Visto a partir daí, o modo ativo de vida é “laborioso”, o modo contemplativo é pura quietude; o modo de vida ativo dá-se em público, o contemplativo, no “deserto”; o modo ativo é devotado às “necessidades do próximo”, o modo contemplativo, à “visão de Deus”. (Duae sunt vitae, activa et contemplativa. Activa est in labore, contemplativa in requie. Activa in publico, contemplativa in deserto. Activa in necessitate proximi, contemplativa in visioni Dei.) Citei um autor medieval [Hugo de São Vítor] do século XII quase aleatoriamente porque a ideia de que a contemplação constitui o mais alto estado do espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental. A atividade do pensamento — segundo Platão, o diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo — serve apenas para abrir os olhos do espírito; e mesmo o nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a verdade. Em outras palavras, o pensamento visa à contemplação e nela termina, e a própria contemplação não é uma atividade, mas uma passividade; é o ponto em que as atividades espirituais entram em repouso. Segundo as tradições da Era Cristã, quando a filosofia se tornou serva da teologia, o pensamento passou a ser meditação, e a meditação passou novamente a terminar na contemplação, uma espécie de estado abençoado da alma em que o espírito não mais se esforçava por conhecer a verdade, mas por antecipar um estado futuro, recebendo-o temporariamente na intuição. (Descartes, de modo característico, ainda influenciado por essa tradição, chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations.) Com o surgimento da Era Moderna, o pensamento tornou-se principalmente um servo da ciência, do conhecimento organizado; e ainda que tenha ganho muito em atividade, segundo a convicção crucial da modernidade pela qual só posso conhecer o que eu mesmo produzo, foi a matemática, a ciência não empírica por excelência, em que o espírito parece lidar apenas consigo mesmo, que passou a ser a ciência das ciências, fornecendo a chave para as leis da natureza e do universo que se encontram ocultas pelas APARÊNCIAS. Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento, tornou-se axiomático para Descartes — durante a famosa noite de sua “revelação” — que havia “um acordo fundamental entre as leis da natureza [que estão ocultas pelas APARÊNCIAS e por percepções sensoriais enganosas] e as leis da matemática”; [André Bridoux, Descartes: Oeuvres et Lettres, Pléiade, Paris, 1937, Introduction, p. viii. Cf. Galileu: “les mathématiques sont la langue dans laquelle est écrit l’univers”, p. xiii. [as matemáticas são a língua na qual o Universo está escrito]] ou seja, entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera “semblância”. E ele acreditava realmente que com esse tipo de pensamento — que Hobbes denominava “cálculo de consequências” — poderia produzir conhecimento seguro sobre a existência de Deus, da natureza da alma e de outros assuntos do gênero. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
O vislumbre de Nietzsche de que “a eliminação do suprassensível elimina também o meramente sensível, e, portanto, a diferença entre eles” (Heidegger) [“Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’”, in Holzwege, Frankfurt, 1962, p. 193] é tão óbvia que desafia qualquer tentativa de datá-la historicamente; qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si. Assim, todos os modernos e elaborados argumentos contra o positivismo foram antecipados pela simplicidade insuperável do pequeno diálogo de Demócrito entre o espírito, o órgão do suprassensível, e os sentidos. As percepções sensoriais são ilusões, diz o espírito; elas mudam segundo as condições de nosso corpo; doce, amargo, cor, e assim por diante, existem somente nomo, por convenção entre os homens, e não physei, segundo a verdadeira natureza das APARÊNCIAS. Ao que os sentidos respondem: “Espírito infeliz! Tu nos derrotas enquanto de nós obténs a tua evidência [pisteis, tudo em que se pode confiar]? Nossa derrota será a tua ruína.” [B125 e B9] Em outras palavras, uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundos está perdido, não importa se o “verdadeiro mundo” aboliu o “mundo aparente”, ou se foi o contrário; rompe-se todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a orientar-se. Nesses termos, nada mais parece fazer muito sentido. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
Deus sempre nos julga pelas APARÊNCIAS? Suspeito que sim. W. H. Auden [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto, são próprias para ser vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para ser percebidas por criaturas sensíveis, dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer — a palavra “aparência” não faria sentido — se não existissem receptores de APARÊNCIAS: criaturas vivas capazes de conhecer, de reconhecer e de reagir — em imaginação ou desejo, aprovação ou reprovação, culpa ou prazer — não apenas ao que está aí, mas também ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
Já que os seres sensíveis — homens e animais, para os quais as coisas aparecem e que, como receptores, garantem sua realidade — são eles mesmos também APARÊNCIAS, próprias para e capazes tanto de ver como de ser vistas, de ouvir e de ser ouvidas, de tocar e de ser tocadas, eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal; não são menos “objetivos” do que uma pedra ou uma ponte. A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade “objetiva”. O que usualmente chamamos “consciência”, o fato de que estou cônscio de mim mesmo, e que, portanto, em algum sentido, posso aparecer para mim mesmo, jamais seria o bastante para assegurar a realidade (o Cogito me cogitare ergo sum, de Descartes, é um non sequitur, pela simples razão de que esta res cogitans nunca aparece, a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores). Vista da perspectiva do mundo, cada criatura que nasce nele chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem; são criaturas adequadas à existência mundana. Os seres vivos, homens e animais, não estão apenas no mundo, eles são do mundo. E isso precisamente porque são sujeitos e objetos — percebendo e sendo percebidos — ao mesmo tempo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
Talvez nada surpreenda mais neste nosso mundo, no entanto, do que a infinita diversidade de suas APARÊNCIAS, o simples valor de entretenimento de suas visões, seus sons e seus odores, algo que quase nunca é mencionado por pensadores e filósofos. (Somente Aristóteles, pelo menos incidentalmente, incluía a vida de fruição passiva dos prazeres que nossos órgãos corporais proporcionam entre os três modos de vida a ser escolhidos por aqueles que, não estando sujeitos à necessidade, podem devotar-se ao kalon, ao que é belo, em contraposição ao que é necessário e útil.) [Os três modos de vida são enumerados na Nicomachean Ethics, I, 5, e na Eudemian Ethics, 1215 a 35ss. Para a oposição entre o belo, o necessário e o útil, veja Politics, 1333 a 30ss. É interessante comparar os três modos aristotélicos de vida com a enumeração de Platão no Philebus — o modo do prazer, o modo do pensamento (phronesis) e um modo misto (22); contra o modo do prazer Platão defende que o prazer é em si mesmo ilimitado no tempo e na intensidade: “ele não se contém em si e dele não deriva começo, meio ou fim” (31a). E embora “concorde com todos os sábios (sophoi) […] em que o nous, a faculdade do pensamento e da verdade, é para nós o rei do céu e da terra” (28c), ele também pensa que, para meros mortais, uma vida “que não conhece nem alegrias nem sofrimentos”, embora a mais divina das vidas (33a-b) seria insuportável; e, portanto, “a fonte de toda beleza é uma mistura do ilimitado com o que estabelece limites” (26b).] Essa diversidade é correspondida por uma igualmente estarrecedora diversidade de órgãos sensoriais entre as espécies animais, de tal modo que o que realmente aparece às criaturas vivas assume enorme variedade de forma e figura: cada espécie animal vive em um mundo próprio. Ainda assim, todas as criaturas sensorialmente dotadas têm em comum a aparência como tal. Em primeiro lugar, um mundo que lhes aparece; em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, o fato de que elas próprias são criaturas que aparecem e desaparecem, o fato de que sempre houve um mundo antes de sua chegada e sempre haverá um mundo depois de sua partida. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
