No entanto, examinando-o mais de perto, reconhecemos que também as opiniões não podem ser entendidas de maneira arbitrária. Da mesma forma que não é possível manter muito tempo uma compreensão incorreta de um hábito linguístico, sem que se destrua o sentido do todo, tampouco se podem manter, às cegas, as próprias opiniões prévias sobre as coisas, quando se compreende a opinião de outro. Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sempre que se ponha a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas. Claro que as opiniões representam uma infinidade de possibilidades mutáveis (em comparação com a univocidade de uma linguagem ou de um vocabulário), mas dentro dessa multiplicidade do opinável, isto é, daquilo em que um leitor pode encontrar sentido e, enquanto tal pode esperar, nem tudo é possível, e quem não ouve direito o que o outro está dizendo, realmente, acabará por não conseguir integrar o mal-entendido em suas próprias e variadas expectativas de sentido. Por isso também aqui existe um padrão. A tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na coisa, e já se encontra sempre determinada por este. Com isso o empreendimento hermenêutico ganha um solo firme sob seus pés. Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto — até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com [274] relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Todo presente finito tem seus limites. Nós determinamos o conceito da situação justamente pelo fato de que representa uma posição que limita as possibilidades de ver. Ao conceito da situação pertence essencialmente, então, o conceito do horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e [308] distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Salta à vista a escassa clareza que tem, aqui, a relação entre experimentar, reter e a unidade da experiência que produziriam ambas as coisas. Evidentemente Aristóteles se apoia aqui num raciocínio que em seu tempo já possuía uma certa [357] cunhagem clássica. O testemunho mais antigo que nos chegou dele é de Anaxágoras, de quem Plutarco nos transmitiu, que o que caracteriza o homem face aos animais se determinaria por empeiria, mneme, sophia e techne. Um nexo parecido surge quando Esquilo destaca, no Prometeu, o papel da mneme, e ainda que sintamos falta de uma ênfase correspondente no mito platônico de Protágoras, Platão mostra, tal como Aristóteles, que isso já é, naquele momento, uma teoria firmada. A permanência de percepções importantes (mone) é claramente o motivo vinculante, através do qual o saber do geral pode elevar-se acima da experiência do individual. Nisso, encontram-se próximos do homem todos os animais que possuem mneme nesse sentido, ou seja, que têm sentido para o passado e o tempo. Precisaria de uma investigação própria para descobrir até que ponto já poderia ser operante o nexo entre retenção (mneme) e linguagem, nessa teoria primitiva da experiência, cujas pegadas estamos rastreando. Pois é claro que a aprendizagem de nomes e da fala acompanha essa aquisição de conceitos gerais, e Temístio ilustra a análise aristotélica da indução diretamente com o exemplo do aprender a falar e da formação das palavras. Seja como for, o que importa é reter que a generalidade da experiência, de que fala Aristóteles, não é a generalidade do conceito nem da ciência. (O círculo de problemas a que nos remete essa teoria poderia ser a da ideia sofistica da formação, pois em todos os nossos testemunhos se detecta uma conexão entre a caracterização do homem, de que se trata, e a organização geral da natureza. E é precisamente esse motivo da confrontação do homem e do animal o que constitui o ponto de partida natural do ideal da formação sofística.) A experiência somente se dá de maneira atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la numa generalidade precedente. Nisso justamente se estriba a abertura básica da experiência para qualquer nova experiência — isso não somente no sentido geral da correção dos erros, mas ao fato de que a experiência está essencialmente dependente de constante confirmação, e, quando esta falta, ela se converte necessariamente em outra diferente (ubi reperitur instantia contradictoria). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A imagem é importante porque ilustra o momento decisivo da essência da experiência. Como toda imagem, ela é manca, mas esse mancar de uma imagem não é uma deficiência, mas a outra face do desempenho abstrativo que leva a cabo. A imagem aristotélica do exército em fuga manca, na medida em que faz uma pressuposição distorcida. Parte de que antes da fuga deve ter havido um estado de repouso. E para o que aqui tem de ganhar imagem, o estabelecer-se do saber, isto não é admissível. Entretanto, precisamente através dessa deficiência, torna-se claro o que é que a metáfora em questão tinha de ilustrar: que a experiência tem lugar como um acontecer de que ninguém é dono, que não está determinada pelo peso próprio de uma ou outra observação, mas que nela tudo se ordena de uma maneira impenetrável. A imagem mantém firme essa peculiar abertura, na qual se adquire a experiência, nisto ou naquilo, de repente, de improviso, e, no entanto, não sem preparação, e vale até que apareça outra experiência nova, determinante não somente para isto ou para aquilo, mas para tudo que seja do mesmo tipo. Esta é a generalidade da experiência, através da qual surge, segundo Aristóteles, a verdadeira generalidade do conceito e a possibilidade da ciência. A imagem ilustra, pois, como a generalidade sem princípios da experiência (o enfileiramento das mesmas) conduz, todavia, à unidade da (ctpxn) (ctpxn. = “comando” e “princípio”). