Figal (2005:224-228) – ser culpado originário [Schuldigsein]

Heidegger chega ao conceito do “ser culpado originário” (Schuldigsein) na medida em que analisa mais exatamente a determinação formal da culpa (Schuld). “Na ideia de (225) ‘culpado’” (Schuldig) reside “o caráter do não” (Charakter des Nicht) (ST, 283). Juntamente com a característica anteriormente já trabalhada em meio à análise da culpa, esse caráter conduz do “ser fundamento” (Grundsein) para a determinação: “Ser fundamento de um ser determinado por um não — isso significa ser fundamento de uma nulidade” (Grundsein einer Nichtigkeit) (ST, 283). Essa nulidade pode ser concebida inicialmente como negatividade do comportamento (Verhalt) determinado. Quem se comporta de uma maneira determinada abstrai, expressamente ou não, de jeitos e movimentos que não pertencem à coisa mesma com a qual tem a ver. Mas não apenas os momentos do comportamento que perfazem em sua coordenação o comportamento, mas também o comportamento uniforme mesmo é caracterizado pela negatividade: “podendo ser”, nós “sempre nos encontramos a cada vez em uma ou em outra possibilidade, constantemente não” “somos um outro”, e isso pertence ao ser livre do ser-aí para as suas possibilidades existenciárias”: “A liberdade (…) só é na escolha de uma possibilidade, ou seja, no suportar do não ter escolhido e não poder mesmo ter escolhido as outras” (ST, 285). Possibilidades (Möglichkeit) são caracterizadas pelo fato de nunca poderem ser tomadas completamente. Mas a liberdade no ser-aí não consiste apenas e não consiste essencialmente em ter a escolha entre possibilidades apreendidas. Uma possibilidade apreendida é uma realidade projetiva, cada projeto é uma resposta a um ser iminente e indeterminado. Todos os projetos que se fizerem e que possam ser aproximados de outros são diversos do “não” do ser iminente em sua indeterminação.

Na medida em que o ser iminente em sua indeterminação mesma “não” é, ou seja, não é efetivamente, também não se pode pensar por fim a “nulidade existencial” do ser-aí como uma falta (Mangel). Como projetar, no ser-aí “já se é nulo diante de tudo” o que se “pode projetar e na maioria das vezes mesmo se alcançar” (ST, 285). Essa sentença e o acentuado “como projetar” nela presente seriam incompreensíveis se já não se lesse o verbo entwerfen como “projetar” (projektieren) e se o diferenciasse de “projetar” (entwerfen) como um modo do descerramento.1 Projetos nunca são possíveis senão porque antes de todos os projetos em esboço projetivo o ser iminente e indeterminado é apreendido como um “não” iminente, de modo que a “nulidade” da auto-antecipação não apenas não é nenhuma falta, mas constitui primeiramente o ser-aí. Com isso, porém, a “nulidade existencial” do ser-aí ainda não está completamente determinada. Em verdade, o ser-aí não é apenas “como projeto (…) essencialmente nulo” (ST, 285). Ao contrário, como fundamento ele é caracterizado pela nulidade mesma; “sendo, ele é determinado como poder-ser (Seinkönnen) que pertence a si mesmo e, de qualquer modo, não é dado senão como (226) ele mesmo a apropriar-se de si. Existindo, ele nunca retorna ao ponto por detrás de seu caráter de jogado, de modo que só poderia descarregar a cada vez esse ‘fato de ser e ter de ser’ expressamente de seu ser si mesmo e conduzi-lo ao aí” (ST, 284). O ser-aí nunca se encontra, dito de outra maneira, como ser possível na abertura do ente, mas sempre é iminente apenas como existir. Já por isso tampouco se pode conceber o ser-aí como processo no sentido do “eu” fichtiano que sempre se traz à realidade como algo que se traz à realidade. Também não se poderá dizer, em sintonia com Kierkegaard, que o ser-aí não “posicionou” a si mesmo (DM, 31); com isso continuar-se-ia sempre pensando o ser-aí como processo real, mesmo se como processo que não é realizado por meio de si mesmo. No entanto, o ser-aí já tinha sido possível antes de todo comportamento real, de modo que toda realização do comportamento está fundada no ser-possível (Möglichsein) e só pode ser concebida como resposta ao ser iminente a partir da possibilidade desse ser na abertura do ente. “Aí” se está antecipadamente na abertura do ente; é a abertura do ente apreendida na angústia (Angst), o “nada”, que se tem de ser no esboço projetivo que “não” é um projeto. Se se tomam os dois aspectos do caráter de jogado e do esboço projetivo, então fica claro que “o caráter de não” ou a “iniquidade”, tal como Heidegger a elabora em meio à análise do fenômeno da culpa, significam a mesma coisa que o caráter de possibilidade do ser-aí e, portanto, significam por fim o mesmo que descerramento. Também só se pode ser chamado para esse descerramento pela elocução do “nada”.

