Gadamer (VM): consciência hermenêutica

A disciplina clássica, que se ocupa da arte de compreender textos, é a hermenêutica. Se nossas ponderações são corretas, o verdadeiro problema da hermenêutica terá que se colocar, no entanto, de uma maneira totalmente diferente da habitual. Terá de apontar na mesma direção em que nossa crítica à consciência estática havia deslocado o problema da estética. A hermenêutica teria, até, de ser entendida então de uma maneira tão abrangente que teria de incluir em si toda esfera da arte e seu questionamento. Qualquer obra de arte, não apenas as literárias, tem que ser compreendida no mesmo sentido em que [170] se tem de compreender qualquer outro texto, e esse compreender requer gabarito para tal. Com isso a consciência hermenêutica adquire uma extensão tão abrangente, que ultrapassa a da consciência estética. A estética deve subordinar-se à hermenêutica. E este enunciado não se refere meramente à periferia do problema, mas vale antes de tudo para o conteúdo. E, inversamente, a hermenêutica tem de determinar-se, em seu conjunto, de maneira que faça justiça à experiência da arte. A compreensão deve ser entendida como parte da ocorrência de sentido, em que se formula e se realiza o sentido de todo enunciado, tanto dos da arte como dos de qualquer outro gênero de tradição. 913 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Não há dúvidas de que é uma provocação à autocompreensão das ciências do espírito libertar-se, no conjunto de suas atividades, do modelo das ciências da natureza, e considerar a mobilidade histórica de seu tema não somente como um prejuízo de sua objetividade, mas também como algo positivo. Nesse meio tempo, surgiram no novo desenvolvimento das próprias ciências do espírito algumas iniciativas visando a um gênero de reflexão que verdadeiramente pode fazer jus ao estado do problema. O metodologismo ingênuo da investigação histórica já não domina sozinho o campo. O progresso da investigação já não se entende de modo generalizado como expansão e penetração em novos âmbitos e materiais, senão que, em vez disso, como o alcançar um nível de reflexão mais elevado dentro dos correspondentes questionamentos. É evidente que, mesmo desse ponto de vista, continua-se pensando teleologicamente, sob o padrão do progresso da investigação, como sempre convém ao investigador. Porém, junto a isso começa a entrever-se também uma consciência hermenêutica que perpassa a investigação com um interesse mais auto-reflexivo. Isso ocorre sobretudo nas ciências do espírito que contam com uma tradição mais antiga. A ciência clássica da antiguidade, por exemplo, depois de ter elaborado sua própria tradição em círculos cada vez mais extensos, voltou-se sempre de novo, com questionamentos cada vez mais afinados, para os velhos objetos preferenciais de sua ciência. Com isso introduziu uma espécie de autocrítica, na medida em que começou a refletir sobre o que perfaz realmente a excelência de seus objetos mais excelentes. O conceito do clássico, que no pensamento histórico, a partir do descobrimento do helenismo por Droysen, tinha sido reduzido a um mero conceito estilístico, obtém agora um novo direito de cidadania. 1567 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição. Existe realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, e nela se baseia a tarefa da hermenêutica, mas não no sentido psicológico de Schleiermacher, como o âmbito que oculta o mistério da individualidade, mas num sentido verdadeiramente hermenêutico, isto é, com a atenção posta no que foi dito: a linguagem em que nos fala a tradição, a saga que ela nos conta. Também aqui se manifesta uma tensão. Ela se desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós, entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma tradição. E esse entremeio (Zwischen) é o verdadeiro lugar da hermenêutica. 1633 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este é o ponto em que se pode relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das modernas ciências do espírito. É verdade que na consciência hermenêutica não se trata de um saber técnico nem ético, porém, essas duas formas do saber contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a techne que se ensina e aquela que se adquire por experiência [321]. O saber prévio que alguém possui quando aprendeu um ofício não é necessariamente superior, na praxis, ao que possui um iletrado no assunto, mas muito experimentado. No entanto, ainda que isso seja assim, nem por isso se chamará “teórico” o saber prévio da techne, menos ainda se se leva em conta que a aquisição de experiência aparece por si só no uso desse saber. Pois, como saber, já intenciona sempre à praxis, e ainda que a matéria bruta nem sempre obedeça ao que aprendeu seu ofício, Aristóteles pode citar com razão as palavras do poeta: techne ama tykne, e tykne ama techne. Isso quer dizer que, em geral, o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. O que se adquire adiantadamente na techne é uma autêntica superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber ético. Pois também para este é claro que a experiência nunca pode bastar para uma decisão eticamente correta. Também aqui se exige que a atuação seja guiada previamente pela consciência moral. Nem sequer será possível contentar-se com a relação insegura que há no caso da techne entre o saber prévio e o correspondente êxito final. Pode-se dizer que há uma correspondência real entre a perfeição da consciência ética e a de saber produzir, a da techne, mas, obviamente, não são a mesma coisa. 