Essa formulação é paradoxal, se se imagina com que predileção foram discutidas, no século XVIII, as diferenças do gosto humano. Mas, mesmo que das diferenças de gosto não extraiamos consequências cético-relativistas, e nos fixemos porém, na ideia do bom gosto, soa paradoxal denominar o senso comum de “bom gosto”, essa rara distinção, através da qual os membros da sociedade instruída se elevam sobre as demais pessoas. No sentido de uma afirmação empírica, isso seria de fato absurdo, e veremos até onde essa denominação ganha sentido, para Kant, na intenção transcendental, isto é, como justificação apriorística para a presunção da crítica do gosto. Mas também teremos de nos indagar o que significa esse estreitamento do conceito do sentido comum para a exigência da verdade, passando a ser apenas o juízo de gosto sobre o belo, e que efeito teve o a priori do gosto subjetivo de Kant sobre a auto-evidência da ciência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Não é fácil de supervalorizar a importância dessa questão. Pois o que se perdeu com isso é justamente aquilo de que viviam os estudos filológico-históricos e donde, exclusivamente, poderiam ter alcançado sua total auto-evidência quando, sob a denominação de “ciências do espírito”, queriam fundamentar-se metodicamente ao lado das ciências da natureza. Agora — graças às indagações transcendentais de Kant — o caminho estava obstruído, no sentido de reconhecer a tradição, a cujo cultivo e estudo elas se dedicavam, em sua reivindicação específica da verdade. Com isso, porém, a originalidade metódica das ciências do espírito perdeu sua legitimação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O que Kant de sua parte, através de sua crítica do juízo estético, legitimou e queria legitimar era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual não se encontra mais nenhum conhecimento do objeto, e, no âmbito das “belas artes”, a superioridade do gênio sobre toda estética da regra. É assim que a hermenêutica romântica e a historiografia, com relação à sua auto-evidência, encontram um ponto de vinculação somente no conceito de gênio, o qual alcança validade através da estética de Kant. Esse foi justamente o outro lado da atuação de Kant. A justificação transcendental do juízo estético alicerça a autonomia da consciência estética, da qual viria a derivar-se também a legitimação da consciência histórica. A subjetivação radical, que incluiu a refundamentação da estética de Kant, marcou verdadeiramente uma época. Ao desacreditar qualquer outro conhecimento teórico que não fosse o da ciência da natureza, forçou a auto-determinação das ciências do espírito a apoiar-se na doutrina de método das ciências da natureza. Mas ao mesmo tempo facilitou-lhes esse apoio, ao colocar à sua disposição, como um dispositivo secundário, o “momento artístico”, o “sentimento” e a “empatia”. A característica das ciências do espírito de Helmholtz, de que nos ocupamos acima, é, nos dois sentidos, um bom exemplo da atuação de Kant. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O apelo de Schleiermacher ao sentimento vivo contra o frio racionalismo do Aufklärung, a proclamação de Schiller a favor da liberdade estética contra o mecanismo da sociedade, a oposição de Hegel da vida (mais tarde: do espírito) contra a “positividade”, foram o tom antecipador de um protesto contra a moderna sociedade industrial que, no início do nosso século, fizeram ascender as palavras de ordem vivência e vivenciar a um tom quase religioso. O levante do movimento da juventude contra a formação burguesa e suas formas de vida encontrava-se sob esse signo. A influência de Friedrich Nietzsche e de Henri Bergson atuou nessa direção. Mas também um “movimento espiritual” como o que envolveu Stefan George e, não por último, a fineza sismográfica, com a qual o filosofar de Georg Simmel reagiu a esses processos, testemunham a mesma coisa. E assim que a filosofia de vida dos nossos dias se vincula aos seus antecessores românticos. A rejeição à mecanização da vida na existência de massa da atualidade acentua a palavra ainda hoje com uma tal auto-evidência que mantém totalmente encobertas suas implicações conceituais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O conceito da “arte vivencial”, como quase sempre se dá nesses casos, foi cunhado a partir da experiência do limite, que se coloca à sua pretensão. O conceito da arte vivencial somente se torna consciente na sua circunscrição, quando deixa de ser auto-evidente que uma obra de arte represente uma transposição de vivências, e quando já não é auto-evidente que essa transposição se deve à vivência de uma inspiração genial que, com a segurança de um sonâmbulo, cria a obra de arte que, por sua vez, converter-se-á numa vivência para aquele que a recebe. Para nós, o século caracterizado pela auto-evidência desses pressupostos é o de Goethe, um século que é toda uma era, uma época. Somente porque para nós já está encerrado, e porque isso nos permite ver além de seus limites, podemos vê-lo nos seus limites e para isso temos um conceito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Já a consciência do artista de hoje parece contrariá-lo. Ocorreu uma espécie de crepúsculo do gênio. A representação de uma inconsciência sonâmbula, com a qual o gênio cria — uma representação que, em todo caso, pode