É evidente que essa rememoração não nos faz falta, quando se observa a história da filosofia. Já vimos como no pensamento medieval a relevância teológica do problema linguístico aponta, uma ou outra vez, para a unidade de pensar e falar e traz assim ao primeiro plano um momento que a filosofia grega clássica todavia não tinha pensado assim. O fato de que a palavra seja um processo, em que chega à sua plena expressão a unidade do intencionado — como é pensado na especulação sobre o verbo — é, face à dialética platônica do uno e do múltiplo, algo verdadeiramente novo. Para Platão o logos se movia, ele mesmo, no interior dessa dialética, e não era nada além do que o padecer a dialética das ideias. Nisso não há um verdadeiro “problema da interpretação”, na medida em que os meios da mesma, a palavra e o discurso, estão sendo constantemente superados pelo espírito que pensa. Diferentemente disso, encontramos que na especulação trinitaria o processo das pessoas divinas encerra em si o questionamento neoplatônico sobre o desenvolvimento, isto é, o surgir a partir do uno, com o que se faz justiça, pela primeira vez, ao caráter processual da palavra. Não obstante, o problema da linguagem somente poderia irromper com toda a sua força, quando a mediação escolástica de pensamento cristão e filosofia aristotélica se completasse com um novo momento, que daria uma mudança de rumo positiva à distinção entre o pensamento divino e humano, mudança que alcançaria na idade moderna a maior significação. É o comum do criacional. E, na minha opinião, é esse o conceito que caracteriza mais adequadamente a posição de Nicolau de Cusa, que nos últimos tempos está sendo estudada tão intensamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
É claro que a analogia entre os dois modos de ser criador tem seus limites, que correspondem às diferenças, antes acentuadas, entre palavra divina e humana. A palavra divina cria o mundo, mas não o faz numa sequência temporal de pensamentos criadores e de dias da criação. O espírito humano, pelo contrário, somente possui a totalidade de seus pensamentos na sequencialidade temporal. É verdade que não se trata de uma relação puramente temporal, como já vimos a propósito de Tomás de Aquino. Nicolau de Cusa também ressalta essa medida. E como a série dos números: sua geração não é na realidade um acontecer temporal, mas um movimento da razão. Nicolau de Cusa considera que é esse mesmo movimento da razão que opera, quando se extrai do sensorial a formação dos gêneros e espécies, tal como ocorrem nas palavras, e se desprendem em conceitos e palavras individuais. Também eles são entia rationes [439]. Por mais platônico-neoplatônico que soe esse discurso sobre o “desenvolvimento”, Nicolau de Cusa supera, na realidade, o esquematismo emanantista da doutrina neoplatônica da explicatio em pontos decisivos; pois, contra ela, desenvolve a doutrina cristã do verbo. A palavra não é, para ele, um ser distinto do espírito, nem uma manifestação minorada ou debilitada do mesmo. Para o filósofo cristão é o conhecimento disso o que constitui sua superioridade sobre os platônicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
O fato de que o latim medieval não dedique sua atenção a esse aspecto do problema da linguagem, apesar do significado que se empresta na Bíblia à confusão das línguas humanas, pode ser explicado sobretudo como consequência do domínio natural e evidente do latim erudito, assim como da persistência da doutrina grega do logos. Somente no Renascimento, quando os leigos ganham importância e as línguas nacionais abrem passo na formação erudita, chegam a desenvolver-se ideias fecundas sobre a relação entre aquelas e a palavra interior, ou os vocábulos “naturais”. Seja como for, temos de nos precaver de pressupor nisso diretamente o questionamento da moderna filosofia da linguagem e seu conceito instrumental desta. O significado da primeira erupção do problema linguístico no Renascimento se estriba, antes, em que nesse momento, continua sendo válida, de maneira impensada e normal, toda a herança greco-cristã. Isso torna-se muito claro em Nicolau de Cusa. Os conceitos que se subordinam às palavras mantêm, como desenvolvimento da unidade do espírito, uma referência com a palavra natural (vocabulum naturale), cujo reflexo aparece em todos eles (relucet), por mais que cada denominação individual seja arbitrária (impositio nominis fit ad beneplacitum). Podemos nos perguntar que classe de relação é esta e em que consiste essa palavra natural. No entanto, a ideia de que cada palavra de uma língua possui, em última análise, uma coincidência com as de outras línguas, na medida em que todas as línguas são desenvolvimentos da unidade única do espírito, tem um sentido metodologicamente correto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Nem mesmo Nicolau de Cusa se refere com sua palavra natural à de uma linguagem originária, anterior à confusão das línguas. Uma tal linguagem de Adão, no sentido de uma doutrina do estado originário, lhe é completamente alheia. Ao contrário, seu ponto de partida é a imprecisão fundamental de todo saber humano. Nisso consiste, reconhecidamente, sua teoria do conhecimento, na qual se cruzam motivos platônicos e nominalistas: todo conhecimento é pura