Gadamer (VM): autenticidade

Certamente, tudo isso poderá transformar-se numa “vivência” para nós. Essa autocompreensão estética está sempre disponível. Mas a gente não pode deixar-se iludir pelo fato de que a própria obra de arte que, desse modo, torna-se para nós uma vivência, não foi destinada para uma tal concepção. Nossos conceitos de valor sobre o gênio e a vivencialidade não são, aqui, adequados. Podemos nos lembrar também de padrões totalmente diversos e, por exemplo, dizer: Não é a autenticidade da vivência ou a intensidade de sua expressão, mas a disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer, que faz com que a obra de arte seja uma obra de arte. Essa contradição quanto aos padrões vale para todos os gêneros de arte, mas possui nas artes linguísticas sua especial legitimação. Ainda no século XVIII, de uma forma surpreendente para a consciência moderna, a poesia e a retórica encontravam-se lado a lado. Kant vê em ambas “um jogo livre da imaginação e um negócio do entendimento”. Tanto a poesia como a retórica são, para ele, belas artes, e valem como “libres”, na medida em que a harmonia das duas capacidades do conhecimento, a sensibilidade e o entendimento, é alcançada em ambas de maneira não deliberada. O padrão da vivencialidade e da inspiração genial teria de contrapor a esta tradição um conceito muito diferente de arte “livre”, a que somente responderia a poesia, na medida em que nela se tivesse suprimido todo o ocasional, e da qual a retórica deveria ser excluída inteiramente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela “famosa analogia”. É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger frequentemente a expressão “co-originariedade” — uma ressonância da “analogia” e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à ideia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis, muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates, compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno, ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Chegamos assim a um conceito sumário do que está à base de [345] toda constituição de textos e permite sua inserção no contexto hermenêutico: toda volta ao texto — seja um texto real, fixado por escrito, ou uma mera reprodução do que se expressa na conversação — remete à “notícia originária”, ao notificado ou anunciado originariamente que há de valer como algo idêntico dotado de sentido. A tarefa prescrita a tudo que se vai fixar por escrito é justamente que esta “notícia” deve poder ser compreendida. E o texto escrito deve fixar a informação originária de tal modo que seu sentido seja compreensível univocamente. À tarefa do escritor corresponde aqui a tarefa do leitor, do destinatário ou do intérprete, que é a tarefa de alcançar essa compreensão, ou seja, fazer com que o texto fixado por escrito fale novamente. Nesse sentido, ler e compreender significa restituir à informação sua autenticidade original. A tarefa da interpretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é controverso e é preciso alcançar a reta compreensão da “informação”. Mas a “informação” não é o que o orador ou o escritor disse originariamente, mas o que queria dizer se eu tivesse sido seu interlocutor originário. O problema hermenêutico na interpretação das “ordens”, por exemplo, é que estas devem cumprir-se “conforme seu sentido” (e não ao pé da letra). O que se explica pela constatação de que um texto não é um objeto dado, mas uma fase na realização de um processo de entendimento. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Não é por acaso que a palavra “literatura” conservou um sentido axiológico, de forma que a pertença a ela representa uma característica distintiva. Um texto desse gênero não significa a mera fixação de um discurso, mas possui sua própria autenticidade. Se o caráter do discurso consegue fazer com que o ouvinte ultrapasse o próprio discurso, ouvindo através dele e centrando sua atenção no que o discurso lhe comunica, esse fato põe de manifesto o que é a linguagem ela mesma. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Na segunda metade do século XVIII, a subjetivação do conceito de expressão já se encontra bem adiantada. Quando polemiza, por exemplo, com o jovem Riccoboni, que considera que a arte do ator está na representação e não na sensação, Sulzer já supõe que a autenticidade do sentir é obrigatória na representação estética. Desse modo complementa também a expressio da música através de uma cimentação psicológica do sentir do compositor. Encontramo-nos aqui no ponto de passagem da tradição retórica para a psicologia da vivência. Nesse sentido, o aprofundamento na essência da expressão e em especial da expressão estética, mantém, em última instância, uma referência sempre nova com o contexto metafísico de cunho neoplatônico. Isso porque a expressão nunca é um mero signo que nos remete a um outro, a algo interior; na expressão, ao contrário, está presente aquilo mesmo que é expresso, por exemplo, a raiva está no semblante raivoso. O moderno diagnóstico expressivo sabe disto muito bem, mas o próprio Aristóteles já sabia disso. Faz parte, evidentemente, do modo de ser do vivente, que um esteja presente no outro. Isso foi reconhecido de modo especial também pelo uso que a filosofia faz da linguagem, quando Spinoza reconhece um conceito ontológico fundamental nos termos exprimere e expressio, e quando, apoiando-se nele, Hegel vê a realidade própria do espírito no sentido objetivo da expressão como representação, exteriorização. Hegel apoia sua crítica ao subjetivismo da reflexão sobre esse fato. De modo semelhante pensam também Hölderlin e seu amigo Sinclair, em quem o conceito de expressão ocupa uma posição central. A linguagem como produto da reflexão criadora, que confere seu ser à poesia, é “expressão de um todo vivo, porém específico”. O significado dessa teoria da expressão foi evidentemente deslocado pela subjetivação e psicologização do século XIX. Na verdade, tanto em Hölderlin como em Hegel a tradição retórica é muito mais determinante. No século XVIII, expressão (Ausdruck) assume o lugar de cunhagem (Ausdruckung), e refere-se àquela forma que permanece quando se estampa um selo ou algo do gênero. O contexto dessa imagem fica claro a partir da citação de uma passagem de Géllert , que diz: “nossa língua não é capaz de exprimir certas belezas, assemelhando-se a uma cera quebradiça, que muitas vezes estala e se quebra quando se quer imprimir-lhe as imagens do espírito”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO VI

A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Pois bem, mesmo que seja verdade, isso não nos permite concluir que na esteira da filosofia diltheyana das concepções de mundo todo conhecimento filosófico já não tenha outro sentido e valor a não ser o de representar uma expressão histórica. Nesse sentido, ele encontra-se no mesmo nível da arte, na qual está em questão a autenticidade e não a verdade. A questão própria de Heidegger está longe de querer suspender a metafísica em favor da história, ou a pergunta pela verdade em função da autenticidade da expressão. Sua intenção é, antes, questionar através do pensamento o pano de fundo que move o questionamento metafísico. O fato de a história da filosofia aparecer agora em um novo sentido, como o interior da história universal, propriamente como história do ser, isto é, história do esquecimento do ser, não significa que esteja em questão aqui uma metafísica da história, nos moldes como a indica Löwith, como uma forma de secularização da concepção histórico-salvífica do cristianismo, e cuja concretização mais consequente no terreno do Iluminismo moderno é representada pela filosofia hegeliana da história. Tampouco a crítica histórica de Husserl ao “objetivismo” da filosofia moderna, reportado em seu tratado sobre a “Krisis”, representa uma metafísica da história. A “historicidade” é um conceito transcendental. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A consequência é que essas interpretações decifradoras permanecem “inseguras”. Sua “verdade” não pode ser demonstrada “objetivamente”, a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.