Gadamer (VM): Parmênides

Conhecemos isto sobretudo da dialética medieval, que não somente levantava os prós e os contras, e a seguir, dava a própria decisão mas que acabava colocando o conjunto dos argumentos no seu lugar. Esta forma da dialética medieval não é uma simples conseqüência do sistema docente da disputatio, mas, ao inverso, repousa sobre a conexão interna de ciência e dialética, isto é, de resposta e pergunta. Há uma famosa passagem da Metafísica aristotélica, que suscitou muitas discussões e que se explica a partir desse nexo. Aristóteles diz, lá, que a dialética é a capacidade de investigar o contrário, inclusive independentemente do quê, e (de investigar) se para coisas contrárias pode existir uma e a mesma ciência. Nesse ponto parece que uma característica geral da dialética (que corresponde perfeitamente ao que encontramos no Parmênides de Platão), [371] está ligada com um problema “lógico” muito especial, que conhecemos através da Tópica. Parece ser realmente uma pergunta muito especial, saber se é possível uma mesma ciência para coisas opostas. Procurou-se, por isso, descartar esta questão como glosa. Na verdade, o nexo entre as duas perguntas torna-se claro, logo que constatarmos a primazia da pergunta sobre a resposta, que subjaz ao conceito do saber. Saber quer dizer sempre: entrar ao mesmo tempo no contrário. Nisso consiste sua superioridade frente ao deixar-se levar pela opinião, que sabe pensar possibilidades como possibilidades. O saber é fundamentalmente dialético. Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas, mas as perguntas compreendem sempre a oposição do sim e do não, do assim e do diverso. Somente porque o saber é dialético nesse sentido abrangente, pode haver uma “dialética” que tome explicitamente como objeto a oposição do sim e do não. A pergunta aparentemente demasiado especial, pela possibilidade de uma mesma ciência para os opostos contém, portanto, objetivamente a base da possibilidade da dialética em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se a filosofia grega se obstina em não perceber essa relação ente palavra e coisa, entre falar e pensar, o motivo é que o pensamento tinha que defender-se da estreita relação entre palavra e coisa em meio à qual vive o homem falante. O domínio dessa língua, “a mais falável de todas” (Nietzsche), sobre o pensamento era tão intenso que a filosofia teve de dedicar seu [422] mais entranhado empenho à tarefa de libertar-se dele. Por isso, os filósofos gregos combateram, desde o princípio, o desvio e extravio do pensamento no “onoma” e se mantiveram, frente a isso, na idealidade que a própria linguagem realiza continuamente. Isso vale para Parmênides, que pensava a verdade da coisa partindo do logos, e vale plenamente a partir da mudança de rumo platônica na direção dos “discursos”, seguindo também pela orientação aristotélica das formas do ser nas formas da enunciação (schemata tes kategorias). Porque aqui, o logos era considerado determinado por sua orientação para o eidos, o ser próprio da linguagem só podia ser pensado como extravio, e o pensamento tinha que se esforçar em conjurá-lo e dominá-lo. A crítica da correctura dos nomes, realizada no Crátilo, representa o primeiro passo numa direção que desembocaria na moderna teoria instrumentalista da linguagem e no ideal de um sistema de signos da razão. Comprimido entre a imagem e o signo, o ser da linguagem só poderia acabar sendo nivelado em um puro ser-signo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Uma olhadela à sua pré-história, em particular à teoria da formação dos conceitos na academia platônica, nos poderá confirmá-lo. Já tínhamos visto que a exigência platônica de elevar-se acima dos nomes pressupõe, por princípio, que o cosmos das idéias é independente da linguagem. Mas, na medida em que essa elevação sobre os nomes se produz segundo as idéias e se determina como dialética, isto é, como olhar juntos para a unidade do aspecto, como extrair um comum dos fenômenos mutáveis, segue de fato a direção natural na qual a linguagem se forma a si mesma. Elevar-se sobre os nomes quer dizer meramente que a verdade da coisa não está posta no próprio nome. Não significa que o pensamento pode prescindir de usar nome e logos. Ao contrário, Platão sempre reconheceu que há necessidade dessas mediações do pensamento, mesmo que elas tenham de ser consideradas como sempre superáveis. A idéia, o verdadeiro ser da coisa, não se conhece a não ser passando por essas mediações. Mas existe um conhecimento da própria idéia, como determinada e individual? A essência das coisas não é um todo, da mesma maneira que o é a linguagem? Assim como as palavras individuais somente alcançam seus significados e sua relativa univocidade na unidade da fala, assim também o conhecimento verdadeiro da essência só pode ser alcançado no todo da estrutura relacional das idéias. Essa é a tese do Parmênides platônico. Mas isso suscita a pergunta: Para definir mesmo que seja uma única idéia, isto é, para poder destacá-la, no que é, de todo o resto, não se tem de saber já o todo? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da dialética na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A dialética, esse antagonista do logos, não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da dialética grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua dialética das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

