dizer adequado, são casos extremos de nossa orientação no mundo, do infinito DIÁLOGO interno da alma consigo mesma. E, no entanto, creio que justamente porque esse DIÁLOGO é infinito, porque essa orientação objetiva que se nos oferece em esquemas pré-formados do discurso entra no processo espontâneo de nosso entendimento com os outros e conosco mesmos, é que se abre para nós a infinitude do que compreendemos, do que se deixa apropriar espiritualmente. O DIÁLOGO interno da alma consigo mesma não encontra limites. Esta é a tese que contraponho à suspeita de ideologia levantada contra a linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15
Gostaria, assim, de postular e defender com fundamentos a universalidade do compreender e do dizer. Tudo pode ser trazido à linguagem. Podemos buscar um entendimento recíproco acerca de qualquer assunto. É verdade que nos sentimos restringidos à finitude de nosso próprio poder e capacidade e que apenas um DIÁLOGO realmente infinito poderia satisfazer essa pretensão. Mas isso é algo muito evidente. A questão é, antes, se não há uma série de graves objeções que se opõem à universalidade de nossa experiência de mundo mediada pela linguagem? Esta é a tese da relatividade de toda imagem de mundo instaurada como linguagem, tese extraída da herança de Humboldt e assumida pelos americanos e ativada com novas investigações empíricas. Essa tese afirma que as línguas não passam de imagens e visões do mundo, sendo impossível liberar-se dessa respectiva imagem de mundo, em cujo esquematismo se encerra o indivíduo. Os aforismos de Nietzsche intitulados “Vontade de poder” já observavam que o verdadeiro ato criativo de Deus consistiu em ter criado a gramática, isto é, de nos ter instalado na esquematização de nosso domínio do mundo para que não possamos ir além deles. Mas não será que essa dependência do pensamento em relação às possibilidades de nosso dizer e aos usos de linguagem não denota um caráter coativo? E o que significa para o nosso destino o fato de ver-nos num mundo em vias de formar uma única cultura intercontinental, que vai equiparando tudo em nível global, a ponto de já não podermos mais falar com a mesma obviedade de antes sobre a exclusividade da filosofia ocidental? E a ideia de que toda nossa linguagem conceitual filosófica, assumida e transformada pelas ciências, não representa mais do que uma dessas perspectivas de mundo, e em última instância aquela de origem grega, não nos deixa pesarosos e pensativos? Trata-se da linguagem da metafísica, cujas categorias conhecemos pela gramática, como sujeito e predicado, Notnen e Verbum, substantivo e verbo. Com a consciência que começa a despertar hoje em nível planetário, pode-se pressentir que conceitos como o verbo soam como uma pré-equematização de toda nossa cultura europeia. Isso esconde a inquietante pergunta se em todo nosso pensamento, e mesmo na dissolução crítica de todos os conceitos metafísicos como substancia e acidentes, sujeito e seus atributos etc., incluindo toda nossa lógica predicativa, nosso pensamento não ficou restrito ao que se formou como estrutura de linguagem e comportamento no mundo, milénios antes de toda tradição escrita, na família dos povos indo-germânicos. É uma pergunta que nos colocamos justamente hoje, quando nos vemos quem sabe no final dessa nossa cultura de e pela linguagem, final anunciado pela civilização técnica e sua simbologia matemática. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15
A capacidade para o DIÁLOGO é um atributo natural do homem. Aristóteles definiu o homem como o ser que possui linguagem e linguagem apenas se dá no DIÁLOGO. Mesmo que a linguagem possa ser codificada e encontrar uma relativa fixação no dicionário, na gramática, na literatura, sua vitalidade própria, seu amadurecimento e renovação, sua deterioração e depuramento até as elevadas formas estilísticas da arte literária, tudo isso vive do intercâmbio vivo entre os seus interlocutores. A linguagem apenas se dá no DIÁLOGO. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
O que é um DIÁLOGO? De certo que com isso pensamos num processo entre pessoas, que apesar de toda sua amplidão e infinitude potencial possui uma unidade própria e um âmbito fechado. Um DIÁLOGO é, para nós, aquilo que deixou uma marca. O que perfaz um verdadeiro DIÁLOGO não é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo. Aquilo que movia os filósofos a criticar o pensamento monológico é o mesmo que experimenta o indivíduo em si mesmo. O DIÁLOGO possui uma força transformadora. Onde um DIÁLOGO teve êxito ficou algo para nós e em nós que nos transformou. O DIÁLOGO possui, assim, uma grande proximidade com a amizade. É só no DIÁLOGO (e no “rir juntos”, que funciona como um entendimento tácito transbordante) que os amigos podem encontrar-se e construir aquela espécie de comunhão onde cada qual continua sendo o mesmo para o outro porque ambos encontram o outro e encontram a si mesmos no outro. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