Ao contrário do estar-aí inorgânico da matéria morta, os seres vivos são meras APARÊNCIAS. Estar vivo significa ser possuído por um impulso de autoexposição que responde à própria qualidade de aparecer de cada um. As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas. O palco é comum a todos os que estão vivos, mas ele parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie. Parecer — o parece-me, dokei moi — é o modo — talvez o único possível — pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido. Aparecer significa sempre parecer para outros, e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores. Em outras palavras, tudo o que aparece adquire, em virtude de sua qualidade de aparecer, uma espécie de disfarce que pode de fato — embora não necessariamente — ocultar ou desfigurar. Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência, independentemente de sua identidade, é percebida por uma pluralidade de espectadores. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
A primazia da aparência, para todas as criaturas vivas perante as quais o mundo aparece sob a forma de um parece-me, é de grande relevância para o tópico com o qual vamos lidar — as atividades espirituais que nos distinguem das outras espécies animais. Pois, embora haja grandes diferenças entre essas atividades, todas elas têm em comum uma retirada do mundo tal como ele nos aparece, e um movimento para trás em direção ao eu. Isso não causaria maiores problemas se fôssemos meros espectadores, criaturas divinas lançadas no mundo para cuidar dele, dele tirar proveito e com ele nos entreter, mas tendo ainda alguma outra região como hábitat natural. Contudo, somos do mundo, e não apenas estamos nele; também somos APARÊNCIAS, pela circunstância de que chegamos e partimos, aparecemos e desaparecemos; e embora vindos de lugar nenhum, chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo. Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais, quando fechamos os olhos do corpo, usando a metáfora platônica, para poder abrir os olhos do espírito. A teoria dos dois mundos é uma das falácias metafísicas, mas ela não seria capaz de sobreviver durante tantos séculos se não houvesse correspondido de maneira tão razoável a algumas experiências fundamentais. Como certa vez Merleau-Ponty formulou, “só posso escapar do ser para o ser” [Thomas Langan, Merleau-Ponty’s Critique of Reason, New Haven, Londres, 1966, p. 93], e já que Ser e Aparecer coincidem para os homens, isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência. Mas o problema não está resolvido, pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer; e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer, ou se, de fato, eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]
Coisa bastante semelhante parece ser verdade para a ciência, especialmente para a ciência moderna que — de acordo com uma antiga observação de Marx — está de tal modo fundada na cisão entre Ser e Aparência, que não é mais necessário o esforço individual e particular do filósofo para chegar a alguma “verdade” por sob as APARÊNCIAS. O cientista também está sujeito às APARÊNCIAS, já que para descobrir o que está por trás da superfície deve abrir o corpo visível e espreitar o seu interior, ou surpreender objetos ocultos com a ajuda de todo tipo de equipamento sofisticado que os possa desnudar das propriedades exteriores pelas quais eles se apresentam aos nossos sentidos naturais. A noção que orienta esses esforços científicos e filosóficos é sempre a mesma: as APARÊNCIAS, como disse Kant, “devem ter um fundamento que não seja ele próprio uma aparência” [Critique of Pure Reason, B565]. Essa seria realmente uma generalização óbvia da maneira como as coisas naturais crescem e “aparecem” à luz do dia, vindas de um fundo de escuridão, caso agora não se estivesse pressupondo que esse fundo tem um grau mais alto de realidade do que aquilo que simplesmente aparece e logo depois volta a desaparecer. E assim como os “esforços conceituais” dos filósofos para encontrar algo além das APARÊNCIAS sempre terminaram com violentas invectivas contra as “meras APARÊNCIAS”, também as notáveis conquistas práticas dos cientistas para pôr a nu o que as APARÊNCIAS por si mesmas jamais revelam sem que haja alguma interferência foram realizadas à custa das APARÊNCIAS. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 2]
A primazia da aparência é um fato da vida cotidiana do qual nem o cientista nem o filósofo podem escapar, ao qual têm sempre que voltar em seus laboratórios e em seus estudos, e cuja força fica demonstrada pelo fato de nunca ter sido minimamente alterada ou desviada por qualquer coisa que eles tenham descoberto quando dela se afastaram. “Assim as ‘estranhas’ noções da nova física (…) (surpreendem) o senso comum (…) sem mudar nada em suas categorias.” [Maurice Merleau-Ponty, The Visible and the Invisible, Evanston, 1968, p. 17] Contra essa inabalável convicção do senso comum há a antiga supremacia teorética do Ser e da Verdade sobre a mera aparência, ou seja, a supremacia do fundamento que não aparece sob a superfície que aparece. Esse fundamento supostamente responde à mais antiga questão tanto da filosofia quanto da ciência: como pode alguma coisa ou alguém, inclusive eu mesmo, simplesmente aparecer, e o que faz com que apareça dessa e não de outra forma? A pergunta refere-se mais a uma causa do que a uma base ou a um fundamento; mas a questão é que a nossa tradição filosófica transformou a base de onde algo surge na causa que a produz; e em seguida concedeu a esse agente eficaz um grau mais elevado de realidade do que aquele atribuído ao que meramente se apresenta a nossos olhos. A crença de que a causa deve ocupar um lugar mais elevado do que o efeito (de tal modo que o efeito pode ser facilmente diminuído quando se remonta à sua causa) encontra-se entre as mais antigas e obstinadas falácias metafísicas. Também aqui não lidamos com um erro simplesmente arbitrário; a verdade é que não só as APARÊNCIAS nunca revelam espontaneamente o que se encontra por trás delas, mas também que, genericamente falando, elas nunca revelam apenas; elas também ocultam — “nenhuma coisa, nenhum lado de uma coisa se mostra sem que ativamente oculte os demais” [Maurice Merleau-Ponty, Signs, Evanston, 1964, introdução, p. 20]. As APARÊNCIAS expõem e também protegem da exposição, e, exatamente porque se trata do que está por trás delas, a proteção pode ser sua mais importante função. Em todo caso, isso é verdade para as criaturas vivas, cuja superfície protege e oculta os órgãos internos que são sua fonte de vida. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 2]
A incessante busca, empreendida pela ciência moderna, da base subjacente às meras APARÊNCIAS, deu força nova ao velho argumento. Ela obrigou o fundamento das APARÊNCIAS a se mostrar de tal modo que o homem, uma criatura adequada às APARÊNCIAS e delas dependente, possa se apoderar desse fundamento. Mas, ao contrário, os resultados foram surpreendentes. Ficou evidente que nenhum homem pode viver entre “causas”, ou dar conta de — em modo integral e em linguagem humana ordinária — um Ser cuja verdade pode ser cientificamente demonstrada em laboratório e testada praticamente no mundo real pela tecnologia. É como se o Ser, uma vez manifesto, sujeitasse as APARÊNCIAS — mas ninguém até hoje conseguiu viver em um mundo que não se manifeste espontaneamente. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 2]
