Mas que conhecimento é este que compreende que algo seja assim, por compreender que veio a ser assim? O que significa aqui ciência? Ainda que se reconheça que o ideal desse conhecimento é fundamentalmente diverso do gênero e da intenção de as ciências da natureza, estaremos sendo tentados, no entanto, a caracterizá-las, apenas privativamente, como as “ciências inexatas”. Mesmo a ponderação, tão significativa quanto justa, que Hermann Helmholtz fez no seu famoso discurso de 1862, diferenciando as ciências da natureza das ciências do espírito, por mais que tivesse ressaltado a suprema e humana significação das ciências do espírito — sua característica lógica continuou sendo negativa, a qual tinha o seu ponto de partida no ideal de método das ciências da natureza. Helmholtz diferenciou duas espécies de indução: a indução lógica e a instintiva-artística. Isso significa, porém, que, no fundo, não estava diferenciando logicamente, mas sim psicologicamente, ambos os gêneros de procedimento. Ambos se servem da conclusão indutiva, mas o procedimento conclusivo das ciências do espírito é um concluir inconsciente. A prática da indução das ciências do espírito está vinculada, por essa razão, a condições psicológicas especiais. Ela exige uma espécie de senso do tato, e para isso, necessita de aptidões espirituais de outra espécie, por exemplo, riqueza de memória e prevalência de autoridades; contra o que, concluir autoconsciente do cientista da natureza repousa totalmente na utilização da própria compreensão. Mesmo quando se reconhece que o grande pesquisador da natureza resistiu à tentação de transformar sua própria forma de trabalhar cientificamente numa norma de validade geral, mesmo assim ele não disporia de nenhuma outra possibilidade lógica para caracterizar o procedimento das ciências do espírito, do que através do conceito da indução, com o qual estava familiarizado graças à Lógica de Mill. A efetiva exemplaridade que teve a nova mecânica e seu triunfo para as ciências do século XVIII, assinalado pela mecânica celeste de Newton, continuava sendo para Helmholtz tão evidente, que bem longe dele estava indagar sobre quais as pré-condições filosóficas haviam possibilitado o surgimento dessa nova ciência no século XVII. Hoje sabemos qual o significado que teve, nesse caso, a Escola Occamista de Paris. Para Helmholtz o ideal de método das ciências da natureza não estava necessitando de nenhuma derivação histórica nem de uma restrição cognitiva e teórica, e é por isso que ele, logicamente, não podia entender de outra forma a maneira de trabalhar das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Não obstante, a ciência moderna jamais negou de todo a sua origem grega, apesar da consciência que ganhou, desde o século XVII, com respeito a si mesma e às ilimitadas possibilidades que se lhe abriam. Sabe-se que o verdadeiro tratado cartesiano sobre o método, suas Regras, o genuíno manifesto da ciência moderna, só apareceu muito depois de sua morte. Pelo contrário, suas meditações reflexivas, sobre a possibilidade de tornar compatível o conhecimento matemático da natureza com a metafísica, atarefaram toda sua época. A filosofia alemã, desde Leibniz até Hegel, esteve constantemente procurando complementar a nova ciência da física, através de uma ciência filosófica e especulativa, que renovasse e confirmasse a herança aristotélica. Lembro apenas a réplica de Goethe contra Newton, de que compartilharam também Schelling, Hegel e Schopenhauer. Nesse sentido, não deverá nos surpreender, se ao cabo de um novo século de experiências críticas — que nos proporcionou a ciência moderna e em particular a auto-reflexão das ciências históricas do espírito — retornarmos a essa herança. A hermenêutica nas ciências do espírito, que parece, à primeira vista, uma temática secundária e derivada, um discreto capítulo por entre a massa das heranças do idealismo alemão, nos levará de volta, se quisermos fazer justiça às coisas, à dimensão do problema da metafísica clássica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Um bom exemplo desse processo é a tensão de há muito existente entre terminologia e linguagem viva. O fato de as expressões técnicas serem tão