Pensar, QUERER e julgar são as três atividades espirituais básicas. Não podem ser derivadas umas das outras e, embora tenham certas características comuns, não podem ser reduzidas a um denominador comum. Para a pergunta “O que nos faz pensar?” não há, em última instância, outra resposta senão a que Kant chamava de “a necessidade da razão”, o impulso interno dessa faculdade para se realizar na especulação. Algo semelhante pode ser dito da vontade, que não pode ser movida nem pela razão nem pelo desejo. “Nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”), na notável fórmula de Duns Scotus; ou “voluntas vult se velle” (“a verdade quer querer-se”), como até mesmo Tomás, o menos voluntarista dentre aqueles que refletiram sobre esta faculdade, teve que admitir [De Veritate, questão XXII, art. 12]. Por fim, o juízo, a misteriosa capacidade do espírito pela qual são reunidos o geral, sempre uma construção espiritual, e o particular, sempre dado à experiência sensível, é uma “faculdade peculiar” e de modo algum inerente ao intelecto, nem mesmo no caso dos “juízos determinantes” — em que os particulares são subordinados a regras gerais sob a forma de um silogismo —, porque não dispomos de nenhuma regra para as aplicações da regra. Saber como aplicar o geral ao particular é um “dom natural” suplementar, cuja ausência é “comumente chamada de estupidez, e para tal falha não há remédio” [Critique of Pure Reason, B171-B174]. A natureza autônoma do juízo é ainda mais óbvia no caso do “juízo reflexivo”, que não desce do geral para o particular, mas vai “do particular […] até o universal”, quando determina, sem qualquer regra geral, que “isto é belo”, “isto é feio”, “isso é certo”, “isso é errado”; e, aqui, por um princípio orientador, o julgar “só pode dar [-se] como uma lei de si mesmo e para si mesmo” [Critique of Judgement, trad. J. H. Bernard, Nova York, 1951, introdução, IV]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A autonomia das atividades espirituais, além disso, implica também que essas atividades não são condicionadas; nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente. Pois a “tranquilidade desapaixonada” da alma não é, propriamente falando, uma condição; a mera tranquilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual, a premência de pensar, como também a “necessidade da razão”, na maior parte das vezes, silencia as paixões, e não o contrário. É certo que os objetos do meu pensar, QUERER ou julgar, aquilo de que o espírito se ocupa, são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo; mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo, quer pela minha vida no mundo. Os homens, embora totalmente condicionados existencialmente — limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte, submetidos ao trabalho para viver, levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes —, podem espiritualmente transcender todas essas condições, mas só espiritualmente; jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade. Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem QUERER o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade — como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer —, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância, da vida do espírito. Em suma, dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e “não nos dotam diretamente com o poder de agir” (Heidegger). A ausência de pensamento é realmente um poderoso fator nos assuntos humanos; estatisticamente, é o mais poderoso deles, não apenas na conduta de muitos, mas também na conduta de todos. A premência, a a-scholia dos assuntos humanos, requer juízos provisórios, a confiança no hábito e no costume, isto é, nos preconceitos. Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon esti pantón kechórismenon) [Frag. 108]. E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo, a saber, criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional, ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral, isto é, sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Uma vez que as atividades do espírito, por definição não-aparentes, ocorrem em um mundo de aparências e em um ser que participa dessas aparências por meio de seus órgãos sensoriais receptivos, bem como de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros, elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências. Trata-se não tanto de uma retirada do mundo — somente o pensamento, por sua tendência a generalizar, isto é, por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular, tende a retirar-se completamente do mundo —, mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos. Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito de ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos. A re-presentação, o fazer presente o que está de fato ausente, é o dom singular do espírito. E uma vez que toda a nossa terminologia é baseada em metáforas retiradas da experiência da visão, esse dom é chamado de imaginação, definida por Kant como “a faculdade da intuição mesmo sem a presença do objeto” [“Anthropologie”, n° 28, Werke, vol. VI, p. 466]. A faculdade do espírito ter presente o que está ausente naturalmente não é restrita às imagens espirituais de objetos ausentes; a memória quase sempre armazena e mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais; e a vontade antecipa o que o futuro poderá trazer, mas que ainda não é. Somente pela capacidade do espírito tornar presente o que está ausente é que podemos dizer “não mais”, e constituir um passado para nós mesmos, ou dizer “ainda não”, e nos preparar para um futuro. Mas isso só é possível para o espírito depois de ele ter se retirado do presente e das urgências da vida cotidiana. Assim, para QUERER, o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que, sem refletir e sem reflexividade, estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado; pois a vontade não se ocupa de objetos, mas de projetos, como, por exemplo, com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente. A vontade transforma o desejo em uma intenção. E, por último, o juízo, seja ele estético, legal ou moral, pressupõe uma retirada decididamente “não-natural” e deliberada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos tal como são estabelecidos pela minha posição no mundo e pela parte que nele desempenho. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Parece-me errado tentar estabelecer uma ordem hierárquica entre as atividades do espírito; mas também me parece inegável que existe uma ordem de prioridades. Se o poder da representação e o esforço para dirigir a atenção do espírito para o que escapa da atenção da percepção sensível não se antecipassem e preparassem o espírito para refletir, assim como para QUERER e para julgar, seria impossível pensar como exerceríamos o QUERER e o julgar, isto é, como poderíamos lidar com coisas que ainda não são, ou que já não são mais. Em outras palavras, aquilo que geralmente chamamos de “pensar”, embora incapaz de mover a vontade ou de prover o juízo com regras gerais, deve preparar os particulares dados aos sentidos, de tal modo que o espírito seja capaz de lidar com eles na sua ausência; em suma, ele deve de-sensorializá-los. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Mas se, por outro lado, encaramos essa proposição do ponto de vista do mundo, que é distinto daquele dos dois falantes, teríamos que dizer: o que conta é que o mal foi feito; e aí é irrelevante saber quem se saiu melhor — o autor ou a vítima. Na qualidade de cidadãos, nós devemos evitar que o mal seja cometido, porque está em jogo o mundo em que todos nós — o malfeitor, a vítima e o espectador — vivemos. A cidade foi injuriada. Nossos códigos legais levam isso em consideração, ao distinguir crimes em que a acusação é obrigatória e transgressões que pertencem ao domínio privado dos indivíduos, que podem QUERER ou não mover uma ação. Poderíamos quase definir um crime como aquela transgressão da lei que exige punição, não importando quem foi injuriado; a vítima pode estar disposta a perdoar e a esquecer, e, se houver a suspeita de que o malfeitor certamente não voltará a fazer o mal, pode não haver perigo para as outras pessoas. No entanto a lei da terra não permite essa escolha, porque a comunidade como um todo foi violada. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
E isso nos leva à segunda afirmação, que é de fato o pré-requisito para a primeira. Ela também é altamente paradoxal. Sócrates afirma ser um e, por isso mesmo, não QUERER correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo. Mas nada do que é idêntico a si mesmo, verdadeira e absolutamente Um, assim como A é A, pode estar em harmonia ou desarmonia consigo mesmo; no mínimo dois tons sempre são necessários para produzir um som harmonioso. Certamente quando apareço e sou visto pelos outros, sou um; de outro modo, seria irreconhecível. E enquanto estou junto a outras pessoas, pouco consciente de mim mesmo, sou tal como apareço para os outros. Chamamos de consciência (literalmente, “conhecer comigo mesmo”, como vimos) o fato curioso de que, em certo sentido, eu também sou para mim mesmo, embora quase não apareça para mim — o que indica que o “sendo um” socrático não é tão pouco problemático como parece; eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse último caso, claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha Unicidade. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
