Gadamer (VM): Descartes

Tendo em vista essa situação, nada impede que se lembre a tradição humanista e se pergunte: Que forma de conhecimento das ciências do espírito se poderá delas aprender? É aqui que o escrito de Vico, De nostri temporis studiorum ratione, apresenta um valioso ponto de referência. A defesa do humanismo, que Vico assume, é, como o título já mostra, transmitido através da pedagogia jesuítica e dirigido tanto contra DESCARTES como contra o jansenismo. Esse manifesto pedagógico de Vico é como seu esboço de uma “nova ciência”, fundamentada sobre velhas verdades. Por isso, ele se refere ao sensus communis, o senso comum, e ao ideal humanístico da eloquentia, momentos que já existiam no antigo conceito do saber. O “bem-falar” (eu legein) é em si, desde tempos imemoriais, uma fórmula ambígua e, de forma alguma, meramente um ideal retórico. Significa também dizer o que é correto, ou seja, o que é verdadeiro, e não somente: a arte de falar, a arte de dizer bem alguma coisa. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

As situações dadas (Gegebenheiten) no terreno das ciências do espírito são aliás de um gênero especial, e é isso que Dilthey quer formular através do conceito da “vivência”. Partindo da caracterização que DESCARTES dá ao res cogitans, ele determina o conceito da vivência através da reflexividade, através da interioridade, e quer, com base nessa forma especial da situação dada, justificar epistemologicamente o conhecimento do mundo histórico. As situações dadas primárias, a que retrocedem a interpretação dos objetos históricos, não são dados de experimentação e de medição, mas unidades de significado. E isso o que o conceito da vivência quer dizer: as configurações de sentido, que nos vêm ao encontro nas ciências do espírito, mesmo que nos apareça como muito estranhas e incompreensíveis, deixam-se reconduzir a unidades últimas do dado na consciência, unidades que já nada mais contêm de estranho, objetivo, nem mesmo necessitado de interpretação. Trata-se das unidades vivenciais, que são em si mesmas unidades de sentido. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Essa ambiguidade tem seu fundamento último na falta de unidade interna de seu pensamento, no resíduo do cartesianismo, donde ele parte. Suas reflexões epistemológicas sobre a fundamentação das ciências do espírito não se coadunam bem com seu ponto de partida na filosofia da vida. Nas suas anotações mais tardias encontra-se um testemunho eloquente. Ali, Dilthey exigirá a toda fundamentação filosófica que se estenda a todo o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de vista da reflexão e da dúvida”. Essa frase parece uma afirmação inocente sobre a essência da ciência e da filosofia da época moderna como tal. Não há como não perceber uma ressonância cartesiana. Na verdade, porém, essa frase encontra sua aplicação em um sentido totalmente diferente, quando Dilthey continua: “Por toda parte a vida conduz a reflexões sobre o que está colocado nela, a reflexão quanto à dúvida, e somente se a vida quiser se firmar frente a esta, então e somente então pode o pensamento acabar sendo um saber válido”. Aqui já não mais existem preconceitos filosóficos que têm de ser superados por uma fundamentação epistemológica ao estilo de DESCARTES, já que se trata de realidades da vida, de tradições dos costumes, da religião e do direito positivo, que são desintegrados pela reflexão e necessitam de uma nova ordem. Quando Dilthey fala aqui do saber e da reflexão, não está querendo aludir à imanência geral do saber na vida, mas a um movimento dirigido contra a vida. Ao contrário, a tradição dos costumes, da religião e do direito repousa, de sua parte, sobre um saber da vida a partir de si mesma. Inclusive já vimos que na entrega à tradição, na qual certamente está envolvido algum saber, realiza-se a ascensão do indivíduo ao