Foram sobretudo dois princípios a partir dos quais se apresentou esse tema abrangente, que diz respeito à correlação entre a vida e a vivência; e veremos mais tarde como Dilthey, e especialmente Husserl, se enredaram na presente problemática. De um lado, trata-se do significado fundamental que possui a crítica de Kant sobre toda a doutrina substancial da alma e sobre a unidade transcendental da autoconsciência, que é diferente daquela, e que é a unidade sintética da aperception. Nessa crítica da psicologia racionalista foi possível vincular a idéia de uma psicologia baseada num método crítico, iniciativa que Paul Natorp já havia tomado em 1888127 e a partir do que Richard Hönigswald viria a fundamentar, mais tarde, o conceito da psicologia do pensamento. Através do conceito do estar-consciente, que proclama a imediaticidade da vivência, Natorp designou o objeto da psicologia crítica e desenvolveu o método de uma subjetivação universal como sendo a forma de pesquisa da psicologia reconstrutiva. Natorp apoiou e continuou desenvolvendo, mais tarde, seu princípio fundamental através de uma crítica pormenorizada à formação do conceito da pesquisa psicológica contemporânea. Mas já em 1888 estava fixado o pensamento básico de que a concreção da vivência originária, isto é, a totalidade da consciência, constitui uma unidade indivisível, que somente se diferencia e determina através do método objetivador do conhecimento. “O consciente, porém, significa vida, isto é, relações recíprocas generalizadas.” Isso se observa principalmente na relação entre o consciente e o tempo: “O dado não é o consciente como fenômeno no tempo, mas o tempo como forma do consciente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
No mesmo ano de 1888, em que Natorp se antepôs dessa maneira à psicologia dominante, foi publicado o primeiro livro de Henri Bergson, Les données immédiates de la conscience, um ataque crítico contra a psicologia contemporânea, que, tão decididamente quanto Natorp, fazia sobressair o conceito da vida contra a tendência objetivante, e especialmente desordenadora da formação do conceito psicológico. Aqui encontram-se expressões muito semelhantes sobre o “consciente” e sua indivisível concreção, como se vê em Natorp. Para isso Bergson cunhou a expressão durée, que se tornaria famosa, e que proclama a absoluta continuidade do psíquico. Bergson a entende como organização, isto é, a determina a partir da maneira de ser do ser vivo (être vivant), no qual cada elemento é representativo do todo (représentatif du tout). A interpenetração interna de todos os elementos no consciente, compara ele à maneira pela qual se interpenetram, quando a ouvimos, todos os tons de uma melodia. Também Bergson defende o momento anticaracterístico do conceito da vida contra a ciência objetivadora. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Se pusermos à prova a exata determinação daquilo que aqui se chama vida e o que disso é atuante no conceito da vivência, teremos o seguinte: a relação da vida e da vivência não é a de um geral para um particular. A unidade da vivência, determinada pelo seu conteúdo intencional, encontra-se, antes, numa relação direta com o todo, com a totalidade da vida. Bergson fala da représentation do todo, e justamente assim é o conceito da relação recíproca, utilizado por Natorp, uma expressão para a relação “orgânica” entre a parte e o todo, que se encontra aqui. Foi principalmente Georg Simmel que analisou o conceito da vida sob esse aspecto, como “a vida estendendo seus tentáculos para além de si mesma”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Com isso é que se ganhou a ideia da “fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda suposição do ser e a investigação dos modos subjetivos de estarem dadas as coisas, fazendo-se disso um programa universal de trabalho, o que teria que tornar compreensível toda objetividade, todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana possui validez ôntica. Nessa perspectiva, deve também ser vista como “fenômeno”, ou seja, também ela deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de encontrar-se dada. Essa investigação do eu como fenômeno não é “percepção interna” de um eu real, mas tampouco é mera reconstrução da “consciencialidade”, isto é, remissão dos conteúdos da consciência a um polo transcendental ao eu (Natorp), mas um tema altamente diferenciado, próprio da reflexão transcendental. Face a um mero estar dado dos fenômenos da consciência objetiva, de um estar dado em vivências intencionais, essa reflexão representa o acréscimo de uma nova dimensão da pesquisa. Pois há também dados que, de sua parte, não são objeto de atos intencionais. Toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde, em última análise, com o continuum das vivências presentes no anterior e posterior na unidade da corrente vivencial. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Este é o ponto em que Husserl podia julgar-se, de certa forma, em consonância com as intenções de Dilthey. De uma forma semelhante, Dilthey combateu o criticismo dos neokantianos, por não lhe ser satisfatório o retrocesso ao sujeito epistemológico. “Nas veias do sujeito conhecedor, que construíram Locke, Hume e Kant, não corre sangue verdadeiro”. O próprio Dilthey retrocede até a unidade da vida, até “o ponto de vista da vida”, e, de uma forma muito parecida a isso, a “vida da consciência” de Husserl — palavra que parece provir de Natorp — já é uma indicação da tendência que se impôs amplamente, de estudar não somente vivências individuais da consciência, mas as intencionalidades ocultas, anônimas e [251] implícitas da consciência, tornando assim compreensível o todo de qualquer validez objetiva do ser. Mais tarde se dará a isso a denominação de esclarecimento dos desempenhos da “vida produtiva”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp, se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica “fenomenologia”. Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela “historia dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
A partir de então pude entrever o que queria. Não era um novo pensamento sistemático e global. Não tinha esquecido a crítica de Kierkegaard a Hegel. A nova redução da filosofia às experiências básicas da existência humana que era preciso explicitar além de qualquer historicismo, encontrou um primeiro principado em meu artigo, homenagem ao aniversário de 70 anos de Paul Natorp, Zur Systemidee in der Philosophie (Sobre a ideia de sistema na filosofia, 1924). Tornou-se um documento de minha imaturidade e foi também testemunho de meu novo compromisso e de minha inspiração em Heidegger. Interpretou-se muitas vezes esse artigo como uma antecipação do distanciamento heideggeriano do idealismo transcendental, sem razão alguma do ponto de vista de uma perspectiva histórica. Um traço de verdade nisso tudo poderia ser, acima de tudo, o fato de ter passado uns meses com Heidegger em Friburgo durante o verão de 1923. Mas tão pouco tempo dificilmente poderia ter provocado essa “inspiração” se não estivesse já no terreno preparado. Em todo caso foi o apoio em Heidegger que me permitiu ganhar distância frente aos professores de Marburgo, frente às construções sistemáticas da Natorp e frente ao objetivismo ingênuo da investigação categorial de Hartmann. Mas o artigo foi um testemunho muito pretensioso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.