Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos sobre Platão e Aristóteles. Os primeiros textos de minha formação intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no volume V dessa edição alemã, sob o título Praktisches Wissen [Saber prático] (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco, estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição aristotélica da filosofia prática foi retomada e abordada sob diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa filosofia prática permanece sendo, para o conceito científico do conjunto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode ser ignorada. Há que se aprender com Aristóteles que o conceito grego de ciência, episteme, significa conhecimento racional. Isso significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, [23] episteme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de techne. Em todo caso, o saber prático e político têm fundamentalmente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didático e de sua aplicação. O saber prático (Können), na verdade, é aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fundamentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento socrático pelo bem, mantido por Platão e Aristóteles. Quem acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e responsabilizar-se pela utilização do mesmo. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Os exemplos aqui discutidos mostram a estreita relação existente entre o uso da linguagem e a formação conceitual. A história do conceito deve seguir um movimento de pensamento [99] que força a ultrapassar sempre o uso ordinário da linguagem e liberar a orientação semântica das palavras de seu emprego originário, ampliando ou restringindo, comparando ou distinguindo, como procedeu de modo sistemático Aristóteles no catálogo de conceitos do livro A da Metafísica. Também a formação de conceitos pode ter efeitos na vida da linguagem, como por exemplo o amplo uso da palavra substância para designar o espiritual, uso justificado por Hegel. Via de regra, porém, acontece o contrário, a amplitude do uso vivo da linguagem resiste à fixação terminológica dos filósofos. Em todo caso, há uma relação extremamente oscilante entre a cunhagem conceitual e o uso de linguagem. Mesmo aquele que fez as propostas terminológicas, no uso de fato da linguagem, acaba não as mantendo. Como já ressaltei certa vez, em seu próprio uso da linguagem, Aristóteles acaba não seguindo a diferenciação de phronesis e sophia, por ele encontrada na Ética a Nicômaco. Mesmo a famosa distinção kantiana de transcendente e transcendental não conseguiu direito de cidadania na vida da linguagem. Só a hybris de um Beckmesser conseguiu criticar, no meu tempo de juventude, na época do neokantianismo, uma expressão como “a música transcendental de Beethoven”, afirmando com escárnio: “O escritor nem sequer sabe a diferença entre transcendente e transcendental”. É claro que quem quiser compreender a filosofia kantiana deverá estar familiarizado com essa diferença. O uso da linguagem é no entanto soberano e não permite que lhe sejam dados esses preceitos artificiais. A soberania do uso da linguagem não exclui distinção entre o bom e o mau alemão (ou português) e até que se possa falar dos abusos da língua. Nesses casos, porém, a soberania do uso da linguagem mostra-se precisamente no fato de que, a nossos olhos, a crítica reprobativa feita muitas vezes na escola com relação ao uso errado da língua em suas regras gramaticais contém algo de inoperante. Mais do que qualquer outro, o ensino da língua costuma ser operante pelo exemplo e não através de correções pedantes. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
À luz dessa questão, a venerada tradição da hermenêutica jurídica ganha nova vida. No seio da dogmática jurídica moderna, esse questionamento exerceu um papel insignificante, mesmo que uma dogmática só possa aperfeiçoar-se a si mesma quando conta com inevitáveis manchas vergonhosas. De qualquer modo, não se pode negar que a hermenêutica seja uma disciplina normativa e que exerça a função dogmática de complemento jurídico. Como tal, desempenha uma função indispensável, visto que precisa superar o hiato insuperável entre a generalidade do direito estabelecido e a concreção do caso individual. Nesse sentido, Aristóteles havia delimitado, na Ética a Nicômaco, o espaço hermenêutico relativo à teoria do direito, ao discutir o problema do direito natural e do conceito da epieikeia. Mesmo a reflexão sobre a história da hermenêutica jurídica mostra que o problema da interpretação compreensiva está indissoluvelmente ligado ao problema da aplicação. Essa era a dupla tarefa da ciência jurídica, sobretudo desde a recepção do direito romano. A questão não era apenas compreender os juristas romanos, mas também aplicar a dogmática do direito romano ao universo cultural moderno. Com isso, uma ligação tão estreita como a que se impôs na teologia, surgiu também entre a tarefa hermenêutica e a tarefa dogmática. Uma teoria da interpretação do direito romano não poderia abandonar-se a uma alienação histórica, pelo menos enquanto o direito romano detivesse sua vigência legal. Isso explica por que a interpretação do direito romano considera óbvio que a teoria da interpretação empreendida por Thibaut (1806) não possa se apoiar apenas na intenção do legislador, tendo que elevar o “fundamento da lei” ao nível de um verdadeiro cânon hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e Aristóteles tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da [423] consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a consequência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Mas o mais importante aprendi-o de Heidegger. Recordo-me sobretudo do primeiro seminário em que participei. Foi no ano de 1923, ainda em Friburgo, sobre o livro VI da Ética a Nicômaco. A phronesis, a arete da “razão prática”, alio eidos gnoseos, “um gênero de conhecimento diferente”, representou para mim então uma palavra mágica. De certo, soou para mim como uma provocação o dia em que Heidegger analisou a distinção entre techne e phronesis e declarou a propósito da frase phroneseos de ouk esti lethem (na racionalidade não há esquecimento): “isso é a consciência moral”. Mas essa hipérbole pedagogicamente espontânea sugeria o ponto decisivo a partir do qual o próprio Heidegger preparou mais tarde em Ser e tempo o novo lugar da pergunta pelo ser. Basta pensar em expressões como “vontade de consciência moral”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.