Não obstante, mesmo se, em sintonia com as análises precedentes, estivermos prontos a achar plausível essa ideia, é duvidoso que Heidegger interprete corretamente a nulidade do ser-aí como “ser culpado originário” e por isso também a discuta no contexto de sua análise da consciência. De mais a mais, a nulidade do ser-aí que deve perfazer o “ser culpado originário” parece ser pensável sem se levar em conta as determinações existenciais do ser-com (Mitsein) e do co-ser-aí (Mitdasein). Sem essas determinações, porém, não se teria podido conquistar o conceito formal do ser-culpado, e, correspondentemente, não seria inteligível se Heidegger, para desenvolver o conceito de um ser-culpado originário, tivesse em vista poder abandonar simplesmente a determinação formal do ser-culpado. Justamente se for incontestável que “na ideia de ‘culpado’ reside o caráter do não”, seria problemático se o “não” pudesse ser pensado sem que o “culpado” fosse efetivamente levado em conta. O termo “culpa” teria perdido sua significação específica no conceito do ser culpado originário. O fato de o ser-aí implicar o “ser-fundamento (nulo) de uma nulidade” (ST, 285) só equivaleria à sua culpabilidade se “a determinação existencial formal da culpa como ser fundamento de uma nulidade” (ST, 285) definisse o termo “culpa”; e isso é pouco convincente em face da significação já (227) discutida desse termo. Heidegger dá agora, em verdade, a impressão de entender que “culpa” não é, por fim, nada além do que o “ser-culpado originário”. Se se quiser tornar distinta a razão pela qual ele faz isso, então a explicação mais plausível é certamente que o que está em questão para ele é justamente evitar a determinação do ser culpado como uma falta de realidade efetiva. A fim de não perder de vista, porém, que a “culpa” é inicialmente uma determinação do ser-com e do co-ser-aí, é preciso tentar integrar o aspecto do ser-com e do co-ser-aí ao conceito do “ser culpado originário”: é preciso poder dizer como se tem de pensar uma culpa que sempre subsiste ante os outros e que em contextos cotidianos de comportamento nunca pode ser, apesar disso, constatada porque não tem nada a ver com uma “falta no ser-aí de outros”.

À pergunta sobre que experiência fala afinal pelo ser culpado originário do ser-aí, Heidegger nos dá a refletir se só haveria culpa “quando uma consciência da culpa está desperta” ou “se no fato de a culpa ‘adormecer’ não se anunciaria justamente o ser culpado originário”; e ele prossegue: “O fato de esse ser culpado originário permanecer de início e na maioria das vezes sem ser descerrado e de ser mantido fechado por meio do ser decadente do ser-aí desentranha apenas a dita nulidade. Mais originário do que qualquer saber sobre ele é o ser-culpado” (ST, 286). Como já acontecia em meio à interpretação da angústia, também se poderia pensar aqui que Heidegger gostaria de comprovar a consistência objetiva de sua análise tomando a experiência cotidiana, que não sabe nada da coisa mesma de que se trata, como encobrimento dessa coisa. A questão é que não se ganharia nada com isso se a experiência cotidiana não fornecesse também um ponto de sustentação para o que é nela encoberto. Esse ponto de sustentação é agora a circunstância de que a experiência cotidiana é dominada pelo falatório (Gerede) e consiste, entre outras coisas, na exposição, propagação e valoração de projetos que são assumidos por outros e empregados contra outros ou que são feitos em virtude de sua posse comum. Esses projetos só têm sentido como respostas ao ser iminente e indeterminado, e, por isso, é preciso que esse ser, justamente onde ele é encoberto pela discussão de projetos, sempre esteja também descerrado. Por meio dos projetos que “se” fazem e nos quais nos empenhamos intensamente, nós nos tornamos culpados uns em relação aos outros e já sempre nos tomamos culpados porque encobrimos para nós mesmos mutuamente o próprio ser a cada vez iminente em sua indeterminação. Em meio ao falatório, essa culpa precisa certamente permanecer incompreensível porque ela diz respeito ao falatório como tal e, se se está preso nele, só se conhece a culpa como uma falta, seja no próprio ser-aí, seja no ser-aí dos outros. Por outro lado, toda situação oferece a uma tal culpabilização imprópria a possibilidade de deixar o clamor da consciência “se ‘proclamar’ plenamente” (ST, 293), uma vez que não se reconduz a (228) interrupção do falatório a determinadas circunstâncias e contextos de ação, mas se a escuta e compreende como proclamação para o existir próprio. O existir próprio consiste, então, em atravessar todos os projetos com o olhar, descobrindo-os como resposta ao ser iminente e indeterminado, e ver que esse ser iminente e indeterminado jamais pode ser dominado por projetos que “se” têm. Caso o sugerir o contrário aos outros por meio do próprio comportamento e discurso se mostre como culpa, então vem à tona uma vez mais em que medida o ser culpado originário não pode ser tomado como uma falta no ser-aí dos outros, nem tampouco como comportamento faltoso. Se nos orientamos pelo conceito de falta em meio à interpretação da culpa, então não perdemos de vista apenas o primado da possibilidade ante a realidade, um primado característico para o ser-aí; não temos, além disso, nenhuma chance de descrever uma culpa que consiste na oferta de uma realidade aparente e, com isso, deduz dos outros a sua responsabilidade.

  1. Günter Figal se vale aqui de uma pequena nuança significativa presente no verbo alemão entwerfen em relação ao termo de origem latina projektieren. Os dois são normalmente traduzidos por projetar, mas o verbo de origem anglo-saxã traz consigo o sentido de esboço. (N.T.)[]