espírito objetivo. Terá de se concordar prazerosamente com Dilthey que a influência do pensamento sobre a vida “procede da necessidade interna de estabelecer algo fixo em meio à mudança inconstante das percepções sensoriais, dos desejos e sentimentos, algo fixo e estável que torne possível um modo de vida continuado e unitário”. Mas esse desempenho do pensamento é imanente à própria vida e se realiza nas objetivações do espírito que, como costumes, direito e religião sustentam o indivíduo, na medida em que este se entrega à objetividade da sociedade. O fato de que, para isso, tenha-se de adotar “o ponto de vista da reflexão e da dúvida” e que esse trabalho se realize “em todas as formas de reflexão e científica (e não fora disso), não se coaduna, em absoluto, com as ideias da filosofia da vida de Dilthey. Antes, aqui se descreve o ideal específico do Aufklärung científico, que bem pouco concorda com a reflexão imanente da vida, justamente ao modo como foi o “intelectualismo” do Aufklärung, contra o qual se orienta a fundamentação de Dilthey no fato da filosofia da vida. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Na verdade há muitas formas de se ter certeza. O modo de certeza que consegue sustentar um convencimento que perpassou através da dúvida é diferente dessa certeza vital imediata de que se revestem todos os objetivos e valores da consciência humana, quando fazem exigência de incondicionalidade. Com mais direito, porém, distingue-se a certeza alcançada na própria vida da certeza da ciência. A certeza científica sempre tem uma feição cartesiana. É o resultado de uma metodologia crítica, que procura somente deixar valer o que for indubitável. Portanto, essa certeza não procede da dúvida e de sua superação, mas já subtrai-se de antemão à possibilidade de sucumbir à dúvida. Assim como em DESCARTES e na sua famosa meditação sobre a dúvida se propõe uma dúvida artificial e hiperbólica — como se fosse um experimento — que conduz ao fundamentum inconcussum da autoconsciência, a ciência metódica põe em dívida, fundamentalmente, tudo aquilo sobre o que é possível duvidar, com o fim de chegar, deste modo, a resultados seguros. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Seja como for, é característico o fato de que, para Husserl, essa oposição alcançava o seu ponto menos agudo, aí onde se trata do questionamento transcendental empreendido por Kant, por seus verdadeiros precedentes e precursores. A auto-reflexão radical, que constituiu seu mais profundo impulso e que ele considerava como a essência da filosofia moderna, permitiu-lhe apelar a DESCARTES e aos ingleses e seguir o modelo metódico da crítica kantiana. Sua fenomenologia “constitutiva” caracterizava-se, no entanto, por uma universalidade na colocação de suas tarefas que era estranha a Kant e que tampouco o neokantismo alcançou, o qual deixou inquestionado o “factum da ciência”. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Portanto, não se trata, de modo algum, de assegurar-se a si mesmo contra a tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, pelo contrário, de manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de DESCARTES e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e ser presente, vai, obviamente, mais além da autocompreensão da metafísica moderna, mas não arbitrária e aleatoriamente, senão que a partir de uma “posição” prévia que realmente permite compreender essa tradição, porque põe a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetividade. E, inversamente a isso, Heidegger descobre na crítica kantiana à metafísica “dogmática” a ideia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, “assegura” o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. E assim que se mostra a concreção da consciência histórica, da qual se trata no compreender. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