pouco manejáveis é um fenômeno muito conhecido não apenas por parte dos pesquisadores mas igualmente por parte de todo leigo sedento de compreender esses termos. É como se esses termos possuíssem uma redoma protetora que impede sua integração na verdadeira vida da linguagem. E, no entanto, o que acontece essencialmente com essas expressões técnicas é que a sua força de esclarecimento, reduzida pela univocidade, se vê enriquecida quando inseridas na comunicação viva da vida da linguagem mediante a força comunicativa do dizer, mesmo vago e polissêmico. A ciência pode opor-se a esse obscurecimento de seus próprios conceitos. Todavia, a “pureza” metodológica só se deixa alcançar em âmbitos particulares. Essa vem sempre precedida pelo contexto da orientação no mundo, implícito na relação de mundo que se dá eminentemente na linguagem. Basta pensar, por exemplo, no conceito físico de força e nos tons de significação que ressoam na palavra viva “força”, e que fazem com que o leigo se interesse pelos conhecimentos da ciência. Já tive oportunidade de mostrar como o trabalho científico de Newton integrou-se na consciência geral através de Oetinger e Herder. O conceito de força foi compreendido a partir da experiência viva de força. E é justamente assim que a palavra conceitual planta raízes numa língua e individualiza-se a ponto de tornar-se intraduzível. Quem saberia reproduzir em outra língua a frase de Goethe: “Im Anfag war die Kraft”(“No princípio era a força”), sem hesitar com o próprio Goethe: “Algo já me adverte de que aqui não posso permanecer”? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.
Tiro as consequências. A consciência hermenêutica, que desenvolvi desde o princípio seguindo alguns pontos determinados, tem sua verdadeira força de atuação no fato de deixar e fazer ver onde está a questão. Quando tivermos presente não somente a tradição artística e a tradição histórica dos povos, não apenas o princípio da ciência moderna em suas precondições hermenêuticas, mas o todo de nossa vida de experiência, então creio que conseguiremos integrar de novo também a experiência da ciência em nossa própria experiência universal e humana de vida. Então teremos alcançado o estrato fundamental que, com Johannes Lohmann, podemos chamar de “constituição do mundo estruturada na linguagem”. Essa constituição apresenta-se como a consciência da história dos efeitos que esquematiza previamente todas as nossas possibilidades de conhecimento. Faço abstração aqui de que o pesquisador, mesmo o pesquisador da natureza, talvez não esteja totalmente livre da moda e da sociedade, de todos os fatores possíveis de seu entorno; o que afirmo é que dentro de sua experiência científica o que o faz ter ideias fecundas não são tanto as “leis da lógica rígida” (Helmholtz) mas as constelações imprevisíveis, seja a queda da maçã de Newton ou qualquer outra observação onde se acende a chama da inspiração científica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
A história da ciência grega difere evidentemente da história da ciência moderna. No período platônico foi possível religar o caminho seguido pelo esclarecimento, pela investigação e pela explicitação do mundo com os esquemas tradicionais da religião e da visão grega da vida. Foram Platão e Aristóteles, e não Demócrito, os que presidiram a história da ciência na Antiguidade tardia, e de modo algum foi uma história de decadência científica. A ciência helenística, como é chamada hoje, não precisou se defender da “filosofia” e seus postulados, mas alcançou sua emancipação justamente através da filosofia grega, através do Timeu e da Física aristotélica, como procurei demonstrar em um trabalho intitulado Gibt es die Materie? (Existirá a matéria?). Na verdade, mesmo o projeto oposto representado pela física de Galileu e de Newton determina-se a partir daquela. Um trabalho sobre Antike Atomtheorie (Teoria atômica antiga, 1934) foi o único fragmento que publiquei então desse grupo de estudos. Buscava desfazer os preconceitos infantis que a ciência moderna alimenta a respeito de Demócrito, o grande desconhecido. A grandeza de Demócrito nada perderia com isso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.