Para Sócrates, a dualidade do dois-em-um significava apenas que quem quer pensar precisa tomar cuidado para que os parceiros do diálogo estejam em bons termos, para que eles sejam amigos. O parceiro que desperta novamente quando estamos alerta e sós é o único do qual nunca podemos nos livrar — exceto parando de pensar. É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la, porque se pode continuar amigo de um sofredor; quem gostaria de ser amigo e de ter que conviver com um assassino? Nem mesmo outro assassino. No fundo, é a essa consideração bastante simples sobre a importância do acordo de uma pessoa consigo mesma que o Imperativo Categórico de Kant recorre. Subjacente ao imperativo “aja apenas segundo uma máxima tal que você possa ao mesmo tempo QUERER que ela se torne uma lei universal” está a ordem: “Não se contradiga.” [“Grundlegung zur Metaphysik der Sitten”, Werke, vol. 4, pp. 51-55] Um assassino ou um ladrão não pode QUERER que mandamentos como “tu matarás” ou “tu roubarás” se tornem leis válidas para todos, já que ele teme, evidentemente, pela própria vida ou pela propriedade. Quem abre uma exceção para si mesmo se contradiz. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas é também um “dado imediato da consciência” (nas palavras de Bergson) — tanto quanto o eu-penso de Kant ou o cogito em Descartes, cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional. Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade: “Se devo necessariamente QUERER, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho. A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de QUERER algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. A Vontade, ao que parece, tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, mais especulativa, não pode escapar ao princípio de não contradição. Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Os pensadores muitas vezes consideraram-no uma maldição. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER Introdução]
No momento em que voltamos nosso espírito para o futuro, não estamos mais preocupados com “objetos”, mas sim com projetos, e não importa se eles são formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias futuras. E assim como o passado apresenta-se ao espírito sempre com o aspecto de certeza, a característica principal do futuro é sua incerteza básica, por mais alto que seja o grau de probabilidade a que se possa chegar em uma previsão. Em outras palavras, estamos lidando com coisas que nunca foram, que ainda não são e que podem muito bem nunca vir a ser. Nosso Testamento, nossa Última Vontade, preparado para o único futuro sobre o qual podemos estar seguros com razão, a saber, nossa própria morte, mostra que a necessidade da Vontade de QUERER não é menos forte do que a necessidade que a Razão tem de pensar; em ambos os casos, o espírito transcende suas próprias limitações naturais, seja por fazer perguntas irrespondíveis, seja por projetar-se em um futuro que, para o sujeito volitivo, jamais será. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 1]
No contexto dessas considerações preliminares podemos nos permitir saltar as complexidades da Era Medieval e tentar uma rápida olhada no próximo ponto crítico importante em nossa história intelectual, o surgimento da Era Moderna. Aqui é de esperar que haja um interesse ainda mais forte do que no período medieval em um órgão espiritual próprio para o futuro, uma vez que o conceito principal e completamente novo da Era Moderna — a noção de Progresso como força que governa a história humana — colocou uma ênfase sem precedentes no futuro. Ainda assim, as especulações medievais sobre o assunto ainda exerciam grande influência pelo menos durante os séculos XVI e XVII. E era tão forte a suspeita em relação à faculdade da Vontade, tão aguda a relutância em conceder aos seres humanos, desprotegidos por qualquer Providência ou orientação divina, um poder absoluto sobre seus próprios destinos, oprimindo-os, assim, com uma responsabilidade formidável por coisas cuja própria existência dependeria só deles, tão grande, nas palavras de Kant, era o