A auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XIX, é inteiramente dominada pelo modelo das ciências da natureza. Mostra-o um simples olhar lançado à expressão “ciências do espírito”, desde que essa expressão receba o significado que nos é familiar, unicamente através de sua forma plural. As ciências do espírito se entendem tão clarividentes, graças à sua analogia com as ciência da natureza, tanto que o eco idealístico, que se situa no conceito do espírito e da ciência do espírito, retrocede. A expressão “ciências do espírito” se popularizou principalmente através do tradutor da lógica de John St. Mill. Na sua obra, Mill procura, suplementarmente, esboçar as possibilidades que o emprego da lógica da indução possui sobre as moral scienses. O tradutor diz, para isso, “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). Já do contexto da Lógica de Mill, percebe-se que não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas, ao contrário, de demonstrar que é o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, que vale exclusivamente também nesse âmbito. Mill encontra-se assim em meio a uma tradição inglesa, cuja formulação mais eficaz foi dada por Hume na introdução de sua obra Treatise. Mesmo nas ciências morais o que importa é reconhecer a uniformidade, a regularidade, a legalidade, que tornam previsíveis os fenômenos e processos individuais. Mesmo no terreno dos fenômenos da natureza não chega a ser alcançável da mesma maneira por toda parte. No entanto, o motivo disso se encontra exclusivamente no fato de que, os dados em que se poderiam reconhecer as uniformidades não são obtidos suficientemente em todos os lugares. Embora a meteorologia trabalhe tão metodicamente quanto a física, acontece apenas que seus dados são mais incompletos e, por isso, mais inseguras suas previsões. A mesma coisa vigora nos campos dos fenômenos morais e sociais. A utilização do método indutivo terá de também ficar isenta de todas as hipóteses metafísicas, mantendo-se inteiramente independente de como se imagina o estabelecimento dos fenômenos que se está observando. Não se está, por exemplo, averiguando as causas de determinados efeitos, mas simplesmente constatando regularidades. Assim, torna-se completamente indiferente se, por exemplo, acreditamos ou não no livre-arbítrio — no terreno da vida social pode-se, em todo caso, chegar a fazer previsões. Tirar consequências da regularidade com relação a fenômenos esperados não inclui nenhuma acepção sobre a espécie de conexão, cuja regularidade possibilita a previsão. O surgimento de decisões livres — caso tais decisões existam — não interrompe o processo regular, porém pertence, ela mesma, à generalidade e à regularidade que são obtidas através da indução. Representa o ideal de uma ciência da natureza da sociedade, que aqui se desenvolve programáticamente, do qual em alguns campos surgiram pesquisas plenas de êxito. Basta pensar na psicologia de massa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O decisivo foi que Kant, no § 59 da Crítica do juízo, ofereceu uma análise lógica do conceito do símbolo, que coloca justamente esse ponto sob a mais clara luz. Ele distingue a representação simbólica da esquemática. Ela é representação (e não mera denominação, como se encontra no assim chamado “simbolismo” lógico), só que a representação simbólica não representa imediatamente um conceito (como acontece na filosofia do esquematizo transcendental de Kant), mas indiretamente, “através do que a expressão não contém o genuíno esquema para o conceito, mas apenas um símbolo para a reflexão”. Esse conceito da representação simbólica é um dos mais brilhantes resultados do pensamento de Kant. Com isso, Kant faz jus à verdade teológica, que recebeu sua configuração escolástica no pensamento da analogia entis, e mantém distanciados de Deus os conceitos humanos. Para além disso, descobre ele — uma alusão expressa de que esse “negócio” merece uma “pesquisa mais profunda” — a maneira simbólica de trabalhar da linguagem (sua permanente metáfora) e, finalmente, aplica o conceito de analogia principalmente para descrever a relação do belo com o bem-ético, que não pode ser nem de subordinação nem de equiparação. “O belo é o símbolo do eticamente bom”: nessa fórmula, ao mesmo tempo precavida como marcante, Kant unifica a exigência de uma inteira liberdade de reflexão do juízo estético com seu significado humano — um pensamento que causou o maior efeito histórico. Schiller foi, nesse particular, seu sucessor. Ao fundamentar a ideia de uma educação estética da espécie humana sobre a analogia da beleza e da ética, que tinha sido