É óbvio que a consciência desse impasse deveria ser muito mais aguda nas ciências que lidam diretamente com os homens; e a resposta — reduzida ao mínimo denominador comum — dos vários ramos da biologia, da sociologia e da psicologia foi no sentido de interpretar todas as APARÊNCIAS como funções no processo vital. A grande vantagem do funcionalismo é que ele nos apresenta novamente uma visão unitária do mundo e mantém intacta, embora de modo diferente, a velha dicotomia metafísica entre o (verdadeiro) Ser e a (mera) Aparência, junto com o velho preconceito da supremacia do Ser sobre a aparência. O argumento deslocou-se; as APARÊNCIAS não são mais depreciadas como “qualidades secundárias”, mas compreendidas como condições necessárias dos processos essenciais internos ao organismo vivo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]
Essa hierarquia foi recentemente desafiada de um modo que me parece altamente significativo. Em vez das APARÊNCIAS serem funções do processo vital, não seria o processo vital função das APARÊNCIAS? Já que vivemos em um mundo que aparece, não é muito mais plausível que o relevante e o significativo, nesse nosso mundo, estejam localizados precisamente na superfície? [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]
Em uma série de publicações sobre as várias formas e figuras da vida animal, o zoólogo e biólogo suíço Adolf Portmann mostrou que os fatos falam uma linguagem bastante diferente da simplista hipótese funcional segundo a qual as APARÊNCIAS, em seres vivos, servem puramente ao duplo propósito da autopreservação e da conservação da espécie. De um ponto de vista diferente, e, por assim dizer, mais inocente, parece mais que, ao contrário, os órgãos internos, que não aparecem, existem unicamente para produzir, sustentar as APARÊNCIAS. “Antes de todas as funções destinadas à preservação do indivíduo e da espécie […] está o simples fato de aparecer, como uma autoexposição que torna estas funções significativas” (grifos nossos) [Das Tier als soziales Wesen, Zurique, 1953, p. 252]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]
Isso significa que a própria forma de um animal “deve ser vista como um órgão especial de referência em relação ao olho que a observa […]. O olho e o que é para ser visto formam uma unidade funcional e vão se adequar reciprocamente segundo regras tão rígidas quanto as que determinam as relações entre os alimentos e os órgãos digestivos” [Animal Forms and Patterns, pp. 112, 113]. E, de acordo com essa inversão, Portmann distingue “APARÊNCIAS autênticas”, que surgem espontaneamente, e “APARÊNCIAS não autênticas”, tais como as raízes de uma planta ou os órgãos internos de um animal, que passam a ser visíveis unicamente por meio da interferência e da violação da aparência “autêntica”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]
Dois fatos da mesma importância dão maior razoabilidade a essa inversão. Em primeiro lugar, a impressionante diferença fenomênica entre APARÊNCIAS “autênticas” e “não autênticas”, entre formas externas e aparatos internos. As formas externas são infinitamente diversas e altamente diferenciadas; entre os animais mais desenvolvidos podemos em geral distinguir um indivíduo do outro. Além do mais, as características exteriores das coisas vivas são organizadas de acordo com uma lei de simetria, de tal modo que aparecem numa ordem sempre definida e agradável. Os órgãos internos, ao contrário, nunca constituem visão agradável; uma vez forçados a aparecer, dão a impressão de terem sido construídos por partes e, a não ser quando deformados por um doença ou anormalidade particular, parecem indiferenciados; nem mesmo as várias espécies animais — quanto mais os indivíduos — são facilmente distinguidas pela simples inspeção das vísceras. Quando Portmann define a vida como a “aparição externa de um interior” [Das tier als soziales Wesen, p. 64], ele parece estar sendo vítima das opiniões que critica; pois o fundamento de suas descobertas é que o que aparece externamente é tão inevitavelmente diferente do interior que dificilmente se pode dizer que o interior de fato apareça. O interior, o aparato funcional do processo vital, é recoberto por um exterior que — porque diz respeito àquele processo vital — tem uma única função, a saber, ocultá-lo e protegê-lo, impedir sua exposição à luz de um mundo que aparece. Se esse interior tivesse que aparecer, todos nós pareceríamos iguais. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]
As dificuldades são, contudo, muito mais do que meramente terminológicas. Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre corpo e alma. De fato, inclinamo-nos a concordar em que nenhuma parte do interior de nosso corpo jamais aparece autenticamente, por si mesma; mas, se falamos de uma vida interior que se expressa em APARÊNCIAS exteriores, referimo-nos à vida da alma; a relação interior-exterior, verdadeira para nossos corpos, não é verdadeira para nossas almas, mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização “interna” a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais. Além do mais, o mesmo emprego de metáforas caracteriza nossa linguagem conceitual, própria para tornar manifesta a vida do espírito. As palavras que usamos em linguagem estritamente filosófica também são invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo tal como ele é dado aos nossos cinco sentidos, de cuja experiência elas são, então, como registrou Locke, “transferidas” — metapherein, transportadas — “para significações mais abstrusas, passando a representar ideias que não chegam ao conhecimento de nossos sentidos”. Só por meio de tal transferência poderiam os homens “conceber aquelas operações que experimentaram em si mesmos e que não aparecem externamente aos sentidos” [Of Human Understanding, livro III, cap. 1, nº 5]. Locke apoia-se aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre alma e espírito segundo o qual ambos opõem-se ao corpo em virtude da invisibilidade que os caracteriza. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
A monótona mesmice e a feiura penetrante altamente características das descobertas da moderna psicologia — em contraste tão óbvio com a enorme variedade e riqueza da conduta humana pública — dão testemunho da diferença radical entre o interior e o exterior do corpo humano. As paixões e emoções de nossa alma não estão apenas restritas ao corpo, mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos, com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizá-los. Sem o impulso sexual, que se origina em nossos órgãos reprodutivos, o amor não seria possível; mas enquanto o impulso é sempre o mesmo, como é grande a variedade das APARÊNCIAS reais do amor! Decerto é possível compreender o amor como a sublimação do sexo; mas isso apenas quando se pensa que não há nada a ser compreendido como sexo sem amor; e que nem mesmo a seleção de um parceiro sexual seria possível sem a intervenção do espírito, ou seja, sem uma escolha deliberada entre o que apraz e o que não apraz. De forma similar, o medo é uma emoção indispensável à sobrevivência; ele indica perigo e sem esse sentido de advertência nenhuma coisa viva poderia durar muito tempo. O homem corajoso não é aquele cuja alma carece dessa emoção, ou que a pode superar de uma vez por todas; mas aquele que decidiu que não a quer demonstrar. A coragem pode tornar-se então uma segunda natureza ou um hábito, mas não no sentido do destemor substituir o medo, como se também ela pudesse tornar-se uma emoção. Tais escolhas são determinadas por vários fatores; muitas delas são determinadas pela cultura em que nascemos — são feitas porque queremos agradar aos outros. Mas há também escolhas que não estão inspiradas em nosso ambiente; podemos fazê-las porque queremos agradar a nós mesmos ou