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Evidentemente que para Hegel o caminho da experiência da consciência tem que conduzir necessariamente a um saber-se a si mesmo que já não tem nada diferente nem estranho fora de si. Para ele a consumação da experiência é a “ciência”, a certeza de si mesmo no saber. O padrão a partir do qual pensa a experiência é, portanto, o do saber-se. Por isso a dialética da experiência tem de culminar na superação de toda experiência, que se alcança no saber absoluto, isto é, na consumada identidade de consciência e objeto. A partir daí poderemos compreender por que não faz justiça à consciência hermenêutica a aplicação que Hegel faz à história, quando considera que esta é concebida na autoconsciência absoluta da filosofia. A essência da experiência é pensada aqui, desde o princípio, a partir de algo no qual a experiência já está superada. Pois a própria experiência jamais pode ser ciência. Está em uma oposição insuperável com o saber e com aquele ensinamento que flui de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém sempre a referência a novas experiências. Nesse sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências. A consumação de sua experiência, o ser pleno daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que já conhece tudo, e que de tudo sabe mais que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e aprendido graças a tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e delas aprender. A dialética da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Experiência é, pois, experiência da finitude humana. É experimentado, no autêntico sentido da palavra, aquele que é consciente desta limitação, aquele que sabe que não é senhor do tempo nem do futuro. O homem experimentado, propriamente, conhece os limites de toda previsão e a insegurança de todo plano. Nele consuma-se o valor de verdade da experiência. Se em cada fase do processo da experiência adquire uma nova abertura para novas experiências, isto valerá tanto mais para a ideia de uma experiência consumada. Nela a experiência não chega ao seu fim, nem se alcança uma forma suprema de saber (Hegel), mas nela é onde, na verdade, a experiência está presente por inteiro e no sentido mais autêntico. Nela chega ao limite absoluto todo dogmatismo nascido da volátil possessão pelo desejo do ânimo humano. A experiência ensina a reconhecer o que é real. Conhecer o que é vem a ser, pois, o autêntico resultado de toda experiência e de todo querer saber em geral. Mas o que não é, neste caso, isto ou aquilo, “mas o que já não pode ser revogado” (Ranke). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Este conhecimento e reconhecimento é o que perfaz a terceira e mais elevada maneira da experiência hermenêutica: a abertura à tradição que possui a consciência da história efeitual. Também ela tem um autêntico correlato na experiência do tu. No comportamento dos homens entre si o que importa é, como já vimos, experimentar o tu realmente como um tu, isto é, não passar por alto sua pretensão e deixar-se falar algo por ele. A isso pertence a abertura. Mas, por fim, esta abertura não se dá só para aquele por quem queremos nos deixar falar; antes, aquele que em geral se deixa dizer algo está aberto de maneira fundamental. Se não existe esta mútua abertura, tampouco existe verdadeiro vínculo humano. Pertencer-se uns aos outros quer dizer sempre e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros. Quando dois se compreendem, isto não quer dizer que um “compreenda” o outro, isto é, que o olhe de cima para baixo. E igualmente, “escutar o outro” não significa simplesmente realizar às cegas o que o outro quer. Ao que é assim se chama submisso. A abertura para o outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que o vá fazer valer contra mim. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Eis aqui o correlato da experiência hermenêutica. Eu tenho de deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está realmente aberta, mas que, antes, quando lê seus textos “historicamente”, já nivelou prévia e fundamentalmente toda a tradição, e os padrões de seu próprio saber não poderão ser nunca postos em questão por ela. Recordo neste ponto a forma ingênua de comparação, na qual costuma mover-se quase sempre o comportamento histórico. O fragmento 25 do Lyceum de Friedrich Schlegel diz: “Os dois postulados fundamentais da chamada crítica histórica são o postulado da medianidade e o axioma da habitualidade. Postulado da medianidade: tudo o que é verdadeiramente grande, bom e belo é inverossímil, pois é extraordinário e no mínimo suspeitoso. Axioma da habitualidade: as coisas têm de ter sido sempre tal como são entre nós e ao nosso redor, porque é tudo tão natural”. — Pelo contrário, a consciência da história efeitual vai mais além da ingenuidade deste comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão da verdade que lhe vem ao encontro nela. A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição à experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. É isto que caracteriza a consciência [368] da história efeitual, como poderemos pronunciar mais detalhadamente a partir do conceito da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com isto prelineia-se o caminho da investigação que segue: deveremos indagar pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, recordando o significado que convinha ao conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que em toda experiência encontra-se pressuposta a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos primeiramente pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta se é assim ou de outro modo. A abertura que está na essência da experiência é, logicamente falando, esta abertura do “assim ou de outro modo”. Tem a estrutura da pergunta. E tal como a negatividade dialética da experiência encontrava sua perfeição na ideia de uma experiência consumada, na qual nos fazíamos inteiramente conscientes de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não se sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. Teremos, pois, que nos aprofundar na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Esta é a razão pela qual a dialética realiza nos moldes de perguntas e respostas, ou melhor, que todo saber passa pela pergunta. Perguntar quer dizer colocar no aberto. A abertura do perguntado consiste em que não está fixada a resposta. O perguntado tem de pairar no ar frente a qualquer sentença constatadora e decisória. O sentido do perguntar consiste em colocar em aberto o perguntado em sua questionabilidade. Ele tem de ser colocado em suspenso de maneira que se equilibrem o pró e o contra. O sentido de qualquer pergunta só se realiza na passagem por essa suspensão, na qual se converte em uma pergunta aberta. Toda verdadeira pergunta requer essa abertura, e quando falta, ela é, no fundo, uma pergunta aparente que não tem o sentido autêntico da pergunta. Algo disso nós conhecemos, por exemplo, na pergunta pedagógica, cuja especial dificuldade e paradoxo consiste em que são uma pergunta sem que haja alguém que realmente pergunte. O mesmo acontece na pergunta retórica, na qual não somente não há quem pergunte, mas que nem sequer há algo realmente perguntado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Entretanto, a abertura da pergunta não é limitada. Nela está contida uma certa circunscrição, através do horizonte da pergunta. Uma pergunta sem horizonte acaba no vazio. Ela só se torna uma pergunta quando a fluida indeterminação da direção a que aponta é colocada na determinação de um “assim ou assim”: dito de outra maneira, a pergunta tem de ser colocada. A colocação de uma pergunta pressupõe abertura, mas também uma limitação. Implica uma fixação expressa dos pressupostos que estão de pé, a partir dos quais mostra-se o questionável, aquilo que permanece ainda aberto. Por isso, também a colocação de uma pergunta pode ser correta ou falsa, segundo chegue ou não ao terreno do verdadeiramente aberto. Dizemos que a colocação de uma pergunta é falsa quando não alcança o aberto, mas o desloca pela manutenção de falsos pressupostos. Enquanto pergunta, ostenta abertura e decisibilidade. Mas quando o que se pergunta não se destaca — ou ao menos não corretamente — face aos pressupostos que se mantêm de pé, então não se chega realmente ao aberto e, por conseguinte, não se pode decidir nada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas como ocorre sempre em Platão, também aqui a cegueira de Sócrates face ao que ele refuta tem sua razão de ser. O próprio Crátilo não vê com toda a clareza que o significado das palavras não é idêntico às coisas a que se refere, como tampouco, e esta é a base da tácita superioridade do Sócrates platônico, que o logos, o dizer e falar, assim como a abertura das coisas que têm lugar neles, é algo diferente do que se as palavras contivessem uma intenção de significado, e que é aqui onde se estriba a verdadeira possibilidade da linguagem de comunicar o concreto e verdadeiro. O uso incorreto da linguagem, pelos sofistas, procede justamente da ignorância desta genuína possibilidade de verdade da fala (e à qual pertence, como possibilidade contrária, a falsidade essencial, pseudos). Quando o logos é entendido como representação de uma coisa (deloma), ou seja, como a sua abertura, sem distinguir essencialmente essa função de verdade da fala, com respeito ao caráter significativo das palavras, abre-se uma possibilidade de confissão que é própria da linguagem. Pode-se chegar a crer que a coisa é possuída na palavra. Atendo-se à palavra, estaríamos pois no caminho legítimo do conhecimento. Só que então vale também o inverso, onde há conhecimento, a verdade da fala tem de ser construída com a verdade das palavras, como seus elementos. E assim como se pressupõe a “correctura” dessas palavras, ou seja, sua adequação natural às coisas nomeadas por elas, estará permitido também interpretar os elementos dessas palavras, as letras, na perspectiva de sua função de ser cópia das coisas. Essa é a consequência a que Sócrates obriga [416] o seu interlocutor a chegar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se se pensa o espírito humano dessa maneira, referido como uma cópia do modelo divino, pode-se então admitir a margem de variação das línguas humanas. Tal como no começo, na discussão sobre a investigação analógica, na academia platônica, também ao final da discussão medieval sobre os universais se pensa uma verdadeira proximidade entre palavra e conceito. Entretanto, as consequências relativistas que trariam o pensamento moderno para as concepções do mundo, a partir da variação das línguas, é algo muito distante dessa concepção. Em meio a toda diferença, conserva-se a coincidência, e é esta que interessa ao platônico cristão. O essencial para ele é a referência à coisa, que mantém toda língua humana, e não tanto a vinculação do conhecimento humano da coisa à linguagem. Esta representa somente uma abertura prismática em que aparece a verdade una. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Por mais estreita que seja a relação entre a ideia do belo e a ideia do bom em Platão, este não deixa de ter presente uma diferença entre ambos, diferença que contém um característico predomínio do belo. Já vimos que o caráter inacessível do bom no belo, isto é, no caráter de medida do ente e na abertura que lhe é própria (aletheia), encontra uma correspondência na medida em que ainda lhe convém uma última exaltação. Mas Platão pode afirmar paralelamente que na tentativa de apreender o bom em si mesmo, este se refugia no belo. Assim, o belo se distingue do bem, que é o completamente inapreensível, porque se apreende mais facilmente. Ele tem por essência a característica de aparecer. Na busca do bem, o que se mostra é o belo. Este representa de imediato uma caracterização daquele para a alma humana. O que se mostra na sua forma mais [485] completa atrai para si o desejo amoroso. O belo atrai imediatamente, enquanto que as imagens diretrizes da virtude humana só podem ser reconhecidas obscuramente, no meio confuso dos fenômenos, porque elas não possuem luz própria e isto faz que sucumbamos, muitas vezes, às imitações impuras e às formas somente aparentes da virtude. Isso não ocorre com o belo. O belo tem sua própria luminosidade, e isso faz que sejamos desviados por cópias desfiguradas. Pois “somente à beleza foi dado ser o mais reluzente (ekphanestaton) e amável”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A “reluzir” não é, portanto, somente uma das propriedades do que é belo, mas perfaz a sua verdadeira essência. A característica do belo, de atrair imediatamente o desejo da alma humana, está fundamentada em seu próprio modo de ser. É o caráter de medida do ente, que não o deixa ser somente o que é, mas que o faz aparecer também como um todo medido em si mesmo e harmonioso. Esta é a abertura (aletheia), de que Platão fala no Filebo e que faz parte da essência do belo. A beleza não é somente simetria, mas é a própria aparência que repousa sobre ela. Ela tem o modo do “aparecer”. Mas aparecer significa aparecer em algo, e, assim, alcançar o aparecimento, por si mesmo, naquilo que recebe sua aparência. A beleza tem o modo de ser da luz. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A questão então é: como o jogo da linguagem, que é o jogo mundano de cada um, se conjuga com o jogo da arte. Como um se relaciona com o outro? É claro que em ambos os casos o caráter próprio da linguagem está incluído na dimensão hermenêutica. Creio ter mostrado de maneira convincente que a compreensão do falado deve ser pensada a partir da situação de diálogo, e isto significa em última instância, a partir da dialética de pergunta e resposta, na qual nos entendemos e pela qual articulamos o mundo comum. Ultrapassei a lógica de pergunta e resposta, como já havia sido esboçada por Collingwood, isso porque a orientação de mundo não se dá apenas no fato de desenvolver-se, entre os dialogantes, pergunta e resposta, mas por proceder das próprias coisas de que se fala. A coisa (Sache) “suscita perguntas”. Por isso, o processo de pergunta e resposta desenrola-se também entre o texto e seu intérprete. A escritura como tal não modifica em nada a situação do problema. Em questão está a coisa de que se fala, seu ser-assim-ou-assado. Meios de comunicação, como a carta, por exemplo, são a continuação de um diálogo, através de outros meios. Desta forma, também um livro, que aguarda pela resposta do leitor, é a abertura de um diálogo dessa natureza. Ali, algo vem à fala. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
1. Em que consiste propriamente o científico nas ciências do espírito? Pode-se empregar nelas, sem mais, o conceito de investigação? Afinal o que se entende por investigação — o rastreamento do novo, do ainda desconhecido, a abertura de um caminho seguro, passível de ser controlado por todos, que nos leve a essas novas verdades — tudo isso parece vir aqui em segundo plano. A fecundidade do conhecimento das ciências do espírito parece mais próxima à intuição do artista do que ao espírito metodológico da investigação. O mesmo deve ser dito, certamente, de todo e qualquer desempenho genial num âmbito de investigação. No trabalho metodológico da investigação da natureza surgem sempre novos conhecimentos, e enquanto tal a própria ciência repousa na utilização dos métodos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Mas será isso tudo? Se a linguagem também fixa preconceitos, significará que neles só não-verdade aparece? A linguagem não é somente isto. É a interpretação prévia pluriabrangente do mundo e por isso insubstituível. Antes de todo pensar crítico, filosófico-interventivo, o mundo já sempre se nos apresenta numa interpretação feita pela linguagem. O mundo se articula para nós no aprendizado de uma língua, na assimilação de nossa língua materna. Isso é muito mais uma primeira abertura do que um engano. Inclui, por certo, que o processo da formação conceptual, iniciado no âmbito dessa interpretação feita pela linguagem, nunca é um primeiro começo. Não equivale a forjar uma nova ferramenta a partir de um material apropriado, uma vez que se trata de um continuar a pensar na língua que falamos e na interpretação do mundo nele contida. Nunca se trata de um começar do zero. Sem dúvida, também a linguagem, pela qual se apresenta a interpretação do mundo, é um produto e resultado da experiência. “Experiência”, porém, não tem [80] aqui aquele sentido dogmático do dado imediato, cujo caráter de preconceito ontológico-metafísico foi exposto suficientemente pelo movimento filosófico de nosso século e possivelmente pelas suas duas estâncias, tanto no âmbito fenomenológico-hermenêutico quanto naquele de tradição nominalista. Experiência não é primeiramente