conjectura e opinião (coniectura, opinio). É essa doutrina que ele aplica à linguagem. Isso lhe permite reconhecer a diversidade das línguas nacionais e a aparente arbitrariedade de seu vocabulário, sem ter que cair necessariamente numa teoria convencionalista e num conceito instrumental da linguagem. Assim como o conhecimento humano é essencialmente “impreciso”, isto é, admite um mais e um menos, o mesmo ocorre com a linguagem humana. O que, numa língua, possui sua expressão autêntica (própria vocabula) pode ter, noutra, uma expressão mais bárbara e distanciada (magis barbara et remotiora vocabula). E-xistem pois expressões mais autênticas ou menos autênticas (própria vocabula). Todas as denominações fácticas são, de um certo modo, arbitrárias, e, no entanto, têm uma relação necessária com a expressão natural (nomen naturale), que corresponde à própria coisa (forma). Toda expressão é congruente (congruum), mas nem todas são precisas (precisum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Essa teoria da linguagem pressupõe que tampouco as coisas (forma), a que se atribuem os nomes, pertencem a uma ordenação previamente dada de imagens originárias a que o conhecimento humano se aproximaria cada vez mais, mas que essa ordenação se forma na realidade a partir do que está dado nas coisas e por meio de distinções e reuniões. Nesse sentido, introduz-se no pensamento de Nicolau de Cusa uma mudança de rumo nominalista. Se os gêneros e espécies (genera et species) são, por sua vez, seres inteligíveis (entia rationes), então se pode compreender que as palavras possam concordar com a contemplação pautada na coisa a que dão expressão, ainda [442] que em línguas distintas se empreguem palavras distintas. Em tal caso não se trata somente de variações da expressão, mas de variações da contemplação pautada na coisa e da conceituação subsequente, e consequentemente de uma imprecisão essencial que não exclui que em todas elas esteja um reflexo da própria coisa (forma). Essa imprecisão essencial somente pode ser superada, evidentemente, se o espírito se eleva ao infinito. No infinito já não há, então, mais que uma única coisa (forma) e uma única palavra (vocabulum), a palavra indizível de Deus (verbum Dei), que se reflete em tudo (relucet). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se aprofundamos, assim, particularmente, algumas das fases da história do problema linguístico, isso deu-se sob a percepção de pontos de vista que estão muito distantes da moderna filosofia e da ciência da linguagem. Desde Herder e Humboldt, o pensamento moderno sobre a linguagem está dominado por um interesse muito diferente. Seu objetivo seria estudar como se desenvolve a naturalidade da linguagem humana — uma perspectiva extorquida com dificuldades do racionalismo e da ortodoxia — na amplitude de experiências da diversidade da estrutura da linguagem humana. Reconhecendo em cada língua um organismo, procura estudar em sua consideração comparativa a riqueza dos meios de que se serviu o espírito humano para exercer sua capacidade de linguagem. Um questionamento comparativo e empírico como este estaria ainda muito distante de um Nicolau de Cusa. Este se manteve fiel ao platonismo em sua ideia de que as diferenças do impreciso não contêm nenhuma verdade própria, e, por conseguinte, somente ganham algum interesse na medida em que coincidem com o “verdadeiro”. Para ele não existe um interesse pelas peculiaridades das incipientes línguas nacionais, que é o que moveria a Humboldt. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A experiência hermenêutica faz parte desse campo, porque também ela é o acontecer de uma autêntica experiência. O fato de que se evidencie algo naquilo que foi dito, sem que por isso fique assegurado, julgado e decidido em todas as possíveis direções, é algo que de fato ocorre cada vez que algo nos fala a partir da tradição. O transmitido se faz valer a si mesmo, em seu próprio direito, na medida em que é compreendido, e desloca oiorizonte que até então nos rodeava. Trata-se de uma verdadeira experiência, no sentido já mencionado. Tanto o evento do belo como o acontecer hermenêutico pressupõem fundamentalmente a finitude da existência humana. Inclusive podemos fazer a pergunta se um espírito infinito poderia experimentar o elo como nós o experimentamos. Poderia ele ver outra coisa que a beleza do todo que tem ante si? O “aparecer” do belo parece reservado à experiência humana finita. O pensamento medieval conhece um problema análogo, o de como é possível a beleza em Deus, se ele é uno e não múltiplo. Somente a doutrina de Nicolau de Cusa, da complicatio do múltiplo em Deus oferece uma solução satisfatória (cf. O Sermo de pulchritudine, citado acima). E nesse sentido nos parece inteiramente consequente que, na filosofia hegeliana do saber infinito, a arte seja uma forma da representação, que encontraria a sua suspensão e subsunção no conceito e na filosofia. Do mesmo modo, a universalidade da experiência hermenêutica não deveria ser, por princípio, acessível a um espírito infinito, que desenvolvesse, a partir de si mesmo, tudo quanto é sentido, todo noeton, e que pensasse todo o pensável na plena autocontemplação de si mesmo. O Deus aristotélico (e também o espírito hegeliano) deixou para