embaraço da “razão especulativa ao lidar com a questão da liberdade da vontade […], [a saber], com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas sucessivas ou estados” [Critique of Pure Reason, B476. Para esta e outras citações, ver a tradução de Norman Kemp Smith, Immanuel Kant’s Critique of Pure Reason. Nova York, 1963, em que a autora frequentemente se baseou.] — distinto da faculdade de escolha entre dois ou mais objetos dados (o liberum arbitrium, no sentido estrito) —, que foi somente na última fase da Era Moderna que a Vontade começou a substituir a Razão como a mais alta faculdade do espírito. Isso coincidiu com a última era de autêntico pensamento metafísico; na virada do século XIX, ainda no estilo da metafísica que começou com o equacionamento de Parmênides entre Ser e Pensar (to gar auto esti noein te kai einai), de repente, logo depois de Kant, passou a ser comum equacionar QUERER e Ser. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 2]
Para Jaspers, a liberdade humana é assegurada por não termos a verdade; a verdade compele, e o homem pode ser livre somente porque não sabe a resposta para as perguntas finais: “Preciso QUERER porque não sei. O Ser que é inacessível ao conhecimento pode ser revelado somente à minha volição. Não-saber é a raiz de ter que QUERER.” [Philosophy (1932), traduzido por E. B. Ashton. Chicago. 1970, vol. 2, p. 167.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 2]
É certo que, em sua filosofia inicial, Heidegger não compartilhou da crença moderna no Progresso; e que sua proposição “querer-não-querer” nada tem a ver com a superação nietzschiana da Vontade através de sua restrição ao QUERER que tudo que aconteça continue acontecendo repetidas vezes. Mas o famoso Kehre de Heidegger, a grande reviravolta em sua filosofia da fase final é, no entanto, algo semelhante à conversão de Nietzsche; em primeiro lugar, foi uma espécie de conversão, e, em segundo, teve a consequência idêntica de levá-lo de volta aos primeiros pensadores gregos. É como se, no final das contas, os pensadores da Era Moderna escapassem para uma “terra do pensamento” (Kant) [Nota da editora: fomos incapazes de encontrar esta referência.] na qual as suas próprias preocupações especificamente modernas — com o futuro, com a Vontade como seu órgão espiritual para o futuro e com a liberdade como um problema — não existissem; na qual, em outras palavras, não houvesse qualquer noção de uma faculdade do espírito que pudesse corresponder à liberdade do mesmo modo que a faculdade do pensamento correspondeu à verdade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 2]
Há em primeiro lugar a descrença sempre recorrente na própria existência da faculdade de QUERER. Suspeita-se que a Vontade seja uma mera ilusão, um fantasma da consciência, uma espécie de engano inerente à própria estrutura da consciência, “um pião de madeira”, nas palavras de Hobbes, “[…] impulsionado pelos meninos […] às vezes rodando, às vezes atingindo os homens na canela, se fosse sensível ao próprio movimento, pensaria que este procedia de sua própria vontade, a não ser que sentisse o que o estava pondo em movimento” [English Works, vol. V, p. 55]. E Espinosa seguia a mesma linha de pensamento: uma pedra posta em movimento por alguma força externa “acreditaria ser completamente livre e pensaria permanecer em movimento somente por sua própria vontade”, contanto que estivesse “consciente de seu esforço” e fosse “capaz de pensar” [Carta a G. H. Schaller, datada de outubro de 1674. Ver Espinosa, The Chief Works, editado por R. H. M. Elwes, Nova York, 1951, vol. II, p. 390]. Em outras palavras, “os homens acreditam ser livres simplesmente porque são conscientes de suas ações, sem ter consciência das causas pelas quais estas ações são determinadas”. Assim, os homens são subjetivamente livres e objetivamente assujeitados. As correlações de Espinosa levantam a objeção óbvia: “Se isto nos fosse dado, toda maldade seria desculpável”, o que não o perturba nem um pouco. Ele responde: “Os homens maus não devem ser menos temidos e não são menos nocivos quando são maus por necessidade.” [Ethics, pt. III, prop. II, nota, in ibidem, vol. II, p. 134; Carta a Schaller, in ibidem, p. 392.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 3]