No entanto, não há dúvida de que a verdadeira consequência do Aufklärung é outra, ou seja, a submissão de toda autoridade à razão. O preconceito da precipitação deve ser entendido, por consequência, mais ao modo de DESCARTES, como fonte de todo erro no uso da, razão. Concorda com isso o fato de que a velha divisão retorna com um sentido alterado, após a vitória do Aufklärung, quando a hermenêutica se liberta de todo vínculo dogmático. Assim, por exemplo, lemos em Schleiermacher, que como causas dos mal-entendidos ele divisa a sujeição e a precipitação. Junto aos preconceitos constantes, que procedem das sujeições a que estamos submetidos, aparecem os juízos equivocados momentâneos, devidos à precipitação. Mas a quem trata do método científico só interessam realmente os primeiros. Não chega sequer a ocorrer a Schleiermacher, que entre os preconceitos que afetavam a quem se encontra sujeito a autoridades, também podem haver os que contenham verdade, o que desde sempre estava incluído no conceito mesmo de autoridade. Sua reformulação da divisão tradicional dos preconceitos testemunha a consumação do Aufklärung. A sujeição só se refere ainda a uma barreira individual da compreensão: “a preferência unilateral por aquilo que se encontra próximo ao círculo de ideias particulares”. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

A reivindicação da oposição entre a fé na autoridade e o uso da própria razão, instaurada pelo Aufklärung, tem sua razão de ser. Na medida em que a validez passa a ser, de fato, uma fonte de preconceitos. Mas com isso não está excluído o fato de que ela pode ser também uma fonte de verdade, o que o Aufklärung ignorou em sua pura e simples difamação generalizada contra a autoridade. Para nos certificarmos disso podemos nos reportar a um dos maiores precursores do Aufklärung europeu, DESCARTES. Apesar de toda a radicalidade de seu pensamento metódico, é conhecido que DESCARTES excluiu as coisas da moral da pretensão de uma reconstrução completa de todas as verdades a partir da razão. Este era o sentido de sua moral provisória. Parece-me de um significado sintomático, o fato de que ele não tenha desenvolvido realmente sua moral definitiva, e que os seus fundamentos, pelo que se pode observar nas suas cartas a Elisabete, mal e mal contêm algo novo. É evidentemente impensável querer esperar da ciência moderna e seus progressos a fundamentação de uma nova moral. De fato, não é só a difamação de toda autoridade que se converte num preconceito consolidado pelo Aufklärung. Ele levou também a uma grave deformação do próprio conceito de autoridade. Sobre a base de um esclarecedor conceito de razão e liberdade, o conceito de autoridade pôde se converter simplesmente no contrário de razão e liberdade, no conceito da obediência cega. Este é o significado que conhecemos a partir do uso linguístico da crítica às modernas ditaduras. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Isso pode ser uma afirmação unilateral, que não encontra um respaldo inequívoco em Aristóteles. Ela desenvolveu-se, todavia, a partir da doutrina grega do logos e sustenta sua evolução até o conceito moderno de ciência. De imediato, a ciência criada pelos gregos é completamente diferente do nosso conceito de ciência. A ciência verdadeira é a matemática. Não é a ciência da natureza, e muito menos a história. O seu objeto é um ser puramente racional, e visto que pode ser apresentada num conjunto fechado de deduções, ela é como tal um modelo para toda ciência. O que caracteriza a ciência moderna, ao contrário, é o fato de a matemática se constituir em modelo, não pelo ser de seus objetos, mas como o modo mais perfeito de conhecimento. A configuração da ciência moderna estabelece uma ruptura decisiva em relação às configurações do saber do Ocidente grego e cristão. O que predomina agora é a ideia do método. Em sentido moderno, o método, apesar de toda a variedade apresentada nas diversas ciências, é um conceito unitário. O ideal de conhecimento pautado pelo conceito de método consiste em se poder trilhar um caminho cognitivo de maneira tão consciente que se torna possível refazê-lo sempre. Methodos significa “caminho de seguimento”. Metódico é poder-seguir sempre de novo o caminho já trilhado e é isto o que caracteriza o proceder da ciência. Justamente por isso faz-se necessário estabelecer logo uma restrição daquilo que pode resultar desta pretensão à verdade. Se a verdade (veritas) só se dá pela possibilidade de verificação — seja como for — , então o parâmetro que mede o conhecimento não é mais sua verdade, mas sua certeza. Por isso, desde a formulação clássica dos princípios de certeza de DESCARTES, o verdadeiro ethos da ciência moderna passou a ser o fato de que ela só admite como condição satisfatória de verdade aquilo que satisfaz o ideal de certeza. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4

O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez DESCARTES, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como “Iluminismo”. A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann, não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como “esclarecimento”, “emancipação”, “diálogo livre de coerção” revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, DESCARTES, procurando legitimar seu novo conceito de método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que “apenas” compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento da consciência da história dos efeitos. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8

A pergunta que se faz, porém, é a seguinte: Será o conhecimento dos conhecimentos, caracterizado por Platão como arte política, algo mais do que uma imagem crítica do empreendimento cego daqueles que, segundo Platão, têm de responsabilizar-se pela decadência de sua pátria? O ideal da tékhne, do saber técnico, capaz de ser ensinado e aprendido, satisfaz a exigência feita à existência política do homem? Aqui não é o lugar para discutirmos o alcance e os limites do pensamento da téknne na filosofia platônica. E nem tampouco para tocar no problema de até que ponto a própria filosofia de Platão segue certos ideais políticos que não podem ser os nossos? Mesmo assim, mencionar Platão nesse contexto pode ajudar a esclarecer o problema que nos atinge hoje. Platão ensina a duvidar de que a intensificação da ciência humana possa apreender e regular a totalidade de sua própria existência social e política. Podemos evocar aqui a oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa, que em todas as possíveis modificações dimensionou corretamente a questão fundamental de toda aplicação da “ciência” à autoconsciência. Só com a aplicação da nova ciência à sociedade — que o DESCARTES da “moral provisória” tinha em mente apenas como um objetivo distante — é que essa questão alcançou toda sua gravidade. Os discursos de Kant sobre o homem como “cidadão de dois mundos” conferiram-lhe uma expressão adequada. O fato de que, na totalidade de sua existência, o homem possa tornar-se um objeto a ponto de ser considerado produto em todas as relações de sua vida social, que possa ainda existir um especialista que “ele” mesmo não é, para administrar cada “homem” junto com todos os outros e que esse especialista seja ele mesmo administrado por sua própria administração, tudo isso provoca evidentes confusões. Uma delas é que o saber objetivo de Platão não passa de uma caricatura irônica, mesmo que iluminada com todas as cores de uma inspiração, de um conhecimento do divino ou do bem transcendentes. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12