sensação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Aqui vemo-nos remetidos diretamente à Antiguidade e à relação específica entre mito e logos, que se encontra no início do pensamento grego. O esquema corrente do Iluminismo, segundo o qual o processo de desencantamento do mundo leva necessariamente do mito para o logos, parece-me um preconceito moderno. Tomando por base esse esquema, torna-se incompreensível, p. ex., como a filosofia ática pôde se opor às tendências do Iluminismo grego e estabelecer uma reconciliação secular entre a tradição religiosa e o pensamento filosófico. Devemos a Gerhard Kruger o magistral esclarecimento das pressuposições religiosas do filosofar grego e sobretudo platônico. A história de mito e logos nos primórdios do mundo grego tem uma estrutura bem mais complexa do que faz supor o esquema do Iluminismo. Frente a essa realidade podemos compreender a grande desconfiança que alimentava a investigação científica da Antiguidade frente ao valor religioso das fontes do mito e a preferência que demonstra pelas formas estáveis da tradição no culto. É que a capacidade de transformação inerente ao mito, sua abertura para sempre novas interpretações por parte dos poetas, acaba obrigando a reconhecer que se trata de uma falsa questão perguntar em que sentido esse mito antigo era objeto de “crença” e se, uma vez tendo entrado no jogo poético, faz sentido se acreditar no mito. Na verdade, o mito está tão intimamente aparentado com a consciência filosófica, que mesmo a explicação filosófica do mito na linguagem do conceito não acrescenta nada de essencialmente novo àquela alternância viva entre descobrimento (entdeckung) e velamento (verhullung), entre temor reverente e liberdade de espírito, que acompanha toda a história do mito grego. Devemos ter isso em mente se quisermos compreender corretamente o conceito de mito implícito no programa de desmitologização de Bultmann. O que Bultmann chama de imagem mítica do mundo e seu contraste com a imagem científica de mundo, que se nos apresenta como verdadeira, parece não ter o caráter definitivo que se lhe atribuiu no debate sobre esse programa. No fundo, a relação de um teólogo cristão com a tradição bíblica não é muito diferente da relação de um grego com seus mitos. A formulação casual e em certo sentido ocasional do conceito de desmitologização proposta por Bultmann, na verdade a suma de toda sua teologia exegética, pode ter tudo, menos um sentido iluminista. O que o aluno de ciência histórica da Bíblia procura na tradição bíblica, antes de qualquer coisa é o que se afirma contra todo Iluminismo histórico, ou seja, o que constitui o verdadeiro suporte do anúncio, do querigma, o que representa o verdadeiro chamado da fé. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
Cabe ainda questionar a função da filosofia na situação descrita. Terá a filosofia ainda alguma função numa cultura científica que alcançou a perfeição? Para respondermos a essa pergunta é preciso discutir certas tendências amplamente difundidas na concepção e autoconcepção da filosofia. Seria um diletantismo científico querer exigir do filósofo uma espécie de superciência que fornecesse um quadro sintetizador da especialização das ciências particulares. Uma tarefa dessa natureza seria apenas um derivativo dos tempos clássicos da filosofia, quando esta ainda representava toda a ciência. Esperar que a filosofia seja o órgão geral de uma lógica e de uma metodologia parece ser não menos diletante. É como se as ciências particulares pudessem ganhar alguma coisa com isso. Na verdade, elas sempre adotarão, ao seu modo e já de há muito, métodos e sistemas de signos das outras ciências, sempre que os julgarem úteis. Para isso não é necessária nenhuma metodologia filosófica das ciências. Essa metodologia é certamente uma tarefa legítima da filosofia. Mas a pergunta sobre a função que a filosofia desempenha hoje na conscientização universal não pode ser por ela respondida. A conscientização do real implica necessariamente também a conscientização do que a ciência significa, embora também inclua a atitude de abertura e atenção de que nem tudo é ou pode ser objeto da ciência. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
A mecânica construída por Galileu é, na realidade, a mãe de nossa civilização moderna. Nela surgiu um modo de conhecimento bem determinado, que provocou a tensão entre nosso conhecimento de mundo não metodológico, o qual abrange toda a extensão de [187] nossa experiência vital, e a produção cognitiva da ciência. A grande contribuição filosófica de Kant foi ter encontrado uma solução conceitual convincente para essa problemática tensão moderna. Pois a filosofia do século XVII e XVIII havia se consumido inutilmente na tarefa de conciliar o grande saber universal da tradição metafísica com a nova ciência — um intento que não conseguiu alcançar um verdadeiro equilíbrio entre a ciência racional, baseada em conceitos, e a ciência experimental. Kant encontrou a solução. É verdade que sua limitação crítica da razão — assumindo a crítica inglesa à metafísica — e a restrição de seu conhecimento conceitual ao dado na experiência significaram a destruição da metafísica como ciência dogmática da razão. Mas o “esmagador universal”, como chamavam os contemporâneos ao meigo professor de Konigsberg, foi também o grande fundador da filosofia moral sobre o princípio radical da autonomia da razão prática. Ao reconhecer a liberdade como um fato singular da razão, isto é, ao mostrar que sem o postulado da liberdade não se podem pensar nem a razão prática do homem e nem a sua existência ética e social do homem, Kant inaugurou um novo horizonte frente a todas as tendências deterministas procedentes da ciência moderna da natureza. Esse novo horizonte conferiu uma nova legitimidade ao pensamento mediante o conceito de liberdade. Na verdade, o impulso filosófico-moral de Kant, sobretudo na mediação feita por Fichte, serve de base para os grandes pioneiros da “cosmovisão histórica”, como Wilhelm von Humboldt, Ranke e sobretudo Droysen. Também Hegel e todos que foram influenciados por Kant, positiva ou negativamente, são marcados do princípio ao fim pelo conceito de liberdade. Conservam assim uma abertura para a grandeza e a totalidade da filosofia, frente ao mero metodologismo da ciência histórica. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