Hobbes e Espinosa admitem a existência da Vontade como uma faculdade sentida subjetivamente, negando somente sua liberdade: “Reconheço essa liberdade de que posso fazer se quiser; mas tomo como um discurso absurdo dizer que posso QUERER se quiser.” Pois a Liberdade significa, a rigor, a ausência de […] impedimentos externos para o movimento […]. Mas quando esse impedimento do movimento está na constituição da coisa em si, não costumamos dizer dela que quer a liberdade, mas sim que quer o poder de mover-se; como no caso de uma pedra imóvel ou de um homem que está preso à cama por enfermidade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 3]
O que impressiona nessas objeções contra a própria existência da faculdade de QUERER é, em primeiro lugar, o fato de que elas são levantadas invariavelmente nos termos da ideia moderna de consciência — uma noção tão ignorada pela filosofia antiga quanto a noção de Vontade. A synesis grega — poder compartilhar um conhecimento comigo mesmo (syniemi) sobre coisas que ninguém mais pode testemunhar — é mais uma precursora da consciência moral do que da consciência [Ver Martin Kähler. Das Gewissen (1878), Darmstadt, 1967, pp. 46 e ss.], como se pode ver quando Platão menciona o modo como a memória do feito sangrento atormenta o homicida [Ver Laws, Livro IX, 865e]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 3]
O fato perturbador de que, entre os filósofos, até mesmo os chamados voluntaristas — aqueles inteiramente convencidos, como Hobbes, do poder da vontade — pudessem resvalar tão facilmente para a dúvida quanto à própria existência da faculdade de QUERER pode ser de certa forma esclarecido examinando-se a segunda de nossas dificuldades sempre recorrentes. O que despertou a desconfiança dos filósofos foi precisamente a conexão inevitável com a Liberdade. Repetindo: a noção de uma vontade não-livre é uma contradição em termos: “Se devo necessariamente QUERER, por que então preciso falar da vontade? […] Nossa vontade não seria vontade se não estivesse em nosso poder. Por estar em nosso poder, é livre.” [Agostinho, On Free Choice of the Will (De Libero Arbitrio), Livro III, seção 3] Para citar Descartes, que se pode contar entre os voluntaristas: “Ninguém, levando em consideração somente a si mesmo, deixa de experimentar o fato de que QUERER e ter liberdade são a mesma coisa.” [Em resposta à Objeção XII à Primeira Meditação: “Que a liberdade da vontade foi pressuposta sem prova.” Ver The Philosophical Works of Descartes, trad. Elizabeth Haldane e G. T. Ross, Cambridge, 1970, vol. II, pp. 74-75.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 3]
O que a alma exige do espírito, nessa situação desconfortável, não é tanto um dom profético para prever o futuro, e, assim, confirmar a esperança ou o medo. Bem mais tranquilizadora que as brincadeiras fraudulentas dos adivinhos — profetas, astrólogos e similares — é a não menos fraudulenta teoria que alega provar que tudo o que é ou vem a ser “era para ser”, na feliz expressão de Gibert Ryle. [Ver sua investigação exaustiva sobre o argumento fatalista, “‘It was to be’”, in Dilemmas, Cambridge, 1969, pp. 15-35.] O fatalismo, que, na verdade, “nenhum filósofo de primeiro ou segundo nível defendeu […] ou fez muito esforço para atacar”, realizou, no entanto, uma carreira assombrosamente bem-sucedida no pensamento popular através dos séculos; “temos, de fato, nossos momentos de fatalismo”, como diz Ryle [Ibidem, p. 28], e a razão é que não há outra teoria que possa acalmar com tanta eficácia qualquer ímpeto de ação, qualquer impulso para fazer um projeto, em suma, qualquer forma de “eu-quero”. Essas vantagens existenciais do fatalismo estão visivelmente esboçadas no tratado de Cícero Sobre o destino, que é ainda hoje a argumentação clássica sobre a questão. Para a proposição “tudo está predestinado”, ele usa o seguinte exemplo: quando adoecemos, “já está predestinado se vamos ou não nos recuperar, quer chamemos um médico, quer não” [De Fato, xiii, 30-14, 31], e é claro que também estaria predestinado se iremos chamar um médico ou não. Por conseguinte, o argumento leva a um “infinito regresso” [Ibidem, V, 35]. Designado como “argumento vão”, ele é rejeitado, porque obviamente “levaria à completa extinção de toda a ação na vida”. Seu grande atrativo é que, por meio dele, “o espírito libera-se de toda necessidade de movimento” [Como Chrysippus já apontou. Ver ibidem, xx, 48]. Em nosso contexto, o interesse da proposição reside no fato de que ela consegue extinguir totalmente o tempo verbal futuro, assimilando-o ao passado. O que será ou poderá ser “era para ser”, pois “tudo o que será, se vai mesmo ser, não pode ser concebido como se fosse para não ser” (quicquid futurum est, id intelligi non potest, si futurum sit, non futurum