porque queremos estabelecer um exemplo, isto é, persuadir os demais a ter prazer com o que nos dá prazer. Quaisquer que sejam os motivos, o sucesso e o fracasso da iniciativa de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem assim apresentada ao mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Uma vez que as APARÊNCIAS sempre se apresentaram na forma do parecer, a fraude, presumida ou premeditada, da parte do ator, o erro e a ilusão se encontram inevitavelmente entre as potencialidades inerentes, da parte do espectador. A autoapresentação se distingue da autoexposição pela escolha ativa e consciente da imagem exibida; a autoexposição não tem outra escolha senão exibir quaisquer características que um ser vivo já tenha. A autoapresentação não seria possível sem certo grau de autoconsciência — uma capacidade inerente ao caráter reflexivo das atividades espirituais e que transcende visivelmente a simples consciência que provavelmente compartilhamos com os animais superiores. Propriamente falando, somente a autoapresentação está aberta à hipocrisia e ao fingimento, e a única forma de diferençar fingimento e simulação de realidade e verdade é a incapacidade que os primeiros desses elementos têm para perdurar guardando consistência. Já foi dito que a hipocrisia é o elogio que o vício faz à virtude, mas isso não é bem verdade. Toda virtude começa com um elogio feito a ela, pelo qual expresso minha satisfação com relação a ela. O elogio implica uma promessa feita ao mundo, feita àqueles aos quais agradeço, uma promessa de agir de acordo com minha satisfação; a quebra dessa promessa implícita é que caracteriza o hipócrita. Em outras palavras, o hipócrita não é um vilão que se satisfaz com o vício e esconde, daqueles que o rodeiam, a satisfação. O teste que se aplica ao hipócrita é, de fato, a velha máxima socrática: “Seja como quer aparecer” — o que significa apareça sempre como quer aparecer para os outros, mesmo quando você estiver sozinho e aparecer apenas para si mesmo. Quando tomo uma decisão desse tipo, não apenas reajo a quaisquer qualidades que me possam ter sido dadas; realizo um ato de escolha deliberada entre as várias potencialidades de conduta com as quais o mundo se apresentou a mim. De tais atos surge finalmente o que chamamos caráter ou personalidade, o conglomerado de um número de qualidades identificáveis, reunidas em um identificável todo compreensível e confiável, e que estão, por assim dizer, impressas em um substrato imutável de talentos e defeitos peculiares à nossa estrutura psíquica e corporal. Por causa da relevância inegável dessas características escolhidas para nossa aparência e para nosso papel no mundo, a filosofia moderna, a começar por Hegel, sucumbiu à estranha ilusão de que o homem, ao contrário das outras coisas, criou-se a si mesmo. Obviamente a autoapresentação e o simples estar-aí da existência não são o mesmo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Uma vez que a escolha, como fator decisivo da autoapresentação, tem que ver com as APARÊNCIAS, e uma vez que as APARÊNCIAS têm a dupla função de ocultar algum interior e revelar alguma “superfície” — por exemplo, ocultar o medo e revelar coragem, ou seja, esconder o medo mostrando coragem —, há sempre a possibilidade de que o que aparece possa, desaparecendo, resultar em mera semblância. Em função da lacuna entre interno e externo, entre base da aparência e aparência — ou, para pôr as coisas de outro modo, por mais diferenciados e individualizados que nós apareçamos e por mais deliberadamente que tenhamos escolhido essa individualidade —, o que permanece sempre verdadeiro é que “por dentro somos todos semelhantes”, imutáveis, a não ser quanto ao funcionamento de nossos órgãos internos psíquicos e corporais ou, inversamente, quanto a uma intervenção feita com o propósito de remover alguma disfunção. Assim, há sempre um elemento de semblância em toda aparência: a própria base não aparece. Daí não resulta que todas as APARÊNCIAS sejam meras semblâncias. As semblâncias só são possíveis em meio às APARÊNCIAS; elas pressupõem as APARÊNCIAS como o erro pressupõe a verdade. O erro é o preço que pagamos pela verdade, e a semblância é o preço que pagamos pelo prodígio das APARÊNCIAS. Erro e semblância são fenômenos intimamente relacionados, correspondem-se mutuamente. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 5]
A semblância é inerente em um mundo governado pela dupla lei do aparecer para uma pluralidade de criaturas sensíveis, cada uma delas dotada das faculdades de percepção. Nada do que aparece manifesta-se para um único observador capaz de percebê-lo sob todos os seus aspectos intrínsecos. O mundo aparece no modo do parece-me, dependendo de perspectivas particulares determinadas tanto pela posição no mundo quanto pelos órgãos específicos da percepção. Esse modo não só produz erro — que posso corrigir por uma mudança de posição, aproximando-me do que aparece ou aguçando meus órgãos perceptivos com o auxílio de instrumentos e implementos, ou, ainda, usando minha imaginação para levar em conta outras perspectivas —, mas também dá origem a semblâncias verdadeiras, ou seja, à aparência ilusória que não posso corrigir, como corrijo um erro, já que é causada por minha permanente posição na Terra e que continua inseparavelmente ligada à minha própria existência como uma das APARÊNCIAS terrenas. A semblância [dokos, de dokei moi], disse Xenófanes, está “moldada em todas as coisas”, de tal modo que “não há nem haverá nenhum homem que conheça claramente os deuses e tudo sobre o que falo; pois mesmo que alguém tentasse dizer o que aparece em sua realidade total, ele próprio não conseguiria” [Frag. 34]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 5]
A cada um de nossos cinco sentidos corresponde uma propriedade do mundo específica e sensorialmente perceptível. Nosso mundo é visível porque dispomos de visão, audível porque dispomos de audição, palpável e repleto de gostos e odores porque dispomos de tato, paladar e olfato. A propriedade mundana que corresponde ao sexto sentido é a realidade [realness]; a dificuldade que ela apresenta é que não pode ser percebida como as demais propriedades sensoriais. O sentido de realidade [realness] não é, estritamente falando, uma sensação; a realidade “está lá mesmo que nunca tenhamos certeza de conhecê-la” (Peirce) [Citado de Thomas Landon Thorson, Biopolitics, Nova York, 1970, p. 91], pois a “sensação” de realidade, do mero estar-aí, relaciona-se ao contexto no qual objetos singulares aparecem, assim como ao contexto no qual nós, como APARÊNCIAS, existimos em meio a outras criaturas que aparecem. O contexto como tal nunca aparece completamente; ele é evasivo, quase como o Ser que, como Ser, nunca aparece em um mundo repleto de seres, de entes singulares. Mas o Ser, que é, desde Parmênides, o mais elevado conceito da filosofia ocidental, é uma coisa-pensamento que nós não esperamos que seja percebida pelos sentidos ou que produza uma sensação; ao passo que a realidade [realness] é parente da sensação; um sentimento de realidade [realness] ou irrealidade acompanha de fato todas as sensações de meus sentidos que, sem ele, não fariam “sentido”. Eis por que Tomás de Aquino definia o senso comum, seu sensus communis, como um “sentido interno” — sensus interior — que funcionava como a “raiz comum e o princípio dos sentidos exteriores” (“Sensus interior non dicitur communis […] sicut genus; sed sicut communis radix et principium exteriorum sensuum”) [Summa Theologica, parte I, questão 78, 4 ad. 1]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