Mas, para não falarmos sempre apenas desse sentido mais extremo e profundo de DIÁLOGO, devemos também considerar diversas formas de DIÁLOGO que ocorrem em nossa vida, agora ameaçados como discutimos em nosso tema. O primeiro é o DIÁLOGO pedagógico. Não que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mostra-se de modo especial o que pode estar por trás da experiência da incapacidade para o DIÁLOGO. O DIÁLOGO entre professor e alunos é certamente uma das formas mais primitivas de experiência de DIÁLOGO, e aqueles carismáticos do DIÁLOGO de que falamos acima são todos mestres e professores que ensinam seus discípulos ou alunos através do DIÁLOGO. Na situação do professor reside uma dificuldade peculiar em manter firme a capacidade para o DIÁLOGO, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto mais imagina estar se comunicando com seus alunos. É o perigo da cátedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de estudante de um seminário que fiz com Husserl. Sabemos que o exercício do seminário costuma conter o máximo de DIÁLOGO investigativo possível e o mínimo possível de DIÁLOGO pedagógico. Husserl, que nos primeiros vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionário e exercia na realidade uma atividade filosófica de ensino muito significativa, não era nenhum mestre do DIÁLOGO. Ele abria aqueles seminários com uma questão inicial, recebia uma resposta curta e movido por essa prosseguia seu monólogo por duas horas seguidas. Quando ao final da reunião saía da sala junto com seu assistente, Heidegger, dizia a este último: “hoje, sim, tivemos realmente um debate animado”. São experiências desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as preleções acadêmicas. A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica. Em escolas superiores têm-se feito repetidas tentativas de animar as preleções através do debate, fazendo-se também a experiência contrária de que a passagem da posição receptiva de ouvinte para a iniciativa da pergunta e da oposição é extremamente difícil e raras vezes alcança êxito. Por fim, na situação de ensino, quando esta ultrapassa a intimidade de um pequeno círculo, reside uma dificuldade intransponível para o DIÁLOGO. Platão já sabia disso: o DIÁLOGO jamais se torna possível com muitas pessoas, nem pela simples presença de muitos. Nossas experiências com os chamados fóruns de conversação, esses diálogos em mesas semi-redondas, são também diálogos semimortos. Há também outras situações de DIÁLOGO autênticas, isto é, individualizadas, onde o DIÁLOGO conserva sua verdadeira função. Gostaria de distinguir três tipos diferentes: O DIÁLOGO para negociação, o DIÁLOGO terapêutico e o DIÁLOGO familiar. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
O DIÁLOGO terapêutico torna-se de grande interesse instrutivo para nosso tema, sobretudo aquele exercido na práxis psicanalítica. Porque aqui a incapacidade para o DIÁLOGO é justamente o ponto a partir do qual a recuperação do DIÁLOGO se apresenta como o processo da própria cura. O que constitui a perturbação patológica, que acaba tirando o poder de ação do paciente, é o fato de os delírios de imaginação terem interrompido a comunicação com o mundo circundante. O doente está tão imbuído dessas ideias, alimenta de tal modo suas ideias patológicas, que já não consegue ouvir a linguagem dos outros. Mas é justo o fato dele já não suportar essa cisão da comunidade natural do DIÁLOGO com os homens que vai lhe dar consciência de sua doença e levá-lo por fim a procurar o médico. Com isso, descrevemos uma situação inicial que possui uma significação especial para nosso tema. O extremo é sempre instrutivo para os casos intermediários. O que há de especial no DIÁLOGO da cura psicanalítica é que a incapacidade para o DIÁLOGO, enquanto o que constitui a verdadeira enfermidade, só pode começar a ser curada pelo DIÁLOGO. O que aprendemos desse processo não pode simplesmente ser transferido para outro âmbito. Por um lado, o analista não é simplesmente um interlocutor, mas é também um especialista que, frente à resistência do paciente, força a abertura das regiões-tabu do inconsciente. Ressaltamos que o próprio DIÁLOGO é resultado de um trabalho comum de esclarecimento e não a simples aplicação de um saber por parte do médico. Mas há também uma outra condição específica, relacionada a essa primeira, que limita a transposição do DIÁLOGO terapêutico da psicanálise para a vida dialogal da práxis social. É que na psicanálise pressupõe-se que o paciente saiba de sua doença, isto é, a incapacidade para o DIÁLOGO deve ser patente e declarada. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