E não somente na conversação pedagógica, mas em todo pensamento, a única coisa que deixa emergir o que há na coisa é a perseguição de sua conseqüência objetiva. A própria coisa consegue fazer-se valer, na medida em que nos entregamos por completo à força do pensar e não deixamos valer as idéias e opiniões que pareciam lógicas e naturais. Platão une a dialética eleática, que conhecemos sobretudo por Zenão, com a arte socrática da conversação, e a eleva em seu Parmênides, a uma nova etapa da reflexão. O fato de que, na conseqüência do pensamento, a coisa se inverta sob nossa mão e se converta em seu contrário, que o pensamento ganhe força “ainda que sem conhecer o ‘quê’, mas extraindo tentativamente conclusões, a [469] partir de supostos contrários”, tal é a experiência do pensamento, a que apela o conceito hegeliano do método como autodesenvolvimento do pensamento puro na direção do todo sistemático da verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

No grandioso começo do pensamento ocidental, temos a teoria do ser, apresentada por Parmênides em seu poema didático. Lega aos sucessores a questão que ainda está em aberto. O próprio Platão confessa não poder compreender a dimensão que Parmênides tem em mente com esse ser. A investigação moderna permanece controversa. Hermann Cohen pensava tratar-se da lei da identidade como a mais elevada exigência que o pensamento como tal pode fazer. A investigação histórica esbarra nesses anacronismos sistematizadores. Objeta-se com razão que o ser que se tem em mente nesse caso seria o mundo, a totalidade dos entes, pelo que os [86] jônicos perguntaram sob o título de ta panta. A questão de saber se o ser de Parmênides é o prelúdio de um conceito filosófico supremo ou um nome coletivo para o conjunto de todos os entes, não pode ser encarada como se fosse uma alternativa a que se precisa escolher. Devemos ao contrário sofrer essa carência de linguagem, que num enorme esforço de elevação do pensamento cunhou a expressão to on, o ente, esse singular abstrato. Antes falava-se dos onta, dos muitos entes. Devemos calcular os riscos desse discurso, se quisermos seguir o pensamento que aqui está em jogo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Se o que caracteriza a conceitualidade filosófica é o fato de o pensamento estar sempre na necessidade de buscar uma expressão\ realmente adequada àquilo que ele quer propriamente dizer, então toda filosofia incorre no perigo de o pensamento sempre se colocar aquém de si mesmo e sofrer uma inadequação de seus recursos conceptuais trazidos da linguagem. Isso é fácil de se ver nos exemplos acima mencionados. Zenão, o seguidor mais próximo de Parmênides, coloca a seguinte questão: Onde está propriamente o ser? Que lugar é este em que ele está? Se estiver em algo, então esse algo em que está deve, por seu turno, estar em algo outro. E certo que Zenão, tão astuto em suas perguntas, já não pôde manter o sentido filosófico da teoria do ser, e identificou o “ser” como o “todo”. Não cremos, porém, que seja correto imputar somente aos seguidores a decadência do pensamento. A carência de linguagem própria do pensamento filosófico é a carência do próprio pensador. Onde a linguagem fracassa, ele já não consegue manter com segurança a orientação de sentido de seu pensamento. Não só Zenão, mas já o próprio Parmênides fala, como se aludiu acima, do ser como se fosse uma bola bem redonda. — Assim também em [88] Aristóteles, e não apenas na sua “escola”, a função ontológica do conceito de matéria não foi pensada adequadamente e nem explicitada conceptualmente, de tal modo que a escola aristotélica já não pôde sustentar a intenção do pensamento original. Por isso, também para os intérpretes modernos, só poderá seguir sua verdadeira intenção a elucidação histórico-conceitual que se transfere igualmente para o actus do pensamento em busca de sua linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche. Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental? Heidegger extraiu as últimas conseqüências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a idéia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis, foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro, em Heráclito, em Parmênides e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da [364] mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit) e velamento (Verbergung). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse “ser” não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Mas também isso não significa que Platão possua, afinal, uma doutrina que possa ser aprendida: a “doutrina das idéias”. E, no diálogo do Parmênides, quando ele critica essa “doutrina”, não significa que ele tenha cometido um erro ali. Significa, antes, que a hipótese das “idéias” não é tanto uma “doutrina”. Designa uma orientação problemática cujas implicações a filosofia, ou dialética platônica, deveria desenvolver e debater. A dialética é a arte de conduzir uma conversa, e isso inclui a arte de conduzir essa conversa consigo mesmo e de perseguir o entendimento consigo mesmo. É a arte de pensar, que equivale à arte de indagar o significado do que se pensa e se diz. Desse modo, segue-se um caminho ou, mais exatamente, se está em um caminho. Isso porque existe algo que se pode chamar de “predisposição natural do homem para a filosofia”. Nosso pensamento não se detém no que alguém tem em mente com isso ou aquilo. O pensar remete para além de si mesmo. A obra dos diálogos platônicos expressa isso de modo característico, a saber, remete ao uno, ao ser, ao “bem” que se expressa na ordem da alma, na ordem da constituição da cidade e da estrutura cósmica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.