À primeira vista, algo muito semelhante parece valer para o cientista moderno, que constantemente destrói semblâncias autênticas sem, contudo, destruir sua própria sensação de realidade. Esta lhe diz, como nos diz a todos, que o Sol nasce pela manhã e se põe à tarde. Foi o pensamento que permitiu ao homem penetrar nas APARÊNCIAS e desmascará-las como semblâncias, ainda que autênticas; o raciocínio do senso comum jamais teria ousado contestar de modo tão radical todas as plausibilidades de nosso aparelho sensorial. A famosa “querela entre os antigos e os modernos” suscita realmente a questão de qual seja o propósito do conhecimento; trata-se de “salvar os fenômenos”, como acreditavam os antigos, ou de descobrir o aparelho funcional oculto que os faz aparecer? A dúvida do pensamento a respeito da confiabilidade da experiência sensorial — sua suspeita de que as coisas possam ser distintas da maneira pela qual aparecem aos sentidos humanos — não era, de modo algum, inusitada na Antiguidade. Os átomos de Demócrito eram não só indivisíveis, mas invisíveis, movendo-se em um vazio, infinitos em número e, por meio de várias configurações e combinações, produziam impressões em nossos sentidos; Aristarco, no século III a.C., formulou pela primeira vez a hipótese heliocêntrica. É interessante notar que as consequências de tais ousadias foram bastante desagradáveis: Demócrito ficou sob suspeita de insanidade e Aristarco foi ameaçado com uma acusação de impiedade. Mas, naturalmente, o ponto mais relevante é que nenhuma tentativa foi feita para provar tais hipóteses; e delas não surgiu ciência alguma. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
O fato de a ciência moderna, sempre em busca de manifestações do invisível — átomos, moléculas, partículas, células, genes —, ter acrescentado ao mundo uma quantidade espetacular e inédita de novos objetos perceptíveis é apenas um aparente paradoxo. Para provar ou refutar suas hipóteses, seus “paradigmas” (Thomas Kuhn), e descobrir o que faz as coisas funcionarem, a ciência começou a imitar os processos operativos da natureza. Com esse fim, produziu os mais incontáveis e complexos instrumentos com que forçar o que não aparece a aparecer (pelo menos como leitura de instrumentos de laboratório), pois esse era o único meio de que o cientista dispunha para persuadir-se da realidade daquelas coisas. A moderna tecnologia nasceu no laboratório, mas não porque os cientistas quisessem produzir resultados práticos ou mudar o mundo. Não importa quanto suas teorias se distanciem da experiência e do raciocínio do senso comum, elas devem no final retornar a eles de alguma forma, ou perder todo sentido de realidade do objeto de sua investigação. E esse retorno só é possível através do mundo artificial do laboratório, um mundo feito pelo homem, onde o que não aparece espontaneamente é forçado a aparecer e a desvelar-se. A tecnologia, o trabalho de “encanador” — um tanto desprezado pelo cientista, que vê a aplicabilidade prática como um mero subproduto de seus próprios esforços —, introduz descobertas científicas, feitas em um “insulamento das exigências […] da vida laica e cotidiana sem paralelo” [Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, 1962, p. 163], no mundo cotidiano das APARÊNCIAS, e torna-as acessíveis à experiência do senso comum. Mas isso só é possível porque os próprios cientistas dependem, em última instância, dessa experiência. Visto da perspectiva do mundo “real”, o laboratório é a antecipação de um ambiente alterado, e os processos cognitivos que usam as habilidades humanas de pensar e fabricar como meios para seus fins são os modos mais refinados do raciocínio do senso comum. A atividade de conhecer não está menos relacionada ao nosso sentido de realidade, e é tanto uma atividade de construção do mundo quanto a edificação de casas. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
Denominei essas atividades espirituais de básicas porque elas são autônomas; cada uma delas obedece às leis inerentes à própria atividade, embora todas elas dependam de uma certa quietude das paixões que movem a alma, daquela “tranquilidade desapaixonada” (“leidenschaftslose Stille”) que Hegel atribuiu à “cognição meramente pensante” [Science of Logic, prefácio à 2ª edição]. Uma vez que é sempre a mesma pessoa cujo espírito pensa, quer e julga, a natureza autônoma dessas atividades produz grandes dificuldades. A incapacidade da razão para mobilizar a vontade, mais o fato de que o pensamento só pode “compreender” o que já é passado, sem removê-lo ou “rejuvenescê-lo” — “a coruja de Minerva só começa o seu voo quando cai o crepúsculo” [Philosophy of Right, prefácio] —, deu origem a várias doutrinas que afirmam a impotência do espírito e a força do irracional, em suma, deu origem ao famoso pronunciamento de Hume segundo o qual “a Razão é e deve ser somente a escrava das paixões”; isto é, levou a uma inversão bastante ingênua da noção platônica de reinado incontestável da razão no domínio da alma. O que é notável, em todas essas teorias e doutrinas, o monismo implícito, a suposição de que por trás da óbvia multiplicidade das APARÊNCIAS do mundo e, de modo mais pertinente ainda para o nosso contexto, por trás da óbvia pluralidade das faculdades e das capacidades humanas, deve haver uma unidade — o velho hen pan, “o todo é um” —, uma única origem ou um único soberano. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A importância de Hegel em nosso contexto está no fato de que ele, talvez mais do que qualquer outro filósofo, atesta a luta interna entre a filosofia e o senso comum; porque ele, por natureza, é igualmente bem-dotado como historiador e pensador. Ele sabia que a intensidade das experiências do ego pensante deve-se ao fato de elas serem pura atividade: “A própria essência [do espírito] […] é ação. Ele faz de si mesmo o que essencialmente ele é; ele é seu próprio produto, sua própria obra.” E Hegel conhecia a reflexividade do espírito: “Nesta ânsia de atividade, ele apenas lida consigo mesmo.” [Reason in History, trad. Robert S. Hartman, Indianápolis, Nova York, 1953, p. 89] Até admitia, a seu modo, a tendência do espírito para destruir seus próprios resultados: “Assim, o espírito está em guerra consigo mesmo. Deve superar a si mesmo como seu próprio inimigo e formidável obstáculo.” [Reason in History. Tradução do autor] Mas esses insights da razão especulativa sobre o que ela está realmente fazendo quando, do ponto de vista das APARÊNCIAS, não está fazendo nada, ele transformou-os em peças de conhecimento dogmático, tratando-os como resultados da cognição. Dessa maneira, foi possível adequá-los a um sistema abrangente em que então teriam a mesma realidade que os resultados das demais ciências; resultados que, por outro lado, ele denunciou como produtos essencialmente desimportantes do raciocínio do senso comum, ou “conhecimento defeituoso”. E de fato o sistema, com sua organização estritamente arquitetônica, pode dar pelo menos uma impressão da realidade aos fugazes insights da razão especulativa. Se a verdade é tomada como o mais elevado objeto do pensamento, então o “verdadeiro é real apenas como sistema”. Apenas como um artefato mental desse tipo ele tem alguma chance de aparecer e adquirir aquele mínimo de durabilidade que exigimos de qualquer real — como mera proposição, ele dificilmente sobreviverá à batalha de opiniões. Para ter certeza de que eliminou a noção de senso comum, segundo a qual o pensamento lida com abstrações e irrelevâncias — o que de fato ele não faz —, Hegel afirmou, sempre no mesmo tom polêmico, “que o Ser é Pensamento” (dass das Sein Denken ist), que “apenas o espiritual é real” e que apenas aquelas generalidades com as quais lidamos no pensamento realmente são [Prefácio à Phenomenology of Mind]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