Quem sabe, também aqui os extremos possam esclarecer os casos intermédios. É preciso observar que o entendimento entre as pessoas tanto cria uma linguagem comum como pressupõe uma tal linguagem. O estranhamento entre as pessoas mostra-se no fato de já não falarem a mesma língua (como se diz), e a aproximação, no fato de encontrarem uma linguagem comum. E verdade que o entendimento torna-se difícil onde falta uma linguagem comum. Mas o DIÁLOGO pode tornar-se belo quando se procura e acaba encontrando essa linguagem. Um caso extremo disso é o DIÁLOGO balbuciante que se dá entre duas pessoas de línguas diferentes, que conhecem apenas migalhas da língua do outro, mas que se sentem impelidos a se dizerem algo. O fato de, por fim, acabarem se entendendo e chegarem a um acordo a respeito de coisas práticas ou sobre assuntos de ordem pessoal ou mesmo teórica pode ser um símbolo de que, mesmo onde parece faltar a linguagem, pode surgir entendimento pela paciência, pelo tato, pela simpatia e tolerância e pela confiança incondicionada na razão comum a todos. Testemunhamos diariamente que o DIÁLOGO pode dar-se mesmo entre pessoas de diferentes temperamentos, diferentes opiniões políticas. A “incapacidade para o DIÁLOGO” parece-me ser mais a objeção que se lança contra aquele que não quer seguir nossas ideias do que uma carência real no outro. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16
Assim, os aspectos retórico e hermenêutico da estrutura da linguagem humana encontram-se perfeitamente compenetrados. Não haveria oradores nem retórica se o entendimento e o consenso não sustentassem as relações humanas; não haveria nenhuma tarefa hermenêutica se não fosse rompido o consenso daqueles que “são um DIÁLOGO” e não se precisasse buscar o entendimento. A combinação com a retórica, portanto, possibilita dissolver a aparência de que a hermenêutica estaria restrita à tradição estético-humanista, como se a filosofia hermenêutica estivesse às voltas com um mundo do “sentido” contraposto ao mundo do “real”, que está se ampliando na “tradição cultural”. VERDADE E METODO II OUTROS 18
A teoria da competência comunicativa serve em última instância para a legitimação da pretensão de colocar a descoberto a comunicação social deformada e nesse sentido corresponde ao desempenho da psicanálise no DIÁLOGO terapêutico. Mas há algo que não se encaixa totalmente. Estamos às voltas com grupos, agora, que vivem em acordo entre si. O acordo entre os grupos foi rompido e não se procura algo entre o indivíduo, cindido neuróticamente, e a comunidade de DIÁLOGO. Quem está cindido aqui? Quais são as dessimbolizações que precisam acontecer, por exemplo, na palavra “democracia”? Com base em que competência? É compreensível que isso tudo esteja fundamentado na ideia de uma liberdade para todos. Habermas diz também: um DIÁLOGO racional livre de coações, que poderia livrar dessas deformações, pressuporia sempre uma certa antecipação da vida justa. É só então que esse DIÁLOGO poderia ter êxito. “A ideia da verdade pautada no verdadeiro consenso implica a ideia da maioridade” (100). VERDADE E METODO II OUTROS 19
Nesse ponto, concordo com a argumentação de Giegel, que na verdade se dirige muito mais contra mim que contra Habermas. E verdade que não sei em absoluto a que se refere quando fala de um “dever de entendimento” (não seria um sinônimo de razão?) e de um “direito à crítica” (não seria também um sinônimo de razão?). Como se um não implicasse sempre também o outro. Mas concordo com ele que a possibilidade do entendimento comunicativo obedece a condições que não podem ser recriadas pelo DIÁLOGO, mas que formam uma solidariedade prévia. Isso me parece fundamental para todo e qualquer DIÁLOGO. Não pode ser forçado, mas apenas possibilitado. Giegel tem toda razão: quem participa de um DIÁLOGO já concordou, de antemão, com as condições prévias indispensáveis para que este aconteça. Ao contrário, a recusa ao DIÁLOGO ou a interrupção de uma tentativa de DIÁLOGO com a frase “contigo não dá para conversar” significa uma situação na qual o entendimento comunicativo está tão perturbado que nada podemos esperar dele. VERDADE E METODO II OUTROS 19
O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já Aristóteles tinha em mente em sua crítica à ideia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto ideia geral, essa ideia da vida justa é uma ideia “vazia”. Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da vida social sejam uma mera comunidade de DIÁLOGO, de modo a sentir-nos dependentes de um DIÁLOGO livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de jogo. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O jogo das forças complementa-se com o jogo das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do DIÁLOGO, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E METODO II OUTROS 19
Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma “hermenêutica da facticidade” de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das “ciências do espírito” não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da cientificidade, com o ideal de “participação”. Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do DIÁLOGO é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o DIÁLOGO se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E METODO II OUTROS 23
Em todo caso, o escritor, assim como quem está participando de um DIÁLOGO, busca comunicar o que pensa, e isso implica a atenção ao outro, com o que compartilha certos pressupostos e com cuja compreensão conta. O outro se atém ao dito, segundo a intenção do que foi dito, quer dizer, o entende completando-o e concretizando-o, sem tomar nada ao pé da letra em seu sentido abstrato. Isso explica que, nas cartas, mesmo que dirigidas a um colega com o qual se tem muita familiaridade, não se possam dizer certas coisas como na imediatez da situação dialogal. A carta omite muitas coisas que na imediatez da conversação ajudam a compreender corretamente. E no DIÁLOGO, sobretudo, temos sempre a possibilidade de esclarecer uma ideia ou defender o que pensamos pela confrontação. Essa situação nos é muito familiar em virtude dos diálogos socráticos e da crítica platônica à palavra escrita. Os logoi que vêm desligados da situação compreensiva — e isso vale para toda palavra escrita — estão expostos a abusos e mal-entendidos, uma vez que não dispõe da correção natural que se dá no DIÁLOGO vivo. VERDADE E METODO II OUTROS 24
Há sem dúvida numerosas formas de conduta comunicativa pela linguagem que não se deixam submeter a essa finalidade. Trata-se de textos, na medida em que podem ser considerados tais ao aparecerem desligados de seus destinatários, por exemplo, em composições literárias. Mas, no próprio acontecimento comunicativo, eles opõem resistência a sua textualização. Vou destinguir três formas dessa linguagem para destacar, em seu pano de fundo, aquele que de modo eminente se torna acessível à textualização, ou melhor, o que realiza sua verdadeira vocação na figura textual. Essas três formas são os antitextos, os pseudotextos e os pré-textos. Chamo de antitextos àquelas formas de falar que resistem à textualização, porque nelas a situação de realização do DIÁLOGO é dominante. Delas faz parte qualquer tipo de chiste. O fato de não levarmos algo a sério, esperando realmente que seja compreendido como brincadeira, é um fenômeno que tem seu lugar no processo da comunicação e é ali que encontra sua sinalização: pode ser no tom de voz, no gesto que o acompanha ou na situação social etc. Mas não é possível, evidentemente, reproduzir essa expressão jocosa momentânea. É o que podemos ver também em outra forma clássica de entendimento recíproco: a ironia. O uso da ironia pressupõe um consenso comum prévio, que é seu pressuposto social. Quem diz o contrário do que pensa, mas está certo de que os outros sabem o que quer dizer, faz uso de uma situação de consenso funcional. A possibilidade de fixar por escrito essa “desfiguração”, que não é uma desfiguração, depende do grau de consenso comunicativo prévio e do acordo realmente existente. Conhecemos, por exemplo, o uso da ironia na antiga sociedade aristocrática, que inclusive passou diretamente para a forma escrita. O uso das citações clássicas, em geral degradando-as em sentido pejorativo, pertence a esse mesmo contexto. Isso serve também para a busca de uma solidariedade social, nesse caso, o controle superior dos pressupostos educativos, um interesse de classe e sua ratificação. Mas se as circunstâncias dessas condições de consenso não são tão claras, a passagem para a forma escrita torna-se problemática. O uso da ironia representa, muitas vezes, uma tarefa hermenêutica extremamente árdua, e não é fácil de justificar a suposição de que se trata de ironia. Diz-se não sem razão que o tomar algo em sentido irônico não é mais que um ato de desespero do intérprete. No trato humano, ao contrário, há uma clara ruptura do consenso quando não se compreende a presença da ironia. Para que seja possível o chiste ou a ironia, é necessário um consenso básico. Por isso, quando alguém traduz seu modo irônico de expressar-se numa formulação inequívoca, isso dificulta grandemente o restabelecimento do entendimento entre as pessoas. Mesmo que isso seja possível, esse sentido unívoco da expressão assim obtido dista muito do sentido comunicativo do discurso irônico. VERDADE E METODO II OUTROS 24