1735 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Evidentemente que para Hegel o caminho da experiência da consciência tem que conduzir necessariamente a um saber-se a si mesmo que já não tem nada diferente nem estranho fora de si. Para ele a consumação da experiência é a “ciência”, a certeza de si mesmo no saber. O padrão a partir do qual pensa a experiência é, portanto, o do saber-se. Por isso a dialética da experiência tem de culminar na superação de toda experiência, que se alcança no saber absoluto, isto é, na consumada identidade de consciência e objeto. A partir daí poderemos compreender por que não faz justiça à consciência hermenêutica a aplicação que Hegel faz à história, quando considera que esta é concebida na autoconsciência absoluta da filosofia. A essência da experiência é pensada aqui, desde o princípio, a partir de algo no qual a experiência já está superada. Pois a própria experiência jamais pode ser ciência. Está em uma oposição insuperável com o saber e com aquele ensinamento que flui de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém sempre a referência a novas experiências. Nesse sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências. A consumação de sua experiência, o ser pleno daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que já conhece tudo, e que de tudo sabe mais que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e aprendido graças a tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e delas aprender. A dialética da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência. 1941 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

No terreno hermenêutico o correlato dessa experiência do tu é o que se costuma chamar a consciência histórica. A consciência histórica tem notícia da alteridade do outro e do passado em sua alteridade, tal como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. No outro do passado não busca o caso de uma regularidade geral, mas algo historicamente único. Mas, na medida em que nesse reconhecimento procura elevar-se por inteiro acima de seu próprio condicionamento, fica aprisionado na aparência dialética, pois o que realmente procura é tornar-se ao mesmo tempo senhor do passado. Isto não precisa acontecer nos moldes da pretensão especulativa de uma filosofia da história universal — pode também rebrilhar como o ideal do esclarecimento consumado, que ilumina o caminho de experiência das ciências históricas, como vimos, por exemplo, em Dilthey. Já revelamos a aparência dialética que a consciência histórica produz, e que é correlata da aparência dialética da experiência consumada no saber, quando na nossa análise da consciência hermenêutica descobrimos que o ideal . do esclarecimento histórico é algo irrealizável. Aquele que se crê seguro na sua falta de preconceitos, porque se apoia na objetividade de seu procedimento e nega seu próprio condicionamento histórico, experimenta o poder dos preconceitos que o dominam incontroladamente como uma vis a tergo. Aquele que não quer conscientizar-se dos preconceitos que o dominam acaba considerando erroneamente o que vem a se mostrar sob eles. É como na relação entre o eu e o tu. Aquele que sai reflexivamente da reciprocidade de uma tal relação altera-a e destrói sua vinculatividade moral. Da mesma maneira, aquele que sai reflexivamente da relação vital para com a tradição destrói o verdadeiro sentido desta. A consciência histórica que quer compreender a tradição não pode abandonar-se à forma metódico-crítica de trabalho com que se aproxima das fontes, como se ela fosse suficiente para proteger contra a intromissão dos seus próprios juízos e preconceitos. Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade. Estar na tradição não [367] restringe a liberdade do conhecer, mas a faz possível, como já o formulamos. 