O processo da tradução engloba no fundo todo o mistério da compreensão humana do mundo e da comunicação social. Traduzir representa uma unidade indissolúvel de antecipação implícita, de apreensão antecipada do sentido como um todo, e a fixação explícita do que assim se antecipou. Todo discurso possui algo dessa antecipação e dessa fixação. Heinrich von Kleist escreveu um artigo muito bonito intitulado “Über die allmähliche Verfertigung der Gedanken beim Reden” (“Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no discurso”). Se dependesse de mim, todo professor deveria assinar um certificado de que lera esse artigo, antes de examinar um aluno. O artigo descreve a experiência que Heinrich von Kleist fez no exame de licenciatura em Berlim. Também ali os exames eram abertos ao público, embora frequentados apenas pelos futuros examinandos (hoje a situação não é muito diferente). H. Kleist conta como transcorre um exame; como o professor “dispara” uma pergunta como se sacasse uma pistola e o candidato deve “disparar” a resposta como se atirasse com a sua pistola. Ora, todos sabemos que uma pergunta da qual todos conhecem a resposta só pode ser respondida por imbecis. Uma frase deve ser formulada, e isso implica criar a abertura para diversas possibilidades de resposta. O único resultado do exame que pode ter algum valor é que a resposta dada tenha sido razoável. Uma resposta “correta” pode ser dada tanto pelo computador quanto por um papagaio com muito mais rapidez que qualquer outro. Kleist encontrou uma frase muito bonita para expressar essa experiência: o volante dos pensamentos deve ser acionado. No falar, uma palavra puxa a outra e com isso expande-se nosso pensamento. Uma verdadeira palavra é [206] aquela que se oferece por si ao falar a partir de vocabulários e usos de linguagem pré-esquematizados. Pronuncia-se a palavra e talvez ela conduza aquele que a pronuncia ao alcance de consequências e objetivos que ele mesmo jamais havia previsto. O pano de fundo para a universalidade do acesso ao mundo pela linguagem é que nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infinito, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamente. A palavra “recitar” deve tornar consciente de que não se trata de um dizer. Recitar é o contrário de dizer. O recitar já sabe o que vem em seguida, não se expondo assim às possíveis vantagens que surgem do improviso. Todos já fizemos a experiência de assistir a péssimos atores que recitam, de tal modo que ao lerem a primeira palavra temos a impressão de que já está pensando na próxima. Na verdade, isso não é dizer. Só há dizer quando se assume o risco de propor alguma coisa e seguir suas implicações. Diria, em suma, que a real incompreensão a respeito da questão da estrutura da linguagem à base de nossa compreensão é a incompreensão sobre o que é linguagem, quando esta é definida como um reservatório de palavras e frases, de conceitos, modos de ver e opiniões. A linguagem é, na verdade, a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade de seguir falando e conversando infinitamente, que nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer. A linguagem não é um convencionalismo reelaborado, não é o peso de esquemas prévios que nos recobrem e sim a força geradora e criativa de sempre de novo conferir fluidez a esse todo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
Vamos tentar esclarecer isso com um exemplo contrário, que talvez também seja responsável pela diminuição do diálogo. Refiro-me à conversa telefônica. Tornou-se tão comum mantermos longas conversas por telefone que quase já não nos damos conta do empobrecimento comunicativo que se dá na convivência com as pessoas que se encontram ao nosso lado, restringindo-se ao elemento acústico. Mas o problema do diálogo não se faz sentir naqueles casos em que a convivência estreita de duas pessoas vai tecendo o fio da conversação. A questão da incapacidade para o diálogo refere-se, antes, à possibilidade de alguém abrir-se para o outro e encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conversa possa fluir livremente. Aqui a experiência da conversa telefônica serve de documentação como o negativo de uma foto. Ao telefone quase não é possível ouvir a disposição de abertura do outro para entrar em diálogo. Também não é possível a experiência da aproximação mútua, onde cada um vai adentrando, passo a passo, o diálogo, chegando a ficar de tal modo imbuídos do diálogo que a comunhão surgida já não pode ser rompida. Caracterizei a conversa telefônica como o negativo de uma foto, pois a aproximação artificial criada pelo fio telefônico quebra imperceptivelmente justamente a esfera do tato e da escuta, em que as pessoas podem aproximar-se. Toda chamada telefônica traz consigo algo da brutalidade do molestar e ser molestado, mesmo quando se assegura que a chamada foi motivo de alegria. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.