formulada por Kant, ele pôde seguir uma indicação expressa de Kant: “O gosto torna possível ao mesmo tempo, a passagem da excitação dos sentidos para habituais interesses morais, sem necessidade de um salto violento”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como “tempo sagrado”, do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia entre a a-temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Já essa colocação de tarefa torna patente a repulsa ao idealismo especulativo. Apresenta uma analogia que deve ser entendida em sentido completamente literal. Dilthey quer que a razão histórica necessita de uma justificação igual à da razão pura. Se a crítica da razão pura fez época, não foi só por ter destruído a metafísica como pura ciência racional do mundo, da alma e de Deus, mas porque, ao mesmo tempo, apontava para um âmbito, dentro do qual o emprego de conceitos apriorísticos estava justificado e tornava possível o conhecimento. A crítica da razão pura não somente destruía os sonhos de um vidente do espírito, mas, ao mesmo tempo, respondia à pergunta de como é possível uma ciência da natureza pura. Assim, nesse entremeio, o idealismo especulativo havia acolhido o mundo da história junto com a auto-explicação da razão, e, além disso, havia conseguido, sobretudo em Hegel, resultados geniais precisamente no terreno histórico. Com isso, a pretensão de ciência racional pura ficava estendida, em princípio, ao conhecimento histórico. Este fazia parte da enciclopédia do [224] espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
As ciências históricas conferem agora ao problema da teoria do conhecimento uma nova atualidade. Isso já se pode comprovar na história da palavra, na medida em que a expressão “teoria do conhecimento” aparece somente na época pós-hegeliana. Começou a ser usada quando a investigação empírica havia desacreditado o sistema hegeliano. O século XIX se converteu no século da teoria do conhecimento, pois somente com a dissolução da filosofia hegeliana ficou definitivamente destruída [225] a correspondência óbvia de logos e ser. Na medida em que Hegel mostrava a razão em tudo, inclusive na história, foi ele o último e mais universal representante da filosofia antiga do logos. Agora, frente à crítica da filosofia apriorista da história, viram-se jogados novamente para o campo de forças da crítica kantiana, cuja problemática se colocava agora também para o mundo histórico, uma vez rechaçada a pretensão de uma construção racional pura da história do mundo e uma vez que também o conhecimento histórico estava limitado à experiência. Se tanto a natureza, como a história não são pensadas como uma forma de manifestação do espírito, então se torna problema para o espírito humano o modo como deve conhecer a história, da mesma forma que o conhecimento da natureza se lhe tornara problemático em virtude das construções do método matemático. Assim, junto à resposta kantiana sobre o modo como é possível uma ciência pura da natureza, Dilthey tinha de procurar uma resposta à sua questão, qual seja: como a experiência histórica pode se converter em ciência? Em clara analogia com o questionamento kantiano, também irá perguntar pelas categorias do mundo histórico que possam sustentar a construção do mundo histórico nas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da vida. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à vida, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da “vida da consciência”. E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de vida não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego, isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente consequente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O “outro” aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde “se converte”, por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a [255] interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da vida, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Se continuarmos a perseguir essa ideia de Yorck, tornar-se-á ainda mais nítida a persistência dos motivos idealistas. O que o conde Yorck expõe aqui é a correspondência estrutural de vida e autoconsciência, que Hegel já desenvolvera na sua Fenomenologia. Já nos últimos anos de Hegel em Frankfurt, nos restos de manuscritos conservados, pode ser mostrada a importância central que possui o conceito da vida para a sua filosofia. Na sua Fenomenologia é o fenômeno da vida o que encaminha a decisiva transição de consciência à autoconsciência — e esse não é certamente um nexo artificial. Pois vida e autoconsciência têm realmente uma certa analogia. A vida se [257] determina pelo fato de que o ser vivo se diferencia a si mesmo do mundo em que vive e ao qual permanece unido, e se mantém nessa sua auto-diferenciação. A auto-conservação do ser vivo se nutre do que lhe é estranho. O fato fundamental de estar vivo é a assimilação. Por consequência, a diferenciação é ao mesmo tempo uma não-diferenciação. O estranho é apropriado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