Um outro exemplo dessa interpretação como descortinamento dos pré-textos é o papel que exercem os sonhos na psicologia profunda. As experiências da vida onírica são na realidade inconsistentes. A lógica da vida empírica fica abolida em boa parte. Isso não impede que a surpreendente lógica da vida onírica possa produzir imediatamente um estímulo de sentido muito parecido com o caráter ilógico do conto. Na realidade a literatura narrativa se apoderou do gênero dos sonhos e do conto, por exemplo, no romantismo alemão. Mas o que se desfruta no jogo da fantasia onírica é uma qualidade estética, que pode naturalmente ser objeto de uma interpretação literário-estética. Mas o mesmo fenômeno dos sonhos se converte em objeto de uma interpretação bem distinta quando por trás dos fragmentos do sonho evocado busca-se revelar o verdadeiro sentido que se máscara nas fantasias oníricas, o qual é suscetível de decodificação. A isso se deve a enorme relevância da recordação dos sonhos no tratamento psicanalítico. Mediante a interpretação dos sonhos, a análise pode promover um DIÁLOGO associativo, eliminando assim os bloqueios e libertando o paciente de sua neurose. Esse processo de análise recorre, como se sabe, a etapas completas de reconstrução do texto onírico originário e de sua interpretação. VERDADE E METODO II OUTROS 24
Mas o que sabe Heidegger de um novo deus? Ele o pressente, faltando-lhe apenas a linguagem para invocá-lo? Enfeitiçou-o a linguagem da metafísica? Apesar de sua insondabilidade prévia, a linguagem não é o aprisionamento babilónico do espírito. Mesmo assim, a confusão babélica das línguas não significa só que a variedade das famílias da linguagem e dos idiomas seja produto do orgulho humano, como supõe a tradição bíblica. Essa variedade abrange, antes, toda a estranheza que intermedeia entre um ser humano e outro e que cria sempre novas confusões. Mas isso também encerra a possibilidade da superação. Porque a linguagem é DIÁLOGO. É preciso buscar a palavra e é possível encontrar a palavra que alcance o outro, pode-se inclusive aprender a língua alheia, a do outro. Pode-se emigrar à linguagem do outro para alcançar o outro. Tudo isso pode fazê-lo a linguagem enquanto linguagem. VERDADE E METODO II OUTROS 25
Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma “essência” de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O DIÁLOGO que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um DIÁLOGO, e não no final. VERDADE E METODO II OUTROS 25
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. No DIÁLOGO hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o DIÁLOGO filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um DIÁLOGO com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E METODO II ANEXOS 29
Sinto que ainda não se reconheceu suficientemente o âmbito que a hermenêutica partilha com a retórica, a saber, o âmbito dos argumentos persuasivos (e não aquele que obriga a uma conclusão lógica). É o âmbito da práxis e da humanidade como tal, que não encontra sua tarefa onde vige a violência das “conclusões ferrenhas”, as quais exigem submissão incondicional, nem tampouco onde a reflexão emancipatória está certa e segura de seu “entendimento contrafáctico”. Sua tarefa está, antes, onde as partes em conflito devem chegar a uma decisão pela reflexão racional. E aqui a morada da arte de falar e de argumentar (e a sua outra forma silenciosa, a deliberação que pondera consigo mesmo). O fato de a arte de falar dirigir-se também aos afetos, como se vem demonstrando desde antigamente, nem por isso precisa desviar-se do âmbito do racional. Vico acentua com razão um valor pessoal: a cópia, a riqueza dos pontos de vista. Parece-me espantosamente irreal querer atribuir à retórica — como faz Habermas — um caráter coercitivo, que deveria ser superado em favor de um DIÁLOGO racional livre de coerção. Com isso não apenas se subestima o perigo da manipulação e de perda da autonomia da razão pela persuasão, mas também a chance de um acordo persuasivo sobre o qual repousa a vida social. Toda práxis social — e verdadeiramente também a práxis revolucionária — não pode ser pensada sem a função da retórica. Isso pode ser ilustrado pela cultura científica de nossa época. Ela colocou na práxis do acordo entre os homens a tarefa gigantesca e crescente de integrar o respectivo âmbito particular do domínio científico das coisas com a práxis da razão social: Aqui entram em jogo os modernos meios de comunicação de massa. VERDADE E METODO II ANEXOS 29
A partir desse fundamento, qualquer DIÁLOGO que tentemos estabelecer com o pensamento de um pensador, procurando compreendê-lo, representa um DIÁLOGO inesgotável. Um DIÁLOGO real, no qual tentamos encontrar “nossa” linguagem… como linguagem comum. A distância histórica e inclusive a localização do interlocutor dentro de um processo historicamente claro são momentos subordinados de nossa tentativa de compreensão e representam na verdade formas de assegurar-nos frente ao interlocutor e de fechar-nos para ele. No DIÁLOGO, ao contrário, tentamos abrir-nos a ele, quer dizer, estabelecer um ponto comum de coincidência. VERDADE E METODO II ANEXOS 30