trás de si a “filosofia”, esse movimento da existência finita. Nenhum dos deuses filosofa, diz Platão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo [12] sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a ideia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Com isso, expresso-me com a linguagem do próprio Hegel. Isso foi objeto de observações críticas, sobretudo por parte de Bormann, que classifica como ilegítimo tanto meu uso dos conceitos de Kierkegaard quanto os de Nicolau de Cusa e especialmente os de Hegel, porque eu estaria separando de seu contexto sistemático os recursos da linguagem conceitual que utilizo. Essa crítica está bem fundamentada e é muito óbvia sobretudo no caso de Hegel, visto que meu confronto com Hegel em Verdade e método foi inegavelmente insatisfatório. Mesmo nesse caso gostaria de defender a vantagem descritiva de um pensamento em diálogo com os clássicos. Parece-me que meu ponto crítico frente a Hegel se mostra objetivamente quando emprego a descrição que Hegel faz do “conceito de experiência dialética da consciência” a um sentido mais abrangente de experiência. A experiência perfeita não é perfeição do saber, mas abertura perfeita para uma nova experiência. Essa é a verdade que a reflexão hermenêutica reivindica frente ao conceito do saber absoluto. Nesse caso ela não é ambígua. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O autor finca pé num conceito de “hermenêutica construtiva” que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma “hermenêutica construtiva”? E o que seria “hermenêutica construtiva”? Tampouco a ideia da força expressiva da linguagem [298] tem algo a ver com a frase heideggeriana “a linguagem fala”. O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase “a linguagem fala” está implícito, segundo me parece, na ideia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na “psicologização” da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Heidegger não foi o primeiro a dar-se conta da alienação objetiva que se produziu na linguagem escolástica da metafísica. Já havia sido uma aspiração do idealismo alemão desde Fichte e sobretudo desde Hegel dissolver e fluidificar a ontologia grega da substância e seus conceitos mediante o movimento dialético do pensamento. Houve precursores inclusive dentro da linguagem do latim [367] escolástico, especialmente quando se agregava a palavra viva da pregação em língua vernácula aos tratados escolásticos escritos em latim, como é o caso de Mestre Eckhart ou de Nicolau de Cusa, e também das especulações de Jakob Bõhme. Mas esses foram personagens secundários da tradição metafísica. Quando Fichte escreve Tathandlung (força do ato) em lugar de Tatsache (fato), está antecipando, no fundo, as formulações provocativas de Heidegger, que gosta de inverter o sentido das palavras. Ele compreendeu, por exemplo, Entfernung (distanciamento) como aproximação, ou tomou a frase was heisst denken? (que significa pensar?) como se significasse was befiehlt uns zu denken? (que nos convoca a pensar?); ou quando traduziu Nichts ist ohne Grund (o nada está sem fundamento) como um enunciado sobre o nada, enquanto carente de fundamento: esforços violentos de alguém que nada na contracorrente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Em muitas oportunidades objetou-se contra as minhas investigações dizendo que sua linguagem seria muito imprecisa. Não posso admitir que isso seja só a descoberta de uma deficiência — o que muitas vezes pode ser suficiente. Ao contrário, parece-me muito mais adequado à tarefa da linguagem conceitual filosófica manter de pé o envolvimento com o todo do saber sobre o mundo baseado na linguagem, e com isso manter viva uma relação com o todo, mesmo que às custas de uma delimitação mais precisa dos conceitos. Isso é a implicação positiva da “carência de linguagem”, que nasceu com a filosofia desde os seus começos. Em momentos muito especiais e sob condições muito específicas, que não podem ser encontradas em um Platão ou em um Aristóteles, em um Mestre Eckhart ou Nicolau de Cusa, nem em um Fichte ou um Hegel, mas talvez em Tomás de Aquino, em Hume e em Kant, essa carência de linguagem permanece oculta sob uma sistemática conceitual equilibrada e só volta a manifestar-se, e nesse caso de maneira necessária, quando o pensar acompanha o movimento do pensamento. Nesse particular remeto à conferência que pronunciei em Dusseldorf, “Die Begriffsgeschichte und die Sprache der Philosophie”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
A história da metafísica poderia ser escrita também como uma história do platonismo. Suas etapas seriam Plotino e Agostinho, Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa, Leibniz, Kant e Hegel; e, por fim, todos aqueles esforços intelectuais do Ocidente que perguntam pelo ser substancial da ideia e em geral pela teoria da [503] substância da tradição metafísica. Mas o primeiro platônico dessa série não seria outro que o próprio Aristóteles. O objetivo de meus estudos nesse campo seria fazer crer nessa tese tanto frente à instância da crítica aristotélica à doutrina das ideias como frente à metafísica da substância na tradição ocidental. E eu não estaria sozinho. Houve Hegel. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.