1969 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Eis aqui o correlato da experiência hermenêutica. Eu tenho de deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está realmente aberta, mas que, antes, quando lê seus textos “historicamente”, já nivelou prévia e fundamentalmente toda a tradição, e os padrões de seu próprio saber não poderão ser nunca postos em questão por ela. Recordo neste ponto a forma ingênua de comparação, na qual costuma mover-se quase sempre o comportamento histórico. O fragmento 25 do Lyceum de Friedrich Schlegel diz: “Os dois postulados fundamentais da chamada crítica histórica são o postulado da medianidade e o axioma da habitualidade. Postulado da medianidade: tudo o que é verdadeiramente grande, bom e belo é inverossímil, pois é extraordinário e no mínimo suspeitoso. Axioma da habitualidade: as coisas têm de ter sido sempre tal como são entre nós e ao nosso redor, porque é tudo tão natural”. — Pelo contrário, a consciência da história efeitual vai mais além da ingenuidade deste comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão da verdade que lhe vem ao encontro nela. A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição à experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. É isto que caracteriza a consciência [368] da história efeitual, como poderemos pronunciar mais detalhadamente a partir do conceito da experiência. 1973 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Com isto prelineia-se o caminho da investigação que segue: deveremos indagar pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, recordando o significado que convinha ao conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que em toda experiência encontra-se pressuposta a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos primeiramente pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta se é assim ou de outro modo. A abertura que está na essência da experiência é, logicamente falando, esta abertura do “assim ou de outro modo”. Tem a estrutura da pergunta. E tal como a negatividade dialética da experiência encontrava sua perfeição na ideia de uma experiência consumada, na qual nos fazíamos inteiramente conscientes de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não se sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. Teremos, pois, que nos aprofundar na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica. 1979 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Convém entender bem essa primazia fundamental da linguisticidade que estamos afirmando, verdade que com frequência, a linguagem parece pouco capaz de expressar o que sentimos. Face à presença avassaladora de obras de arte, a tarefa de reunir em palavras o que elas nos dizem parece uma empresa infinita e de uma desesperadora-distância. Nesse sentido, o fato de que o nosso querer e poder compreender nos propulsione sempre para mais além de qualquer frase lograda, poderia muito bem motivar uma crítica da linguagem. No entanto, isso não muda nada na primazia básica da linguisticidade. Nossas possibilidades de conhecimento parecem muito mais individuais que as possibilidades de expressão que a linguagem põe à nossa disposição. Face à tendência niveladora, motivada socialmente, com a qual a linguagem força a compreensão a determinados esquematismos que nos constringem, nossa vontade de conhecimento procura subtrair-se criticamente a essas esquematizações e pré-concepções. Mas a superioridade crítica que pretendemos, frente à linguagem, não afeta as convenções da expressão linguística, mas as convenções do opinar (Meinen) que se plasmaram no âmbito do linguístico. Por conseguinte, nada diz contra a pertença essencial entre compreensão e linguisticidade Ela está verdadeiramente apropriada para confirmar por si mesma essa pertença essencial. Pois toda crítica que se eleva para além do esquematismo de nossas frases, com o fim de entender, encontra por sua vez sua expressão na forma linguística. Nesse sentido a linguagem rebaixa qualquer argumentação contra sua competência. Sua universalidade se mantém na altura da universalidade da razão. A consciência hermenêutica se limita, aqui, a participar daquilo que perfaz a relação geral de linguagem e razão. Se toda compreensão se encontra numa necessária relação de equivalência com sua possível interpretação, e se à compreensão não se antepuser fundamentalmente nenhuma barreira, também a apreensão linguística que essa compreensão experimenta na interpretação tem de levar em si uma infinitude que supere qualquer fronteira. A linguagem é a linguagem da própria razão. 2173 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Partimos da base de que na acepção linguística da experiência humana do mundo não se calcula ou mede simplesmente o dado, mas vem à fala o ente, tal como se mostra aos homens, como ente e como significante. E aqui — e não no ideal metodológico da construção racional que domina a moderna ciência natural matemática — onde se poderá reconhecer a compreensão que se exerce nas ciências do espírito. Se antes tínhamos caracterizado o modo de realização da consciência da história efeitual por sua linguisticidade, isso tinha como razão de ser o fato de que a linguisticidade caracteriza em geral toda nossa experiência humana do mundo. E se nela não se objetiva o “mundo”, tampouco a história efeitual chega a ser objeto da consciência hermenêutica. 