Gadamer (VM): autobiografia

Não se pode afirmar que, sobre esse ponto, no qual Dilthey vê o problema decisivo, as suas ideias não tivessem alcançado completa clareza. O que apresenta o ponto decisivo, aqui, é o problema do passo a ser dado da fundamentação psicológica para a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. Nisso Dilthey não passou nunca de simples esboços. Na mencionada passagem do Aufbau, a autobiografia e a biografia — dois casos especiais de experiência e conhecimento históricos — conservam uma preponderância não inteiramente fundamentada. Pois já vimos que o problema da história não é saber como pode ser vivido e conhecido o nexo geral, mas como devem ser conhecíveis também aqueles nexos que nenhum indivíduo pôde viver como tal. Seja como for, não há muitas dúvidas sobre o modo como Dilthey imaginava o esclarecimento desse problema, partindo do fenômeno da compreensão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão o que é expressado está presente de uma maneira distinta do que [229] a causa no efeito. Ele está presente na expressão e é compreendido quando se compreende esta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O problema epistemológico deve ser colocado aqui de uma forma fundamentalmente diferente. Já mostramos acima que Dilthey chegou a compreender isso, porém, não conseguiu superar os liames que o fixavam à teoria do conhecimento tradicional. Seu ponto de partida, a interiorização das “vivências”, não pode construir a ponte para as realidades históricas, porque as grandes realidades históricas, sociedade e estado, são sempre, na verdade, determinantes prévios de toda “vivência”. A auto-reflexão e a autobiografia — pontos de partida de Dilthey — não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história é reprivatizada. Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza [105] que aqueles que “vivenciam” a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey, pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às consequências sistemáticas de seu conceito de vivência, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel foi mais consequente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do “espírito”, cujo traço essencial é dar-se “no tempo” e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os “indivíduos que participam da história do mundo”, por ele caracterizados como “encarregados do negócio do espírito universal”, e cujas decisões e paixões coincidiam com o que “se dava no tempo”. Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher, certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Examinemos, por outro lado, Wilhelm Dilthey, o principal adversário dessa filosofia epistemológica da história desenvolvida pelo neokantismo, considerando Dilthey desde as consequências de seu próprio enfoque, que assume uma psicologia como ciência do espírito. Percebemos que ele de fato investiga a estrutura básica do curso histórico e tenta formular, mediante conceitos adequados, a continuidade do contexto histórico disperso no tempo. Em Dilthey o ponto de partida desta empresa é, porém, a psicologia, a autocerteza humana que reside em suas próprias vivências. Essa mesma certeza deverá legitimar também a continuidade do processo histórico. Essa autocerteza da continuidade de um processo encontra sua expressão mais característica e mesmo sua realização literária mais sólida na autobiografia. Aqui encontramos realmente a tentativa, numa visão retrospectiva, de extrair do conjunto das vivências, de sua sucessão e das constelações que presidiram a própria vida, uma espécie de estrutura de sentido: a unidade de um todo histórico-vital. E contudo inegável que a autobiografia só reflete isso que chamamos história em aspectos particulares. O que se compreende na autobiografia sempre se encontra na luz íntima da auto-interpretação do observador. O que se encadeia retrospectivamente numa unidade compreensível é o passado vivido e a história autovivenciada. Mesmo deixando de lado todo o difícil problema do autoconhecimento, não fica claro como dessa continuidade psicológica das vivências pode resultar a continuidade tão diversa e sustentada numa escala tão ampla dos nexos históricos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia “descritiva e analítica”, purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Isso pode ser percebido, mesmo quando alguém se mantém tão próximo a Hegel como R.G. Collingwood, que teve grande influência de Croce. Atualmente dispomos de dois trabalhos de Collingwood em tradução alemã: sua autobiografia, que o leitor alemão pode encontrar sob o título Denken, e que antes disso já alcançara grande êxito em sua língua original, e posteriormente sua obra póstuma, The Idea of History, sob o título Philosophie der Geschichte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Sobre a autobiografia, fiz algumas observações na introdução da edição alemã, o que não quero reportar aqui. A obra póstuma contém uma história da historiografia desde a Antiguidade até o presente, finalizando curiosamente com Croce, e que na V parte contém uma discussão teórica própria. Vou me restringir a esta última parte, uma vez que as partes históricas, também aqui, como se dá em muitas outras passagens, estão dominadas por tradições de pensamento nacionalistas, chegando à incompreensibilidade. Assim, por exemplo, o capítulo sobre Wilhelm Dilthey é sumamente decepcionante para um leitor alemão: VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.