Gadamer (VM): conceito da compreensão

Aos olhos de um historiador que pensa de modo mais arguto, a problemática de tal autoconcepção teria de ficar clara. O significado filosófico da historiografia de Droysen se apoia no fato de procurar liberar o conceito da compreensão da indeterminação, da comunhão estético-panteísta, que ele assumiu em Ranke, e em que formula suas pressuposições conceituais. A primeira pressuposição é o conceito da expressão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão algo interior se faz imediatamente presente. Mas o interior, “a essência interna”, é a primeira e autêntica realidade. Droysen se movimenta aqui num solo inteiramente cartesiano, e segue a Kant e a Wilhelm von Humboldt. O eu individual é como um ponto solitário no mundo dos fenômenos. Mas em suas exteriorizações, sobretudo na linguagem, e fundamentalmente em todas as formas em que consegue dar-se expressão, deixa de ser um tal ponto solitário. Pertence ao mundo do compreensível. Assim, a compreensão histórica não é, fundamentalmente diferente da compreensão linguística. Como a linguagem, tampouco o mundo da história possui o caráter de um ser puramente espiritual: “Querer compreender o mundo ético, histórico, significa sobretudo reconhecer que ele não é nem somente docético, nem somente metabolismo. Isso é dito em contraposição ao empirismo raso de Buckle, mas vale também, no sentido inverso, com relação ao espiritualismo da filosofia da história de um Hegel. Droysen considera que a dupla natureza da história está fundamentada “no carisma peculiar de uma natureza humana, tão felizmente imperfeita, que tem que [217] comportar-se eticamente ao mesmo tempo com seu espírito e com seu corpo”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na investigação total e incessante da tradição sempre resulta, ao final, o compreender. Para Droysen o conceito da compreensão retém, apesar de toda a mediação, a marca de urna imediatez última. “A possibilidade de compreender consiste em um modo das exteriorizações, congenial conosco, e que temos diante de nós como material histórico.” “Face aos homens, às exteriorizações e configurações humanas, encontramo-nos e sentimo-nos numa homogeneidade e reciprocidade essenciais” (§ 9). E da mesma forma que a compreensão vincula ao eu individual as comunidades morais a que pertence, essas mesmas comunidades, família, povo, estado, religião, são compreensíveis enquanto expressão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Diante do pano de fundo dessa análise existencial da pre-sença, com todas as suas amplas e mal exploradas consequências para os interesses da metafísica geral, de repente o círculo de problemas da hermenêutica das ciências do espírito porta-se totalmente diferente. Nosso trabalho tem por escopo desenvolver esse novo aspecto do problema hermenêutico. Na medida em que Heidegger ressuscita o tema do ser e, com isso, ultrapassa toda a metafísica precedente — e não somente o seu ponto mais alto no cartesianismo da ciência moderna e da filosofia transcendental — ganha ele, face às aporias do historicismo, uma posição fundamentalmente nova. O conceito da compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente na direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana. Se, a partir de Dilthey, Misch tinha reconhecido no “livre distanciamento de si mesmo” uma estrutura fundamental da vida humana, sobre a qual repousa toda a compreensão, a reflexão ontológica radical de Heidegger procura cumprir a tarefa de esclarecer essa estrutura da pre-sença mediante uma “analítica transcendental da pre-sença”. Revelou o caráter de projeto que reveste toda compreensão e pensou a própria compreensão como o movimento da transcendência, da ascensão acima do ente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Este conceito da compreensão rompe, evidentemente, o círculo traçado pela hermenêutica romântica. Na medida em que já não se refere à individualidade e suas opiniões, mas à verdade da coisa, um texto não é entendido como mera expressão vital, mas é levado a sério na sua pretensão de verdade. O fato de que também isso, ou até precisamente isso, se chame “compreender” era antes uma obviedade — nisso recordo-me da citação de Chladenius. No entanto, a dimensão do problema hermenêutico foi desacreditada pela consciência histórica e pela versão psicológica que Schleiermacher deu à hermenêutica, e só pôde ser recuperada quando se tornaram patentes as aporias do historicismo e quando estas conduziram finalmente àquela mudança de rumo, nova e fundamental, para a qual, na minha opinião, o trabalho de Heidegger deu o mais decisivo impulso. Pois a distância de tempo em sua produtividade hermenêutica só pôde ser pensada a partir da mudança de rumo ontológico que Heidegger deu à compreensão como um “existencial” e a partir da interpretação temporal que aplicou ao modo de ser da pre-sença. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido querigmático da Sagrada Escritura? Aqui o conceito da congenialidade chega ao absurdo completo, à medida que suscita a péssima imagem da teoria da inspiração. A exegese histórica da Bíblia também encontra aqui seus limites, sobretudo no que diz respeito ao conceito central de “autocompreen-são” do escritor da Sagrada Escritura. O significado salvífico da Escritura não será necessariamente diferente do que o resultado da mera soma das intuições teológicas dos escritores do Novo Testamento? Dessa forma, a hermenêutica pietista (A. Francke, Rambach) foi se destacando pelo fato de, em sua teoria da interpretação, acrescentar a aplicação à compreensão e à explicação, destacando com isso a relação da “Escritura” com a atualidade. Nisso reside a razão central de uma hermenêutica que leva realmente a sério a historicidade do homem. É claro que também a hermenêutica idealista leva isto em conta, especialmente a de E. Betti com seu “cânon da correspondência do sentido”. Parece, no entanto, que foi só com o reconhecimento decisivo do conceito da compreensão prévia e do princípio da história dos efeitos ou o desenvolvimento da consciência da mesma, que se conquistou uma base metodológica suficiente. O conceito de cânon da teologia neotestamentária encontra ali sua legitimação, como um caso especial. O grande e positivo trabalho de G. von Rad demonstrou, ademais, que o significado teológico do Antigo Testamento torna-se difícil de justificar ao se adotar a mens auctoris como cânon. Com esse trabalho pode-se superar a estreiteza dessa perspectiva. Os debates mais recentes sobre a hermenêutica contagiaram também a teologia católica (Stachel, Biser, Corth). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como “Iluminismo”. A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann, não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como “esclarecimento”, “emancipação”, “diálogo livre de coerção” revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, Descartes, procurando legitimar seu novo conceito de [116] método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que “apenas” compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento da consciência da história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada “tradição cultural”, seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo “sentido” não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a “arte” tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de “arte”, elevado ao caráter pseudo-religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.