De todas as necessidades humanas, a “necessidade da razão” é a única que jamais poderia ser adequadamente satisfeita sem o pensamento discursivo; e o pensamento discursivo é inconcebível sem palavras já significativas, antes que um espírito viaje, por assim dizer, através delas — poreuesthai dia logon (Platão). A linguagem sem dúvida serve também para a comunicação entre os homens; mas, aí, sua necessidade vem simplesmente do fato de que os homens, seres pensantes que são, têm a necessidade de comunicar seus pensamentos; os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser falados — silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso. Como o pensar, embora sempre proceda por palavras, não necessita de ouvintes, Hegel pôde, de acordo com o testemunho da maioria dos filósofos, dizer que “a filosofia é algo solitário”. E a razão — não porque o homem seja um ser pensante, mas porque ele só existe no plural — também quer a comunicação e tende a perder-se caso dela tenha que se privar; pois a razão, como observou Kant, não é de fato “talhada para isolar-se, mas para comunicar-se” [“Reflexionen zur Anthropologie”, nº 897, Akademie Ausgabe, vol. XV, p. 392]. A função desse discurso silencioso — tacite secum rationare, “raciocinar silenciosamente consigo mesmo”, nas palavras de Anselmo de Canterbury [Monologion] — é entrar em acordo com o que quer que possa ser dado aos nossos sentidos nas APARÊNCIAS do dia a dia; a necessidade da razão é dar conta — logon didonai, como a chamavam os gregos com grande precisão — de qualquer coisa que possa ser ou ter sido. Isso é proporcionado não pela sede do conhecimento — a necessidade pode surgir em conexão com fenômenos bastante conhecidos e inteiramente familiares —, mas pela busca do significado. O puro nomear das coisas, a criação de palavras, é a maneira humana de apropriação, e, por assim dizer, de desalienação do mundo no qual, afinal, cada um de nós nasce, como um recém-chegado e um estranho. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Seria tentador acreditar que o pensamento metafórico é um perigo somente quando é utilizado pelas pseudociências; e que o pensamento filosófico, se não tem pretensão à verdade demonstrável, está a salvo na utilização de metáforas apropriadas. Infelizmente não é esse o caso. Os sistemas-de-pensamento dos grandes filósofos e metafísicos do passado apresentam uma desconfortável semelhança com os constructos espirituais das pseudociências; exceto pelo fato de que os grandes filósofos, em contraste com a convicção absoluta de seus confrades inferiores, insistiram quase que unanimemente em algo “inefável” por trás das palavras escritas, algo de que, quando pensavam e não escreviam, tinham clara ciência e que, entretanto, resistia a ser definido e transmitido para os outros; os filósofos insistiram, em resumo, em que havia algo que se recusava a passar por uma transformação que fizesse com que esse algo aparecesse e tomasse seu lugar entre as APARÊNCIAS do mundo. Retrospectivamente, somos tentados a ver essas sempre recorrentes declarações como tentativas de advertir o leitor de que ele estaria correndo o risco de cometer um erro fatal de compreensão: o que se oferecia a ele eram pensamentos, não cognições, não pedaços sólidos de conhecimento que, uma vez adquiridos, dissipariam a ignorância; como filósofos, estiveram inicialmente interessados em assuntos que escapavam ao conhecimento humano, sem que por isso escapassem à razão humana, vendo-se inclusive atormentados por ela. E uma vez que, na busca dessas questões, os filósofos inevitavelmente descobriram um grande número de coisas de fato cognoscíveis, a saber, todas as leis e axiomas do pensar correto e as várias teorias do conhecimento, eles próprios bem cedo acabaram por embaçar a distinção entre pensar e conhecer. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
O que recomendou a visão como metáfora-guia na filosofia — e, juntamente com a visão, a intuição como ideal de verdade — foi não somente a nobreza desse nosso sentido mais cognitivo, como também a própria noção inicial de que a busca filosófica do significado era idêntica à busca, pelo cientista, do conhecimento. Vale a pena relembrar aqui a estranha torção que Aristóteles dá, no primeiro capítulo da Metafísica, à proposição de Platão de que thaumazein, o espanto, é o começo de toda filosofia. Mas a identificação da verdade com o significado foi feita, é claro, em momento ainda anterior. Porque o conhecimento vem da busca daquilo que nos acostumamos a chamar de verdade; e a forma mais alta, mais definitiva da verdade cognitiva é a intuição. Todo conhecimento começa na investigação das APARÊNCIAS tais como nos são dadas aos sentidos. E se o cientista quiser prosseguir e descobrir as causas dos efeitos visíveis, seu objetivo final será fazer aparecer o que possa estar escondido por trás das simples superfícies. Isso é verdade até mesmo para os mais complicados instrumentos mecânicos, projetados para capturar o que se esconde à inspeção a olho nu. Em última análise, a confirmação da teoria de qualquer cientista surge pela evidência dos sentidos — exatamente como no modelo simplista que tomei de Heidegger. A tensão a que aludi entre a visão e a fala não entra aqui; nesse nível, como no exemplo citado, a fala traduz a visão de maneira bastante adequada (seria diferente se o conteúdo do quadro, e não somente sua posição na parede, tivesse que ser expresso em palavras). O simples fato de que os símbolos matemáticos possam ser substituídos por palavras reais e que possam mesmo ser o mais expressivo dos fenômenos subjacentes forçados a aparecer pelos instrumentos, contra sua própria inclinação, demonstra a eficácia superior das metáforas da visão para tornar manifesta qualquer coisa que dispense a fala como condutora. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
A paixão de ver, como já observamos, precede, na língua grega, até mesmo gramaticalmente, a sede de conhecimento. Que ela tenha caracterizado a atitude grega básica diante do mundo parece-me algo óbvio demais para exigir documentação. O que quer que aparecesse estava lá, antes de tudo, para ser olhado e admirado — a natureza e a ordem harmoniosa do kosmos, as coisas que vieram a ser por si mesmas e as que as mãos humanas “trouxeram ao ser” (“agein eis ten ousian” é a definição de Platão da fabricação, to poiein), bem como qualquer excelência humana (arete) apresentada no âmbito das coisas humanas [Sophist, 219b]. O que induziu os homens à mera contemplação foi o kalon, a simples beleza das APARÊNCIAS, de tal forma que “a mais alta ideia do bem” encontrava-se no que mais brilhava (tou ontos phanotaton) [Republic, 518c]. A virtude humana, o kalon k’agathon, não era avaliada nem pela intenção ou qualidade inata do ator, nem pela consequência de seus atos, mas apenas pela execução, como ele apareceria enquanto estava fazendo. A virtude era o que nós chamaríamos de virtuosismo. Assim como nas artes, os feitos humanos tinham que “brilhar por seus méritos intrínsecos”, para usar uma expressão de Maquiavel [The Discourses, livro II, introdução]. Tudo o que existia deveria ser, em primeiro lugar, um espetáculo digno dos deuses, do qual os homens, evidentemente — como parentes pobres dos habitantes do Olimpo —, desejavam aproveitar uma parte. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]
Em termos conceituais: o significado daquilo que realmente acontece e aparece enquanto está acontecendo só é revelado quando desaparece. A lembrança — por meio da qual tornamos presente para o nosso espírito o que de fato está ausente e pertence ao passado — revela o significado, na forma de uma história. O homem que faz a revelação não está envolvido com as APARÊNCIAS; ele é cego, protegido contra o visível, para poder “ver” o invisível. E o que ele vê com os olhos cegos e põe em palavras é a história, não é nem o próprio ato, nem o agente, embora a fama do agente venha a atingir grandes alturas. Daí surge a pergunta tipicamente grega: “Quem se torna imortal, o agente ou o narrador?” Ou: “Quem está na dependência de quem?” O agente depende do poeta, já que este torna aquele famoso; ou o poeta depende do agente, pois ele precisa realizar coisas que mereçam ser lembradas? Basta lermos a oração fúnebre de Péricles, no livro de Tucídides, para perceber que a questão permanece sem solução; sua resposta depende de quem responde a ela, o homem de ação ou o espectador. Péricles, estadista e amigo dos filósofos, considerava que a grandeza de Atenas, a cidade que se tornara “uma escola para a Hélade” (assim como Homero se tornara o professor de todos os gregos), devia-se ao fato de “não precisar de nenhum Homero ou de qualquer outro com o seu ofício” para tornar-se imortal. Os atenienses teriam deixado atrás de si, pelo simples poder de sua audácia, “monumentos imorredouros” em terras e mares [Tucídides, II, 41]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]