se legitimar através da autodescrição de Goethe em sua maneira poética de produzir — nos parece hoje um romantismo falso. A isso um poeta como Paul Valéry contrapôs os padrões de um artista e engenheiro como Leonardo da Vinci, em cujo engenho total, encontravam-se ainda indiferenciados e unos, o artesanato, a invenção mecânica e a genialidade artística. A consciência geral, ao contrário, é sempre ainda determinada pelos efeitos do culto do gênio do século XVIII e pela sacralização da vocação artística, que vimos ser característica para a sociedade burguesa do século XIX. Nisso se comprova que, no fundo, o conceito do gênio é concebido do ponto de vista do observador. Esse antigo conceito se oferece convincentemente não para o espírito que cria, mas para o espírito que julga. O que se apresenta ao observador como um milagre, a ponto de não se poder entender que alguém seja capaz de algo assim, irá se espelhar no que há de milagroso numa criação, através de uma inspiração genial. Os criadores, então na medida em que olham para si mesmos, podem se servir dessas formas de apreensão, e é assim, certamente, que o culto do gênio veio a ser alimentado, no século XVIII, também pelos criadores. Mas nessa auto-apoteose nunca chegaram a alcançar o status que a sociedade burguesa lhes atribuía. A auto-evidência do criador continua bem mais sóbria. Continua vendo as possibilidades de fazer, de ser capaz e de indagar da técnica até mesmo onde o observador procura inspiração, mistério e significado profundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Ao que me parece, Kierkegaard já comprovou a insustentabilidade dessa posição, ao reconhecer a consequência destrutiva do subjetivismo, e ao ser o primeiro a descrever a autodestruição da imediaticidade estética. Sua doutrina do estágio estético da existência foi projetada do ponto de partida do ético, a quem se tornou patente a impossibilidade de salvação e a insustentabilidade de uma existência na pura imediaticidade e descontinuidade. Por isso, seu ensaio crítico é de um significado fundamental, pois a crítica apresentada aqui, referente à consciência estética, revela as contradições internas da existência estética, de tal modo que esta está necessitada de ir além de si mesma. Na medida em que o estágio estético da existência se mostra em si insustentável, reconhece-se que o fenômeno da arte coloca uma tarefa à existência: a de, em face da atualidade exigente e arrecadadora da respectiva impressão estética, alcançar a continuidade da auto-evidência, que somente a existência humana (Dasein) pode sustentar. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Não obstante, se se quisesse tentar uma autodeterminação da existência estética, que construísse a mesma coisa fora da continuidade hermenêutica da existência humana, ignorar-se-ia, pelo que acredito, o direito da crítica feita por Kierkegaard. Mesmo que se possa reconhecer que no fenômeno estético são visíveis os limites da auto-evidência histórica da existência (Dasein), limites que correspondem aos apresentados pelo que é [102] natural, o qual, colocado também no espírito como sua condição, penetra no que é espiritual nas mais diversas formas, como mito, como sonho, como pré-formação da vida consciente. Mesmo assim não nos é dado nenhum posto que nos permita ver a partir de si próprio o que assim nos limita e condiciona e, a partir de fora, ver-nos como os assim limitados e condicionados. Inclusive aquilo que está fechado à nossa compreensão é experimentado por nós mesmos como algo que limita e pertence, assim, à continuidade da auto-evidência, na qual a existência humana se movimenta. Com o reconhecimento da “debilidade do belo e da eventualidade do artista” não se caracteriza, na verdade, uma estruturação de ser fora da “fenomenologia hermenêutica” da existência, mas antes, se formula a tarefa de preservar a continuidade hermenêutica que perfaz o nosso ser, em face de tal descontinuidade do ser estético e da experiência estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Se quisermos saber o que é a verdade nas ciências do espírito, teremos então de dirigir a questão da filosofia ao conjunto dos procedimentos das ciências do espírito, da mesma forma que Heidegger a dirigiu à metafísica e tal qual nós a dirigimos à consciência estética. Não iremos ter de aceitar a resposta da auto-evidência das ciências do espírito, mas teremos de indagar o que é, na verdade, a sua compreensão. Na preparação dessa pergunta de longo alcance o que poderá servir, em especial, será a indagação sobre a verdade da arte, justamente porque inclui a compreensão da experiência da obra de arte, ou seja, representa até mesmo um fenômeno hermenêutico, e não, certamente, no sentido de um método científico. A compreensão pertence, antes, ao próprio encontro com a obra de arte, de maneira que apenas do ponto de vista do modo de ser da obra de arte é que se pode aclarar essa pertença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma “aplicação consciente” que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação [261] apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se “normativa”, no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. [456] No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee und Sprache (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.