E claro que as ciências do espírito não podem ser descritas de maneira satisfatória a partir desse conceito de investigação e progresso. É certo também que esse conceito tem sua aplicação no âmbito delas, que é possível descrever a história da solução de um problema, onde, p. ex., é difícil decifrar um escrito, onde a única coisa que interessa é chegar a alcançar um resultado concludente. Não fosse assim tampouco teria sido possível que as ciências do espírito se apoiassem metodologicamente nas da natureza, o que vimos realizar-se no século passado. Seja como for, porém, a analogia entre a investigação natural e a espiritual-científica somente atinge um nível secundário no trabalho oferecido pelas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Na verdade, porém, o elemento normativo no conceito do clássico nunca se extinguiu por completo. Mesmo hoje em dia continua vivendo no fundo da ideia do “ginásio humanístico”. O filólogo tem razão em não se contentar com aplicar a seus textos o conceito histórico de estilo desenvolvido na história das artes plásticas. Já a questão iminente de se saber se Homero também não é “clássico”, faz vacilar a categoria histórico-estilística do clássico, usada em analogia com a história da arte — um exemplo de que a consciência histórica contém em si sempre mais do que ela mesma admitiria. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Já a maneira como a especulação teológica sobre o mistério da encarnação se conecta, na patrística, ao pensamento helenístico, é muito significativo para a nova dimensão a que aponta. De início procurou-se fazer uso da oposição conceitual estoica entre logos exterior e interior (logos endiathetos – proforikos). Essa distinção deveria destacar na origem o princípio estoico do mundo, que era o logos, da exterioridade do puro falar por imitação. Para a fé cristã na revelação, é a direção inversa a que adquire logo um significado positivo. A analogia entre palavra interior e exterior, o fato de que a palavra se faça som na vox, obtém agora um valor paradigmático. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Porque a doutrina da palavra interior deve suportar, com a sua analogia, a interpretação teológica da trindade, a questão teológica como tal não nos será aqui de maior ajuda. Teremos de interrogar, antes, a coisa, perguntar o que pode ser essa “palavra interior”. Não pode ser simplesmente o logos grego, a conversação da lama consigo mesma. Já o simples fato de que logos se traduza tanto por ratio como por verbum aponta para o fato de que o fenômeno linguístico adquire na elaboração [426] escolástica da metafísica grega muito mais validez do que teve entre os próprios gregos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Pois bem, também a filosofia do logos grego conhecia certamente este fato. Platão descreve o pensamento como uma conversação interior da alma consigo mesma, e a infinitude do esforço dialético que ele exige do filósofo é a expressão da discursividade da nossa compreensão finita. E, no fundo, por mais que Platão exigisse o “pensar puro”, ele mesmo não deixa de reconhecer constantemente que, para o pensamento da coisa, não se pode prescindir do meio da onoma e do logos. Mas se a doutrina da palavra interior não quer dizer outra coisa que a discursividade do pensar e do falar humano, como pode então a “palavra” ser uma analogia do processo das pessoas divinas, de que fala a doutrina da trindade? Não está em jogo nisso precisamente a oposição entre intuição e discursividade? Onde está o fator comum entre este e aquele “processo”? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Entretanto, a nós interessa menos essa coincidência, do que as diferenças entre a palavra divina e humana. Teologicamente, isso é também completamente correto. O mistério da trindade, embora iluminado pela analogia com a palavra interior, permanece, em última análise, incompreensível para o pensamento humano. Se na palavra divina se expressa o todo do espírito divino, o momento processual dessa palavra significa, então, algo a respeito do que, no fundo, toda analogia nos deixa na estaca zero. Na medida em que, conhecendo a si mesmo, o espírito divino conhece ao mesmo tempo todo ente, a palavra de Deus é a palavra do espírito que em uma só contemplação (intuitus) contempla e cria tudo. O surgimento desaparece na atualidade da onisciência divina. Tampouco a criação seria um processo real, mas interpretaria tão-somente a ordenação da estrutura do universo no esquema temporal. Se quisermos compreender de uma maneira mais exata o momento processual da palavra, que para nosso questionamento do nexo de linguisticidade e compreensão é o mais importante, não poderemos permanecer na coincidência com o problema teológico, mas teremos que nos deter na imperfeição do espírito humano e na sua diferença para com o divino. Também aqui podemos acompanhar Tomás quando destaca três diferenças. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se se pensa como Platão que o cosmos das ideias é a verdadeira estrutura do ser, será difícil subtrair-nos a essa consequência. E, efetivamente, Speusipo, o sucessor de Platão na direção da academia, relata que Platão a extraiu de fato. Sabemos dele que cultivou muito particularmente a busca do comum (ouoia), e que isso ultrapassa em muito o que se entende por generalização no sentido da lógica da espécie, pois seu método de investigação era a analogia, isto é, a correspondência proporcional. A capacidade dialética de descobrir características comuns e perceber o múltiplo sob o aspecto do uno está aqui, todavia, muito próxima à livre universalidade da linguagem e aos princípios de sua formação de palavras. O comum da analogia, tal como o buscava por todas as partes Speusipo — correspondências do tipo: “O que para os pássaros são as asas, são para os peixes as nadadeiras” — serve para definir conceitos, porque essas correspondências representam ao mesmo tempo um dos mais importantes princípios formadores na formação linguística das palavras. A transposição de um âmbito ao outro não somente possui uma função lógica, mas corresponde ao metaforismo fundamental da própria linguagem. A conhecida figura estilística da metáfora não é mais do que a aplicação retórica desse princípio geral de formação, que é ao mesmo tempo linguístico e lógico. Assim, Aristóteles poderá dizer: “transpor bem é reconhecer o comum” . Sobremodo a Tópica aristotélica mostra uma ampla gama de confirmações para o caráter indissociável do nexo de conceito e linguagem. A definição, na qual se estabelece o gênero comum, deriva-se aqui, expressamente, da consideração do comum. Desse modo, no começo da lógica do gênero está o desempenho precedente da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
É claro que a analogia entre os dois modos de ser criador tem seus limites, que correspondem às diferenças, antes acentuadas, entre palavra divina e humana. A palavra divina cria o mundo, mas não o faz numa sequência temporal de pensamentos criadores e de dias da criação. O espírito humano, pelo contrário, somente possui a totalidade de seus pensamentos na sequencialidade temporal. É verdade que não se trata de uma relação puramente temporal, como já vimos a propósito de Tomás de Aquino. Nicolau de Cusa também ressalta essa medida. E como a série dos números: sua geração não é na realidade um acontecer temporal, mas um movimento da razão. Nicolau de Cusa considera que é esse mesmo movimento da razão que opera, quando se extrai do sensorial a formação dos gêneros e espécies, tal como ocorrem nas palavras, e se desprendem em conceitos e palavras individuais. Também eles são entia rationes [439]. Por mais platônico-neoplatônico que soe esse discurso sobre o “desenvolvimento”, Nicolau de Cusa supera, na realidade, o esquematismo emanantista da doutrina neoplatônica da explicatio em pontos decisivos; pois, contra ela, desenvolve a doutrina cristã do verbo. A palavra não é, para ele, um ser distinto do espírito, nem uma manifestação minorada ou debilitada do mesmo. Para o filósofo cristão é o conhecimento disso o que constitui sua superioridade sobre os platônicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Por outro lado, as coisas são muito diferentes quando se tem em mente o comportamento total do homem para com o mundo, tal como se apresenta na realização linguística. O mundo, que se manifesta e estrutura linguisticamente, não é em si nem é relativo no mesmo sentido em que podem ser os objetos da ciência. Não é em si, na medida em que carece por completo do caráter de objeto. Enquanto um todo abrangente, ele nunca pode estar dado na experiência. Como o mundo que ele é, também não é relativo a uma determinada língua. Pois viver num mundo linguístico, como se faz quando se pertence a uma comunidade