Mas onde deveria se apoiar também a reflexão teórica sobre a compreensão, se não na retórica, a qual, desde a antiga tradição, representa o único advogado de uma pretensão de verdade que defende o verossímil, o eikos (verosimile)”? E o que se torna evidente pela razão comum contra a pretensão demonstrativa e de certeza da ciência? Persuadir e evidenciar sem lançar mão da demonstração é o objetivo e o parâmetro tanto da compreensão e da interpretação quanto da arte da persuasão e do discurso… e esse amplo domínio das convicções evidentes e das opiniões comuns reinantes não se restringe gradualmente pelo progresso da ciência, por maior que seja, mas estende-se antes a todo novo conhecimento da investigação, reivindicando-o como seu e adaptando-o para si. A ubiquidade da retórica é ilimitada. Graças a ela a ciência se sociabiliza na vida. O que saberíamos sobre a física moderna, que transforma nossa vida a olhos vistos, se dependêssemos apenas dela? Todas as suas explanações que extrapolem o círculo de especialistas (e talvez tenhamos que dizer: à medida que não se restringem a um pequeno círculo de especialistas consagrados) devem seus efeitos ao elemento retórico que as sustenta. Como demonstrou sobretudo Henri Gouhier, mesmo DESCARTES, esse grande e apaixonado defensor do método e da certeza, enquanto escritor, lança mão largamente dos recursos da retórica em todos os seus escritos. Não pode haver dúvidas quanto à sua fundamental função dentro da vida social. Toda ciência que queira ser prática depende dela. Por outro lado, a função da hermenêutica não é menos universal. A incompreensibilidade e a existência de mal-entendidos presentes nos textos da tradição de que se ocupou originariamente a hermenêutica é apenas um caso especial do que se encontra em toda orientação humana no mundo como o atopon, o estranho que jamais se deixa enquadrar nas expectativas habituais da experiência. E assim como no progresso do conhecimento os mirabila acabam perdendo sua estranheza, à medida que são compreendidos, assim também toda apropriação exitosa da tradição ganha uma nova familiaridade própria, pela qual ela nos pertence e nós pertencemos a ela. Ambas confluem num único mundo próprio e compartilhado, que abarca a história e a atualidade, o qual encontra sua articulação de linguagem nos discursos entre os seres humanos. Também da parte da compreensão, portanto, a universalidade da estrutura da linguagem humana mostra-se como um elemento ilimitado que sustenta tudo, não somente a cultura transmitida pela linguagem, mas simplesmente tudo, porque tudo é assumido pela compreensibilidade na qual nos relacionamos uns com os outros. Platão pode tomar como ponto de partida legítimo o fato de que quem considera as coisas no espelho dos discursos assegura-se de sua plena e irrestrita verdade. E quando Platão ensina que todo conhecimento só é tal pelo reconhecimento, isso tem um sentido profundo e correto. Um “primeiro” conhecimento é tão impossível como uma primeira palavra. Também o conhecimento mais recente, cujas consequências ainda não são visíveis, só será o que realmente foi quando tiver se decantado nelas e tiver trilhado o caminho da mediação do entendimento intersubjetivo. VERDADE E METODO II OUTROS 18

O acirramento da tensão entre verdade e método guiava-se em meus trabalhos por um sentido polêmico. Como reconhece o próprio DESCARTES, isso acaba fazendo parte de um processo especial de endireitar uma coisa que estava torta, a qual deve ser dobrada na direção contrária. E a coisa estava realmente torta, não tanto a metodologia das ciências, mas sua autoconsciência reflexiva. Parece-me que a historiografia e a hermenêutica pós-hegelianas que tematizei demonstram isso suficientemente. Quando, segundo as pressuposições de E. Betti, se teme que a minha reflexão hermenêutica pudesse representar um desvio da objetividade científica, isso não passa de um mal-entendido ingênuo. Nessa questão tanto Apel, quanto Habermas e os representantes da “racionalidade crítica” parecem acometidos da mesma cegueira. Todos eles desconhecem a intenção reflexiva de minhas análises e consequentemente o sentido da aplicação, que tentei apresentar como um momento estrutural de todo compreender. Eles estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação. Não percebem que a reflexão sobre a práxis não é técnica. VERDADE E METODO II ANEXOS 29