Introduzi Heráclito à guisa de explicação, já que o próprio Platão não especifica a que se dirige esse espanto admirativo. Ele também não diz como esse maravilhamento original transforma-se no diálogo do pensamento. Em Heráclito, a importância do logos é ao menos sugerida no seguinte contexto: Apolo, diz ele, “o mestre do oráculo de Delfos”, e, podemos acrescentar, o deus dos poetas, “não fala nem esconde, mas indica” (“oute legei oute kryptei, alla émainei”) [B93]. Isto é, ele ambiguamente insinua algo para ser entendido apenas por aqueles que compreendem simples insinuações (o deus winkt — acena —, na tradução de Heidegger). De uma sugestão ainda mais tantalizante é outro fragmento: “Olhos e ouvidos são más testemunhas para os homens quando eles têm almas bárbaras” [B107], isto é, quando não possuem logos. Para os gregos, o logos não era apenas a fala, mas o dom do argumento racional que os distinguia dos bárbaros. Em suma, o espanto levou a pensar em palavras, a experiência do espanto diante do invisível manifesto nas APARÊNCIAS foi apropriada pela fala, que, ao mesmo tempo, é forte o suficiente para dissipar os erros e as ilusões a que nossos órgãos para o visível — olhos e ouvidos — estão sujeitos quando o pensamento não vem em seu socorro. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]
Existe, evidentemente, uma diferença decisiva entre a investigação sobre os assuntos divinos empreendida por Platão e Parmênides e as tentativas de Sólon e Sócrates, aparentemente mais humildes, de definir as “medidas que não se veem”, que ligam e determinam os negócios humanos. E é enorme a relevância dessa diferença para a história da filosofia (que não é a história do pensamento). Importa, em nosso contexto, é que nos dois casos o pensamento ocupa-se com as coisas invisíveis para as quais, não obstante, as APARÊNCIAS apontam (o céu estrelado acima de nós ou os feitos e destinos dos homens), coisas invisíveis que estão presentes no mundo visível da mesma maneira que os deuses homéricos, que eram visíveis apenas para aqueles de quem se aproximavam. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]
Dito de outra maneira, a observação de Valéry — quando pensamos não somos — estaria correta se nosso sentido de realidade [realness] fosse inteiramente determinado por nossa existência espacial. O “em-toda-parte” do pensamento é de fato uma região do lugar nenhum. Mas nós não existimos apenas no espaço, existimos também no tempo, lembrando, coletando e recolhendo o que não está mais presente fora do “ventre da memória” (Agostinho), antecipando e planejando, na forma da vontade, o que ainda não é. Talvez a pergunta “onde estamos quando pensamos?” estivesse errada porque, ao perguntar pelo topos dessa atividade, nós estivéssemos orientados exclusivamente pelo sentido espacial — como se tivéssemos esquecido o famoso insight de Kant de que “o tempo nada mais é do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e de nosso estado interno”. Para Kant, isso significa que o tempo nada tem a ver com as APARÊNCIAS enquanto tais — “nem com a figura nem com a posição” como estão dadas aos nossos sentidos —, mas apenas com as APARÊNCIAS enquanto afetam nosso “estado interno”, no qual o tempo determina “a relação das representações” [Critique of Pure Reason, 849, 850]. E essas representações — através das quais tornamos presente o que fenomenicamente está ausente — são, sem dúvida, coisas-pensamento, isto é, experiências ou noções sobre as quais se efetuou uma operação de desmaterialização. Através dela, o espírito espera preparar seus próprios objetos e, ao “generalizá-los”, priva-os igualmente de suas propriedades espaciais. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 19]
Para mim, essa parábola descreve a sensação temporal do ego pensante. Ela analisa poeticamente nosso “estado interno” em relação ao tempo, do qual nos damos conta quando nos retiramos das APARÊNCIAS e encontramos nossas atividades espirituais voltando-se, de modo característico, sobre si mesmas — cogito me cogitare, volo me velle etc. A sensação interna do tempo surge não quando estamos inteiramente absorvidos pelos invisíveis ausentes sobre os quais pensamos, mas quando começamos a dirigir nossa atenção para a própria atividade. Nessa situação, passado e futuro estão igualmente presentes, precisamente porque estão igualmente ausentes da nossa percepção. Assim, o não-mais do passado é transformado, graças à metáfora espacial, em algo que se encontra atrás de nós, e o ainda-não do futuro, em algo que se aproxima pela frente (a palavra alemã Zukunft bem como a francesa avenir significam, literalmente, “o que vem”). Em Kafka, esse cenário é um campo de batalha onde as forças do passado e do futuro chocam-se uma contra a outra. Entre elas encontramos o homem que Kafka chama “Ele”, que, se pretende manter sua posição, tem que enfrentar ambas as forças. Elas são “seus” antagonistas; elas não são apenas opostas, e dificilmente entrariam em luta se “ele” não estivesse no meio delas, opondo resistência. Mesmo que tal antagonismo fosse de alguma forma inerente às duas e elas pudessem lutar uma contra a outra, sem “ele”, há muito tempo elas já teriam se neutralizado e destruído reciprocamente, já que, como forças, são claramente equipotentes. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Assim, Schiller declarou que “não há outro poder no homem a não ser a sua Vontade”, e que a Vontade, como “o fundamento da realidade, tem poder sobre a Razão e a Sensualidade”, cuja oposição — a oposição de duas necessidades, Verdade e Paixão — provê a origem da liberdade [Uber die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen, 1795, 19ª carta]. Assim, Schopenhauer concluiu que a coisa-em-si kantiana, o Ser por trás das APARÊNCIAS, a “natureza mais interna” do mundo, seu “cerne”, do qual “o mundo objetivo […] [é] simplesmente o lado de fora”, é a Vontade [The World as Will and Idea (1818), traduzido por R. B. Haldane e J. Kemp. vol. I, pp. 39 e 129. Citado aqui da introdução de Konstantin Kolenda ao Essay on the freedom of the Will, de Arthur Schopenhauer, Library of Liberal Arts. Indianápolis, Nova York, 1960, p. viii.], enquanto Schelling, em um nível muito mais alto de especulação, declarou apoditicamente: “Na instância final e mais alta, não há outro Ser além da Vontade.” [Of Human Freedom (1809), traduzido por James Gutmann, Chicago, 1936, p. 24] Esse desenvolvimento, contudo, alcançou o ápice com a filosofia da história de Hegel (a qual, por esta razão, prefiro tratar em separado) e chegou a um final surpreendentemente rápido no fim do mesmo século. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