O diálogo terapêutico torna-se de grande interesse instrutivo para nosso tema, sobretudo aquele exercido na práxis psicanalítica. Porque aqui a incapacidade para o diálogo é justamente o ponto a partir do qual a recuperação do diálogo se apresenta como o processo da própria cura. O que constitui a perturbação patológica, que acaba tirando o poder de ação do paciente, é o fato de os delírios de imaginação terem interrompido a comunicação com o mundo circundante. O doente está tão imbuído dessas ideias, alimenta de tal modo suas ideias patológicas, que já não consegue ouvir a linguagem dos outros. Mas é justo o fato dele já não suportar essa cisão da comunidade natural do diálogo com os homens que vai lhe dar consciência de sua doença e levá-lo por fim a procurar o médico. Com isso, descrevemos uma situação inicial que possui uma significação especial para nosso tema. O extremo é sempre instrutivo para os casos intermediários. O que há de especial no diálogo da cura psicanalítica é que a incapacidade para o diálogo, enquanto o que constitui a verdadeira enfermidade, só pode começar a ser curada pelo diálogo. O que aprendemos desse processo não pode simplesmente ser transferido para outro âmbito. Por um lado, o analista não é simplesmente um interlocutor, mas é também um especialista que, frente à resistência do paciente, força a abertura das regiões-tabu do inconsciente. Ressaltamos que o próprio diálogo é resultado de um trabalho comum de esclarecimento e não a simples aplicação de um saber por parte do médico. Mas há também uma outra condição específica, relacionada a essa primeira, que limita a transposição do diálogo terapêutico da psicanálise para a vida dialogai da práxis social. É que na psicanálise pressupõe-se que o paciente saiba de sua doença, isto é, a incapacidade para o diálogo deve ser patente e declarada. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.
Isso tem consequências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e [225] nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
Com isso, expresso-me com a linguagem do próprio Hegel. Isso foi objeto de observações críticas, sobretudo por parte de Bormann, que classifica como ilegítimo tanto meu uso dos conceitos de Kierkegaard quanto os de Nicolau de Cusa e especialmente os de Hegel, porque eu estaria separando de seu contexto sistemático os recursos da linguagem conceitual que utilizo. Essa crítica está bem fundamentada e é muito óbvia sobretudo no caso de Hegel, visto que meu confronto com Hegel em Verdade e método foi inegavelmente insatisfatório. Mesmo nesse caso gostaria de defender a vantagem descritiva de um pensamento em diálogo com os clássicos. Parece-me que meu ponto crítico frente a Hegel se mostra objetivamente quando emprego a descrição que Hegel faz do “conceito de experiência dialética da consciência” a um sentido mais abrangente de experiência. A experiência perfeita não é perfeição do saber, mas abertura perfeita para uma nova experiência. Essa é a verdade que a reflexão hermenêutica reivindica frente ao conceito do saber absoluto. Nesse caso ela não é ambígua. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Estava predeterminado — digamos assim — que Heidegger, pelo caminho de suas prospecções na rocha primitiva das palavras, tropeçaria com a figura final de Nietzsche, cujo extremismo havia ousado o caminho da autodestruição de toda metafísica, de toda verdade e de todo conhecimento da verdade. De certo, a arte conceitual de Nietzsche não podia satisfazê-lo, embora aplaudisse seu desencantamento da dialética — “de Hegel e dos outros Schleiermachers” — e mesmo que a visão da filosofia na época trágica dos gregos pudesse confirmá-lo pela ideia de ver na filosofia algo mais do que essa metafísica de um mundo verdadeiro por trás do mundo aparente. Tudo isso fez com que por um breve espaço de tempo Nietzsche se tornasse o companheiro de viagem de Heidegger. “Tantos séculos… e nenhum novo deus…” foi o lema de abertura de seu Nietzsche. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
É por isso que tanto Derrida quanto Heidegger aprofundam-se na misteriosa variedade existente na palavra e na multiplicidade de seus significados, no potencial indeterminado de suas diferenciações semânticas. Quando, pelo questionamento, Heidegger remonta da frase e do enunciado para a abertura do ser que possibilita as palavras e as frases, ultrapassa de certo modo toda dimensão das frases formadas de palavras, dos contrastes e contradições. Numa linha semelhante, Derrida parece seguir as pegadas, que só dão na sua leitura. Sobretudo a partir da análise do tempo de Aristóteles, tentou inferir que “o tempo” aparece diante do ser como difierance. Mas como lê Heidegger a partir de Husserl, lança mão da conceitualidade husserliana que se deixa sentir em Ser e tempo e em sua autodescrição transcendental, como prova do logocentrismo de Heidegger; e quando eu considero como a verdadeira realidade da linguagem não só o diálogo mas também a poesia e sua manifestação ao ouvido interior, Derrida o classifica “fonocentrismo”. Como se a fala ou a voz só ganhassem presença em sua realização, mesmo para a consciência reflexiva mais esforçada, e isso não fosse antes seu próprio desaparecimento. A indicação de que não estaria consciente justamente porque está “pensando” não é um [372] argumento arbitrário da reflexão, mas uma recordação do que acontece a todo aquele que fala e a todo aquele que pensa. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Decerto, o interesse do historiador é seguir e investigar, na formação do jogo da arte, os traços e as relações que o entrelaçam com sua época. Parece-me, no entanto, que Carl Schmitt menospreza a dificuldade dessa tarefa, legítima para o historiador. Ele crê poder reconhecer uma ruptura no jogo, através de cuja abertura transparece a realidade contemporânea, deixando entrever a função contemporânea da obra. Esse procedimento, porém, está cheio de ganchos metodológicos, como nos ensinou o exemplo da investigação de Platão. Mesmo que seja fundamentalmente correto desconectar os preconceitos de uma pura estética da vivência e inserir o jogo da arte e seu contexto histórico-temporal e político, parece-me errado encorajar alguém a ler o Hamlet como um romance policial. Creio que aqui não se dá uma irrupção do tempo no jogo, que seria reconhecível no jogo como uma ruptura. Para o próprio jogo não há contradição entre tempo e jogo, como admite Carl Schmitt. O jogo inclui e relaciona, ao contrário, o tempo junto com, e em seu jogo. Essa é a grande possibilidade da poesia, através da qual ela pertence a seu tempo e este a escuta. Nesse sentido geral, também o drama de Hamlet pode ser visto em sua atualidade política. Mas se, de sua leitura, deduzirmos que o poeta toma ocultamente partido a favor de Essex e Jakob, será difícil provar isso pela própria poesia. Mesmo que o poeta realmente estivesse entre os que tomam esse partido, o jogo produzido por sua poesia [380] deveria esconder de tal modo seu partidarismo, que mesmo a agudeza intelectual de Carl Schmitt fracassaria diante disso. O poeta que queira alcançar seu público deve levar em consideração que entre seu público encontra-se também o partido contrário. O que temos aqui, na verdade, é a irrupção do jogo no tempo. Ambíguo como é, o jogo só pode desencadear seu efeito imprevisível em jogando-se. Por sua própria essência, o jogo não pode ser um instrumento de fins mascarados, os quais teríamos de entrever para poder compreendê-lo de modo unívoco; enquanto jogo, permanece em uma ambiguidade insolúvel. A ocasionalidade presente nele não é uma referência preestabelecida, a única que poderia conferir significado a tudo. É, antes, a capacidade enunciativa da própria obra que consegue corresponder a cada ocasião. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II
É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua “procedência das ciências da natureza” (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arché (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as [384] fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO V
Autocompreensão tem a ver com uma decisão histórica e não com uma espécie de posse e disponibilidade de si. Bultmann sempre ressaltou esse aspecto. Por isso, seria um desvirtuamento entender o conceito de compreensão prévia, empregado por Bultmann, como um fincar pé nos preconceitos, como uma espécie de saber prévio. Na verdade, o que Bultmann desenvolveu foi um conceito puramente hermenêutico, motivado pela análise heideggeriana do círculo hermenêutico e pela estrutura prévia comum à existência humana. Refere-se à abertura do horizonte de questionamento como o único local onde pode dar-se compreensão; o que não significa que a compreensão prévia não possa ser corrigida pelo encontro com a palavra de Deus (como ocorre com toda e qualquer palavra). Ao contrário, o sentido desse conceito é tornar visível o movimento da compreensão como essa mesma correção. Deve-se atentar para o fato de que, no caso do apelo da fé, essa “correção” tem um caráter específico e que só se reveste de uma generalidade hermenêutica em função de sua estrutura formal. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
[411] Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da “consciência”, incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do “ser”, à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da “pre-sença”, tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade (“fluir” = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença. Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente [412], e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.E inevitável que a linguagem da filosofia não se mova em sistemas de enunciados cuja formalização lógica e exame crítico, baseados na dedução lógica e na univocidade, poderiam aprofundar o conhecimento filosófico. Essa linguagem jamais encontra seu objeto dado de antemão, mas ela própria deve construí-lo. Esse fato não provocará nenhuma “revolução”, nem sequer a revolução proclamada pela análise do ordinary language. Vamos ilustrar esse fato com um exemplo. Analisar com recursos lógicos as argumentações que figuram num diálogo platônico, mostrar suas incoerências, preencher suas lacunas, detectar conclusões falsas etc. pode conter um caráter esclarecedor. Mas será que desse modo aprendemos a ler Platão? Aprendemos a apropriar-nos de suas perguntas? Será que conseguimos aprender dele, em vez de confirmar nossa superioridade sobre ele? O que é dito sobre Platão é aplicável mutatis mutandis a qualquer filosofia. Parece-me que Platão definiu isso, de uma vez por todas, na Sétima Carta: os recursos do filosofar não são o próprio filosofar. O rigor lógico ainda não é tudo. Não significa que a lógica não possui sua validez evidente. Mas limitar-se ao aspecto lógico reduz o horizonte do questionamento a uma verificabilidade formal, eliminando assim a abertura ao mundo, que se produz em nossa experiência de mundo interpretada na linguagem. Essa é uma constatação hermenêutica pela qual creio coincidir de algum modo com o último Wittgenstein. Ele reanalisou os preconceitos nominalistas de seu Tractatus a fim de reconduzir toda a linguagem aos contextos da práxis de vida. De certo, o resultado dessa redução foi para ele amplamente negativo. Consistiu na exclusão de todas as perguntas indemonstráveis da metafísica e não na sua recuperação, por mais indemonstráveis que sejam, escutando-as desde a constituição de nosso ser-no-mundo que se dá na linguagem. Para esse fim, da palavra dos poetas podemos aprender muito mais do que do próprio Wittgenstein. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.