linguística, não quer dizer estar confiado a um mundo circundante como o estão os animais em seus mundos vitais. Não se pode querer olhar de cima, de modo correspondente, o mundo linguístico, pois não existe nenhum lugar fora da experiência linguística do mundo a partir do qual este pudesse converter-se a si mesmo em objeto. A física não proporciona este lugar, porque o que investiga e calcula, como seu objeto, não é o mundo, isto é, o todo dos entes. Assim também a linguística comparada, que estuda as línguas em sua estruturação, não está em condição de proporcionar um lugar livre de linguagem, a partir do qual seria conhecível o ser em si dos entes, e para o qual se pudesse reconstruir as diversas formas da experiência linguística do mundo, como seleção esquematizadora [457] a partir dos entes em si, em analogia aos mundos vitais dos animais que são investigados segundo os princípios de sua estruturação. Ao contrário, em cada língua existe uma referência imediata à imediaticidade do ente. Ter linguagem significa precisamente um modo de ser completamente distinto da vinculação dos animais ao seu meio ambiente. Quando os homens aprendem línguas estrangeiras não alteram seu comportamento para com o mundo, como o faria um animal aquático que se convertesse em terrestre, mas na medida em que mantêm seu próprio comportamento para com o mundo, ampliam-no e enriquecem-no através do mundo linguístico estrangeiro. Aquele que tem linguagem “tem” o mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
É evidente que repousa na constituição reflexiva, que perfaz o seu ser, o fato de que a luz reúna o ver e o visível, de modo que sem ela não exista nem um nem outro. Essa constatação tão trivial torna-se frutuosa se pensarmos a relação da luz com o belo e o alcance semântico do conceito do belo. Pois de fato é a luz a que articula as coisas visíveis como formas, que são ao mesmo tempo “belas” e “boas”. Todavia, o belo não se restringe ao âmbito do visível, mas é, como já vimos, o modo de aparecimento do bom em geral, do ente, tal como deve ser. A luz, na qual se articula não somente o âmbito visível, mas também o inteligível, não é a luz do sol, mas a do espírito, o nous. A isso alude aquela profunda analogia platônica, a partir da qual Aristóteles desenvolveria a doutrina do nous, e na sua esteira, o pensamento cristão medieval, a doutrina do intellectus agens. O espírito, que desenvolve de si mesmo a multiplicidade do pensado, torna-se presente a si mesmo justamente nisso. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela “famosa analogia”. É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger frequentemente a expressão “co-originariedade” — uma ressonância da “analogia” e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à ideia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis, muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates, compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno, ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan e P. Ricoeur. O alcance da analogia entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social “positivista” que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do “sentido”. Apesar de Nietzsche, buscar “sentido” na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A linguagem não é um dos meios pelos quais a consciência se comunica com o mundo. Não representa um terceiro instrumento, ao lado do signo e da ferramenta — embora esses dois certamente façam parte da caracterização essencial do homem. A linguagem não é nenhum instrumento, nenhuma ferramenta. Pois uma das características essenciais do instrumento é dominarmos seu uso, e isso significa que lançamos mão e nos desfazemos dele assim que prestou seu serviço. Não acontece o mesmo quando pronunciamos as palavras disponíveis de um idioma e depois de utilizadas deixamos que retornem ao vocabulário comum de que dispomos. Esse tipo de analogia é falso porque jamais nos encontramos como consciência diante do mundo para num estado desprovido de linguagem lançarmos mão do instrumental do entendimento. Pelo contrário, em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo, sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem. É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, conhecemos as pessoas e por fim conhecemos a nós próprios. Aprender a falar não significa ser introduzido na arte de designar o mundo que nos é familiar e conhecido pelo uso de um instrumentado já dado, mas conquistar a familiaridade e o conhecimento do próprio mundo, assim como ele se nos apresenta. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.
Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das consequências, consoante à ideia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Mas com isso a analogia entre a teoria psicanalítica e a teoria sociológica torna-se problemática. Onde encontra seus limites esta última? Onde termina o paciente e começa a parceria social em seu direito não profissional? Frente a qual auto-interpretação da consciência social — e todo costume representa uma dessas auto-interpretações — se produz a indagação e a sondagem, por exemplo, na vontade de mudança revolucionária, e frente a qual não? Essas perguntas parecem não ter resposta. A consequência inevitável parece ser que a consciência emancipatória tem diante de si, em princípio e como tarefa, a dissolução de toda coerção dominadora. O que significaria que sua imagem paradigmática última deveria ser a utopia anárquica. Mas isso me parece uma falsa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Isso me parece tão evidente que fico assombrado que meus críticos, tanto Giegel quanto no fundo o próprio Habermas, repitam que, insistindo em minha hermenêutica, pretendo contestar a legitimidade da consciência revolucionária e da vontade de mudança. Quando afirmo frente a Habermas que a relação médico-paciente não é suficiente para o diálogo social, formulando a pergunta: “Frente a qual auto-interpretação da consciência social — e todo costume é uma tal auto-interpretação — posiciona-se a indagação e a sondagem, será que na vontade de mudança revolucionária, e frente qual não?”, estou contrapondo essa pergunta à analogia afirmada por Habermas. No caso da psicanálise, sua resposta se dá mediante a autoridade do médico bem informado. Mas no âmbito social e político falta uma base específica para a análise comunicativa, cujo tratamento o doente aceita livremente porque conhece sua doença. Por isso, parece-me que essas perguntas não podem ser respondidas do ponto de vista da hermenêutica. Apoiam-se em convicções sociopolíticas. Mas isso não significa que por causa disso a vontade de mudança revolucionária, a diferença de uma confirmação da tradição, não seja suscetível de legitimação. Nem uma nem a outra convicção são suscetíveis nem estão necessitadas de uma legitimação teórica pela hermenêutica. A teoria da hermenêutica nem sequer pode decidir por si se é correta ou não a pressuposição de que a sociedade está dominada pela luta de classes e de que não há nenhuma base para o diálogo entre as classes. Não há dúvidas de que meus críticos ignoram a pretensão de validade que há na reflexão sobre a experiência hermenêutica. De outro modo não poderiam chocar-se com o fato de que toda possibilidade de entendimento pressupõe a solidariedade. Eles partem desse mesmo pressuposto. Nada pode justificar a suposição de que eu lançaria mão, imparcialmente, do “consenso básico” como solidariedade conservadora e não como solidariedade revolucionária. É a ideia da própria razão que não pode renunciar à ideia do consenso geral. Essa é a solidariedade que une a todos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a filosofia prática em Aristóteles. Chama-se “philosophia” e isso implica um interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois [291] bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “tekhne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “tekhnai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da ideia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a ideia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma consequência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa consequência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
O testemunho de uma citação de Digesto do Corpus iuris civilis representou para mim uma nova contribuição. Ela refere-se à arte da compreensão, própria da profissão do agente de câmbio, e permite o entendimento sobre o preço que os contratantes deve negociar. É sobremodo significativa a referência que faz Jaeger ao humanista francês Antonio Conte (38s). Da citação, deduz-se que o humanista francês compreende já a arte da interpretação que encontramos na atividade do agente de câmbio num sentido mais geral. O humanista afirma que o pagamento pelos serviços nem sempre representa um lucro tão suspeito como o pagamento pelos serviços do agente de câmbio. Trata-se pois de um serviço de interpretação e de intermediação no sentido mais amplo dos termos. Mas, como mostra a analogia com o agente de câmbio, a função desse intérprete não se limita à versão técnica da linguagem nem ao mero esclarecimento de pontos obscuros, mas representa um recurso global para a compreensão que presta uma intermediação entre os interesses das partes (voluntatum contrahentium). Também aqui, como na passagem do Epinomis, trata-se de uma atividade mediadora geral que se dá muito mais no trato da vida diária do que no contexto da ciência (é claro que essas aplicações do termo hermeneia são uma mera arte prática para favorecer a compreensão e nunca se busca uma análise lógica das regras dessa arte). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia “descritiva e analítica”, purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Enquanto jurista, Betti está longe de supervalorizar a opinião subjetiva, por exemplo, as casualidades históricas que levaram à formulação de um conteúdo jurídico, equiparando assim a opinião subjetiva ao sentido jurídico. Mas, por outro lado, mantém-se tão fiel à “interpretação psicológica” formulada por Schleiermacher que sua própria posição hermenêutica está constantemente ameaçada de afundar e desaparecer. Por mais que se esforce para superar o reducionismo psicológico e conceber sua tarefa como a reconstrução do nexo espiritual de valores e conteúdos de sentido, só consegue fundamentar a proposição dessa autêntica tarefa hermenêutica através de uma espécie de analogia com a interpretação psicológica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, [400] dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
E não me atreveria a decidir se isso vale também para a hermenêutica jurídica, no sentido de que uma ordenação jurídica, que precisa de interpretação porque as coisas mudaram (por exemplo, com a ajuda do princípio da analogia), pode inclusive colaborar com o universal em vista de uma aplicação mais justa do direito, ou seja, no sentido de afinar o senso jurídico que guia a interpretação. Em outros âmbitos, porém, a coisa está mais clara. Não há dúvidas de que a distância criada pelo tempo confere maior visibilidade ao “significado” dos acontecimentos históricos ou ao nível de graduação das obras de arte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Mas a “filosofia prática” significa algo mais que um simples modelo metodológico para as ciências “hermenêuticas”. Torna-se também seu fundamento real. A peculiaridade metodológica da filosofia prática não passa da consequência natural extraída da “racionalidade prática” elaborada por Aristóteles em sua especificidade conceitual. Não é possível compreender sua estrutura a partir do conceito de ciência moderna. Mesmo a fluidificação dialética que Hegel deu aos conceitos tradicionais, e que renovou muitas verdades da “filosofia prática”, corre o risco de induzir a um novo dogmatismo velado da reflexão. O conceito de reflexão subjacente na crítica da ideologia implica com efeito um conceito abstrato de discurso livre que perde de vista as verdadeiras condições da práxis humana. Eu tive que recusar essa ideia como uma extrapolação ilegítima da situação terapêutica da psicanálise. No terreno da razão prática, não há analogia para o analista “consciente” que dirige a produção reflexiva do analisando. Na questão da reflexão, a distinção de Brentano, inspirada em Aristóteles, entre interioridade reflexiva e reflexão objetivante, me parece superior ao legado do idealismo alemão. A meu ver, isso se aplica também ao postulado da reflexão transcendental que Apel e outros aplicam à hermenêutica. Isso aparece perfeitamente documentado no difundido volume Hermeneutik und Ideologiekritik (Suhrkamp). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Tampouco seria um trabalho puramente “histórico”. Porque a intenção não seria de completar com uma história da recordação do ser a história de seu progressivo esquecimento esboçada por Heidegger. Isso não teria nenhum sentido. É, sem dúvida, correto falarmos de um crescente esquecimento do ser. A grande contribuição de Heidegger consistiu, a meu ver, em ter-nos despertado de um esquecimento total ensinando-nos a perguntar seriamente: o que é isso o “ser”? Lembro como Heidegger encerrou um debate num seminário de 1924 sobre De nominutn analogia, de Caetano, com a pergunta: que é isso o ser? Também me lembro de como sacudimos a cabeça por causa do absurdo da pergunta. A essas alturas, todos recuperamos de certo modo a pergunta pelo ser. Mesmo os defensores da metafísica tradicional, que pretendem ser críticos de Heidegger, já não estão mais presos à obviedade que aceitava de maneira inquestionada a concepção do ser fundamentada na tradição metafísica. Eles defendem a resposta clássica como uma resposta, e isso significa que recuperaram a pergunta como pergunta. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.