Mencionei anteriormente o embaraço de Kant “para lidar com […] um poder de começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos” — por exemplo, se, “neste momento, levanto-me de minha cadeira […] uma nova série tem seu começo absoluto com este acontecimento, embora [acrescenta ele], no que diz respeito ao tempo, este acontecimento seja apenas a continuação de uma série precedente” [Critique of Pure Reason, B478]. Bastante problemática é a noção de um começo absoluto, pois “uma série começando no mundo pode apenas relativamente ter um primeiro começo, sendo sempre precedida de algum outro estado de coisas”, e isso, naturalmente, também se aplica à pessoa do pensador, visto que eu, que penso, jamais deixo de ser uma aparência entre APARÊNCIAS, por mais que consiga retirar-me dessas APARÊNCIAS espiritualmente. Sem dúvida, a própria hipótese de um começo absoluto remonta à doutrina bíblica da Criação, em contraposição às teorias orientais de emanação, segundo as quais forças preexistentes desenvolveram-se e expandiram-se em um mundo. Mas essa doutrina é uma razão suficiente em nosso contexto somente se acrescentarmos que a criação de Deus é ex nihilo, e que uma criação desse tipo é desconhecida pela Bíblia hebraica; trata-se de um acréscimo feito em especulações posteriores. [Ver Hans Jonas, “Jewish and Christian Elements in Philosophy”, in Philosophical essays: From Ancient Creed to Technological Man, Englewood Cliffs, 1974.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
De relevância talvez ainda maior são as pregações de Jesus contra a hipocrisia como o pecado dos fariseus e sua suspeita das APARÊNCIAS: “Por que olhas para o argueiro que está no olho de teu irmão e não descobres a trave que está no teu?” (Lucas 6:41). E eles “gostam de andar com ricos mantos, de ser cumprimentados nas praças” (Lucas 20:46), o que coloca um problema que deve ter sido familiar para homens da Lei. A questão é que tudo o que se faça de bom, justamente pelo fato de aparecer, para os outros ou para si, fica sujeito ao autoquestionamento [Hans Jonas, Augustin und das paulinische Freiheitsproblem, 2ª ed., Göttingen, 1965; ver especialmente apêndice. III, publicado como “Philosophical Meditation on the Seventh Chapter of Pauls Epistle to the Romans”, in The Future of our Religious Past, ed. James M. Robinson, Londres, Nova York, 1971, pp. 333-350.]. Jesus sabia disso: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mateus 6:3), isto é, vive à sombra, até mesmo à sombra de ti mesmo, e não te preocupes em ser bom — “Ninguém há de bom, senão um que é Deus” (Lucas 18:19). A despeito disso, esse adorável descuidar-se dificilmente poderia ser mantido em um tempo em que fazer o bem e ser bom tinham se transformado em um requisito para superar a morte e herdar a vida eterna. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
No volume anterior, falei da antiga noção grega de que todas as APARÊNCIAS, porque aparecem, não só implicam a presença de criaturas sensíveis capazes de percebê-las, mas também requerem reconhecimento e louvor. Essa noção era uma espécie de justificação filosófica da poesia e das artes; a alienação do mundo, que precedeu o surgimento do pensamento estoico e do cristão, conseguiu eliminá-la de nossa tradição — embora nunca a tenha apagado totalmente das reflexões dos poetas. (Ainda se pode encontrá-la, expressa com muita ênfase, em W. H. Auden, que fala sobre “Aquele singular comando/ Não o entendo,/ Agradeça ao que há por existir,/ A que devo obedecer, pois/ Para que mais sou feito/ para concordar ou divergir?” [“Precious Five”, Collected Poems, Nova York, 1976, p. 450], no poeta russo Osip Mandelstam e, é claro, na poesia de Rainer Maria Rilke.) Quando se encontra essa noção em um contexto estritamente cristão, ela já tem um sabor argumentativo desconfortável, como se fosse simplesmente uma conclusão necessária da fé incontestada no Deus-Criador, como se os cristãos tivessem a obrigação de repetir as palavras de Deus após a Criação — “E Deus viu tudo […] e […] isso era muito bom.” De todo modo, as observações de Agostinho sobre a impossibilidade de um não-querer completo, já que não se pode não-querer a própria existência enquanto se está não-querendo — é impossível, portanto, não-querer absolutamente, até mesmo no suicídio —, configuram uma refutação efetiva das artimanhas espirituais que os filósofos estoicos recomendaram para habilitar os homens a retirar-se do mundo continuando a viver nele. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Além disso, ao fixarmos nosso espírito no que vemos ou ouvimos, estamos dizendo à nossa memória o que é para ser lembrado, e ao nosso intelecto, o que é para ser entendido, que objetos se deve tentar alcançar na busca de conhecimento. A memória e o intelecto retiraram-se das APARÊNCIAS exteriores, e não é com essas APARÊNCIAS em si (a árvore real) que lidam, mas com imagens (a árvore vista) que estão claramente dentro de nós. Em outras palavras, a Vontade, por meio da atenção, primeiro une os nossos órgãos dos sentidos ao mundo real de uma forma significativa; e então arrasta esse mundo exterior para dentro de nós, preparando-o para operações posteriores do espírito: para ser lembrado, para ser entendido, para ser afirmado ou negado. Pois as imagens internas não são absolutamente meras ilusões. “Ao nos concentrarmos com exclusividade nas imaginações internas, e ao voltarmos por completo o olho do espírito para longe dos corpos que cercam os nossos sentidos”, deparamos “com uma semelhança tão surpreendente das espécies corpóreas expressadas pela memória”, que é difícil dizer se estamos vendo ou simplesmente imaginando. “Tão grande é o poder do espírito sobre o seu corpo” que a pura imaginação “pode despertar os órgãos genitais” [Ibidem, cap. iv, 7]. Esse poder do espírito deve-se não ao Intelecto, tampouco à Memória, mas somente à Vontade, que une a interioridade do espírito ao mundo exterior. A posição privilegiada do homem dentro da Criação, no mundo exterior, se deve ao espírito, que “imagina de dentro, e ainda assim imagina coisas que são de fora. Pois ninguém poderia usar tais coisas [do mundo exterior] […], a não ser que as imagens das coisas sensíveis ficassem retidas na memória, e a não ser […] que a mesma vontade [fosse] adaptada tanto aos corpos de fora quanto às suas imagens de dentro” [Ibidem, cap. v, 8]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Ainda assim, se parece óbvio para Scotus que a razão natural dos filósofos jamais alcançou as “verdades” proclamadas pela revelação divina, continua sendo inegável que a noção de divindade antecedeu a qualquer revelação cristã, o que significa que deve haver uma capacidade espiritual no homem pela qual ele é capaz de transcender tudo o que lhe é dado, e de transcender, portanto, a própria factualidade do Ser. Ele parece ser capaz de transcender a si próprio. Pois o homem, segundo Scotus, foi criado junto com o Ser, como parte inseparável dele — assim como, para Agostinho, o homem foi criado não no tempo, mas junto com o tempo. Seu Intelecto está em sintonia com este Ser e seus órgãos sensoriais são talhados para a percepção de APARÊNCIAS; seu Intelecto é “natural”, “cadit sub natura” [Citado de Stadter, op. cit., p. 315]; o homem é forçado a aceitar, compelido pela evidência do objeto, qualquer coisa que o Intelecto lhe proponha: “Non habet in potestate sua intelligere et non inelligere.” [Citado de Auer, op. cit., p. 86] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Esse Alguém, o pensador que se desabituou de querer, passando a “deixar-ser”, é, na verdade, o “autêntico Eu” de Ser e Tempo, que agora ouve o chamado do Ser, em lugar do chamado da Consciência. Diferente do Eu, o pensador não é convocado por si mesmo a seu Eu; contudo “ouvir o chamado autenticamente significa mais uma vez persuadir-se a agir factualmente” (“sich in das faktische Handeln bringen”) [Ibidem, nº 59, p. 294]. Nesse contexto, a “reviravolta” significa que o Eu não atua mais em si mesmo (o que se abandonou foi o In-sich-handeln-lassen des eigensten Selbst) [Ibidem, n° 59-60, p. 295], mas, obediente ao Ser, desempenha pelo pensamento puro o papel de contracorrente de Ser que subjaz à “espuma” dos seres — as meras APARÊNCIAS cuja corrente é conduzida pela vontade de potência. O “Eles” reaparece aqui, mas sua principal característica não é mais o “palavrório” (Gerede); é a destrutividade inerente ao querer. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]