2455 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Há que se perguntar também se a minha própria tentativa de conjugar a diferença da compreensão com a unidade do texto ou da obra, e em especial, se minha insistência no conceito de obra, no âmbito da arte, não pressupõe um conceito de identidade em sentido metafísico: quando a reflexão da consciência hermenêutica também reconhece que compreender é compreender-sempre-diferentemente, será que com isso se leva em conta a resistência e a opacidade que caracterizam a obra de arte? E será que o exemplo da arte pode realmente formar o quadro em que se desenvolve uma hermenêutica geral? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. Quem recebe uma carta compreende suas notícias, vendo imediatamente as coisas como as viu o remetente, ou seja, considera verdadeiro o que o outro escreveu, sem procurar, por exemplo, compreender a opinião do remetente sobre o assunto. Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa. E assim como acreditamos nas notícias transmitidas por um repórter, porque ele esteve no local ou porque ele está mais a par do assunto, também frente a um texto que nos é transmitido, estamos fundamentalmente abertos à possibilidade de que ele está melhor informado do que a nossa opinião prévia o pretenderia. É só com o fracasso da tentativa de tomar por verdadeiro o que é dito que surge a pretensão de “compreender” — psicológica ou historicamente — o texto como a opinião de um outro. O preconceito da completude implica portanto não só que um texto deva expressar plenamente sua opinião, como também que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa. A partir disto, determina-se o que se pode realizar como sentido unitário e com isso o emprego da concepção prévia da completude. Assim completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa da hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a tradição ocupa entre estranheza e familiaridade, é portanto o Entre, entre a objetividade distante, referida pela história, e a pertença a uma tradição. Nesse Entre situa-se o verdadeiro local da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A função que exerce o mistério da linguagem no pensamento tardio de Heidegger ensina de maneira suficiente que o aprofundamento na historicidade da autocompreensão deslocou de sua posição central não apenas o conceito de consciência, mas também o [126] conceito de mesmidade (Selbstheit). Pois o que pode ser mais desprovido de consciência e de mesmidade do que o âmbito misterioso da linguagem no qual nos encontramos e que faz vir à palavra aquilo que é, de tal forma que o ser “se temporaliza”? O que assim vale para o mistério da linguagem, vale igualmente para o conceito de compreensão. Também esse não deve ser concebido como uma simples atividade da consciência compreensiva, mas como um modo de acontecer do próprio ser. Dito de forma puramente formal, o primado que possuem a linguagem e a compreensão no pensamento de Heidegger remete para o caráter prévio da “relação” frente aos seus componentes relacionais: o eu que compreende e aquilo que é compreendido. Também parece-me possível — e eu próprio realizei esse experimento em Verdade e método I — confirmar as explanações de Heidegger sobre “o ser” e a problemática desenvolvida a partir da experiência da “virada” na própria consciência hermenêutica. A relação de compreensão e compreendido tem a primazia frente ao compreender e o compreendido, do mesmo modo que a relação entre quem fala e o que se fala remete para a realização de um movimento que não tem sua base fixa em nenhum dos membros da relação. Compreender não é autocompreensão, como o idealismo considera certo e óbvio. O sentido de compreender, todavia, também não se esgota com a crítica revolucionária ao idealismo que pensa o conceito de autocomprensão como algo que sucede com o si-mesmo (Selbst) e pelo qual este chega a ser ele próprio. Considero que, no compreender, se dá um momento de desprendimento de si mesmo que merece a atenção também da hermenêutica teológica e que deveria ser investigado sob o fio condutor da estrutura do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Mas não é apenas o selvagem que não conhece essas diferenças conceituais. A pretensão de autocompreensão, suposto que [130] exista — e não existe, desde que o homem é homem? — permanece encerrada em limites bem determinados. A consciência hermenêutica não compete com aquela autotransparência, que, segundo Hegel, constitui o espírito absoluto e que perfaz a forma mais elevada do ser. Não é só no âmbito da fé que se fala em autocompreensão. Toda compreensão é no fundo compreender a si mesmo, mas não no sentido de uma posse de si mesmo que se alcance de antemão e definitivamente. A autocompreensão realiza-se sempre quando se compreende alguma coisa e não tem o caráter de uma livre auto-realização. O si-mesmo que nós mesmos somos não possui a si mesmo. Poderíamos dizer, antes, que ele acontece. E é isso que diz realmente o teólogo: que a fé é o extraordinário evento em que nasce um novo homem. Afirma ainda que é a palavra que deve ser criada e compreendida, já que é pela palavra que superamos a ignorância abissal em que vivemos a respeito de nós próprios. Como mostra claramente J.G. Hamann, o conceito da autocompreensão tem um cunho originariamente teológico. Está relacionado com o fato de que nós próprios não nos compreendemos a não ser diante de Deus. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Mas a crítica hermenêutica só adquire sua verdadeira eficácia quando produz auto-reflexão, ou seja, quando consegue refletir sobre seu próprio esforço crítico, sobre as suas próprias condições e dependências. Uma reflexão hermenêutica capaz de realizar essa auto-reflexão parece-me estar muito próxima de um verdadeiro ideal de conhecimento, porque torna consciente a ilusão da própria reflexão. Uma consciência crítica, que demonstra por toda parte a existência de preconceitos e dependências, mas que se considera ela mesma absoluta, isto é, independente e livre de preconceitos, permanece necessariamente presa a ilusões. Pois é motivada justamente pelo que ela critica. Está de forma irrecusável dependente do que pretende dissolver. A pretensão de uma ausência total de [183] preconceitos é uma ingenuidade, seja na forma delirante de um iluminismo absoluto, seja como o delírio de um empirismo livre de todos os preconceitos da tradição metafísica, ou ainda como o delírio de uma superação da ciência pela crítica ideológica. Em todo caso, ao refletir sobre si própria, a consciência hermenêutica iluminista parece-me fazer valer uma verdade superior. Sua verdade é a verdade da tradução. A sua superioridade consiste em apropriar-se do estranho, não simplesmente dissolvendo-o criticamente ou reproduzindo-o acritícamente, mas conferindo-lhe nova validade a partir do momento em que o interpreta no horizonte de seus próprios conceitos. A tradução permite que o estranho e o próprio se conjuguem numa nova configuração, à medida que respeita o ponto de verdade do outro frente a si própria. Nessa forma de prática reflexiva, o que se dá como formulado na linguagem se vê de certo modo superado, ou seja, retirado de sua própria estrutura de mundo própria da linguagem. Mas essa nova realidade, e não nossa própria opinião sobre ela, insere-se numa nova interpretação de mundo feita na linguagem. Nesse processo de constante avanço do pensamento, em que se respeita o outro em relação a si mesmo, demonstra-se o poder da razão. A razão sabe que o conhecimento humano é e permanece limitado, mesmo quando sabe de seus limites. A reflexão hermenêutica exerce assim uma autocrítica da consciência pensante que retraduz todas as suas abstrações, inclusive os conhecimentos das ciências, para o conjunto da experiência humana de mundo. A filosofia que, expressamente ou não, deve ser sempre uma crítica do pensamento tradicional, é esse exercício hermenêutico que incorpora as totalidades estruturais, elaboradas pela análise semântica, no continuum da tradução e da conceituação, onde existimos e desaparecemos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Assim, quando proponho o desenvolvimento da consciência hermenêutica como uma possibilidade mais abrangente, como contraponto a essa consciência estética e histórica, minha intenção imediata é buscar superar a redução teórico-científica que sofreu o que chamamos tradicionalmente de “ciência da hermenêutica” pela sua inserção na ideia moderna de ciência. Na hermenêutica de Schleiermacher fez-se ouvir tanto a voz do romantismo histórico quanto os interesses do teólogo cristão, na medida em que enquanto uma teoria geral da compreensão sua hermenêutica deveria favorecer a tarefa específica da interpretação da Sagrada Escritura. E, quando nos detemos a analisar essa hermenêutica, a perspectiva de Schleiermacher para essa disciplina mostra-se peculiarmente restringida pelo pensamento moderno de ciência. Schleiermacher define a hermenêutica como a arte de evitar mal-entendidos. Decerto, essa não é uma descrição totalmente errônea do esforço hermenêutico. O estranho induz facilmente mal-entendidos, produzidos pela distância temporal, pela mudança dos costumes de linguagem, a modificação do significado das palavras e dos modos de representação. Deve-se evitar o mal-entendido pela reflexão controlada por métodos. Mas também aqui devemos perguntar do seguinte modo: Quando afirmamos que compreender significa evitar mal-entendidos, estaremos definindo adequadamente o fenômeno da compreensão? Será que todo mal-entendido não pressupõe uma espécie de “acordo latente”? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Tiro as consequências. A consciência hermenêutica, que desenvolvi desde o princípio seguindo alguns pontos determinados, tem sua verdadeira força de atuação no fato de deixar e fazer ver onde está a questão. Quando tivermos presente não somente a tradição artística e a tradição histórica dos povos, não apenas o princípio da ciência moderna em suas precondições hermenêuticas, mas o todo de nossa vida de experiência, então creio que conseguiremos integrar de novo também a experiência da ciência em nossa própria experiência universal e humana de vida. Então teremos alcançado o estrato fundamental que, com Johannes Lohmann, podemos chamar de “constituição do mundo estruturada na linguagem”. Essa constituição apresenta-se como a consciência da história dos efeitos que esquematiza previamente todas as nossas possibilidades de conhecimento. Faço abstração aqui de que o pesquisador, mesmo o pesquisador da natureza, talvez não esteja totalmente livre da moda e da sociedade, de todos os fatores possíveis de seu entorno; o que afirmo é que dentro de sua experiência científica o que o faz ter ideias fecundas não são tanto as “leis da lógica rígida” (Helmholtz) mas as constelações imprevisíveis, seja a queda da maçã de Newton ou qualquer outra observação onde se acende a chama da inspiração científica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Já de início encontramos aí “ponto de partida da linguagem” (124s). Se a estrutura da linguagem se caracteriza pelo modo de realização da consciência hermenêutica, então convém reconhecermos na linguagem, enquanto estrutura fundamental da sociabilidade humana, o a priori válido para as ciências sociais, a partir do qual as teorias behaviorista-positivistas, que consideram a sociedade como um todo funcional observável e controlável, são levadas ao absurdo. Isso comporta algo evidente, à medida que a sociedade humana vive em instituições, que como tais são compreendidas, transmitidas, reformadas, em suma, são determinadas pela íntima autocompreensão dos indivíduos que formam a sociedade. Tanto frente à teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein quanto frente à utilização da mesma por Winch em vista de um a priori de linguagem válido para todo enunciado das ciências sociais, Habermas reconhece o direito da hermenêutica pelo fato de, a partir do pensamento da história dos efeitos, essa hermenêutica reivindicar o acesso comunicativo ao âmbito dos objetos das ciências sociais. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas com isso a analogia entre a teoria psicanalítica e a teoria sociológica torna-se problemática. Onde encontra seus limites esta última? Onde termina o paciente e começa a parceria social em seu direito não profissional? Frente a qual auto-interpretação da consciência social — e todo costume representa uma dessas auto-interpretações — se produz a indagação e a sondagem, por exemplo, na vontade de mudança revolucionária, e frente a qual não? Essas perguntas parecem não ter resposta. A consequência inevitável parece ser que a consciência emancipatória tem diante de si, em princípio e como tarefa, a dissolução de toda coerção dominadora. O que significaria que sua imagem paradigmática última deveria ser a utopia anárquica. Mas isso me parece uma falsa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

A obstinação de Löwith em passar ao largo do sentido transcendental das proposições de Heidegger sobre a compreensão parece-me equivocada num duplo sentido: Não percebe que Heidegger descobriu algo que se dá em toda compreensão e que não pode ser negado como tarefa. Além do mais, não percebe que a violência presente em muitas interpretações de Heidegger não procede dessa teoria da compreensão. Trata-se, antes, de um abuso produtivo dos textos, que denuncia uma falta de consciência hermenêutica. O que confere uma ressonância, além dos limites, a certas páginas do texto é evidentemente o predomínio do próprio interesse no assunto. O comportamento impaciente de Heidegger com relação a textos da tradição não é tanto consequência de sua teoria hermenêutica. Seu comportamento se parece, antes, com o dos grandes continuadores da tradição espiritual, os quais, antes da formação da consciência histórica, apropriavam-se “acriticamente” da tradição. O que provocou a crítica filológica contra Heidegger, nesse caso, foi o fato de ele adaptar-se aos padrões científicos e procurar legitimar também filológicamente sua apropriação produtiva da tradição. Ao invés de invalidar as razões de sua análise da compreensão, isso acaba confirmando-as. Faz parte do compreender, sempre, o fato de a opinião a ser compreendida dever afirmar-se frente à violência da 83] orientação de sentido que domina o intérprete. O esforço hermenêutico se faz necessário justamente porque somos interpelados pela coisa ela mesma. Se não formos interpelados por esta, jamais compreenderemos a tradição, a não ser na total indiferença da interpretação psicológica ou histórica em relação à coisa em questão, indiferença que surge quando não compreendemos mais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO IV

Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A consequência é que essas interpretações decifradoras permanecem “inseguras”. Sua “verdade” não pode ser demonstrada “objetivamente”, a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann”, adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma “pré-compreensão” inerente à [430] existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst Fuchs, com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um “acontecimento de linguagem” próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.