esse), como disse Leibniz [Confessio Philosophi, ed. bilíngue, ed. Otto Saame, Frankfurt, 1967, p. 66]. O caráter tranquilizador da formulação vem do que Hegel chamou de “a calma do passado” (“die Ruhe der Vergangenheit”) [Jenenger Logik, Metaphysik und Naturphilosophie, Lasson ed., Leipzig, 1923, p. 204, in “Naturphilosophie I A: Begriff der Bewegung”], uma calma assegurada pelo fato de que o que passou não pode ser desfeito e que a Vontade “não pode QUERER retroativamente”. [Ver Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, pt. II, “On Redemption”: “A vontade não pode QUERER para trás […]. Que o tempo não anda para trás, é esse o seu ressentimento; ‘aquilo que foi’ é o nome da pedra que ela não pode mover”, in The Portable Nietzsche, trad. Walter Kaufmann, Nova York, 1954, p. 251.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 5]
Não é o futuro enquanto tal, mas o futuro como projeto da Vontade que nega o que é dado. Em Hegel e Marx, o poder da negação, cujo motor faz avançar a História, deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto: o projeto nega o agora e o passado, ameaçando, assim, o presente duradouro do ego pensante. Uma vez que o espírito, retirado do mundo das aparências, traz para sua própria presença aquilo que está ausente — o que já não é mais, assim como o que não é ainda —, é como se o passado e o futuro pudessem unir-se em um denominador comum, podendo assim ser salvos, juntos, do fluxo do tempo. Mas o nunc stans, a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o ego pensante, embora possa absorver aquilo que não é mais, sem qualquer perturbação do mundo exterior, já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro. Toda volição, ainda que seja uma atividade do espírito, relaciona-se com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizar-se; em contraste flagrante com o pensamento, nenhum QUERER jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade. Qualquer volição não só envolve particulares como também — e isso é de grande importância — anseia por seu próprio fim, o momento em que o QUERER algo terá se transformado no fazê-lo. Em outras palavras, o humor habitual do ego volitivo é a impaciência, a inquietude e a preocupação (Sorge), não somente porque a alma reage ao futuro com esperança e medo, mas também porque o projeto da vontade pressupõe um “eu-posso” que não está absolutamente garantido. A inquietação preocupada da Vontade só pode ser apaziguada por um “eu-quero-e-faço”, isto é, por uma interrupção de sua própria atividade e liberação do espírito de sua dominação. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 5]
Quanto a este aspecto — que vamos chamar de “tonalidade” das atividades do espírito —, a habilidade que a vontade tem de tornar presente o ainda-não é exatamente oposta à lembrança. A lembrança tem uma afinidade natural com o pensamento; todo pensamento, como dissemos, é um re-pensar. Cadeias de pensamento surgem naturalmente da atividade de relembrar quase de forma automática, sem que haja qualquer interrupção. Essa é a razão pela qual a anamnesis, em Platão, pôde tornar-se uma hipótese tão plausível para a capacidade humana de aprender, e a razão pela qual Agostinho pôde equacionar de maneira tão convincente espírito e memória. A lembrança pode afetar a alma com um anseio pelo passado; mas essa nostalgia, embora possa conter dor e pesar, não perturba a serenidade do espírito, pois envolve coisas que estão além de nosso poder de mudar. O ego volitivo, ao contrário, olhando para a frente, e não para trás, lida com coisas que estão em nosso poder, mas cuja realização não está absolutamente assegurada. A tensão daí resultante, em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas, causa uma espécie de inquietação na alma que beira facilmente a confusão, uma mistura de medo e esperança que se torna insuportável quando se descobre que, na formulação de Agostinho, QUERER e ser capaz de realizar, velle e posse, não são a mesma coisa. A tensão pode ser superada somente pelo fazer, isto é, pela desistência da atividade espiritual como um todo; uma mudança do QUERER para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade, exatamente como uma mudança do pensar para o QUERER é sentida pelo ego pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 5]
Para falar em termos de tonalidade — isto é, em termos do modo como o espírito afeta a alma e produz seus humores, independentemente dos acontecimentos externos, criando assim uma espécie de vida do espírito —, o humor predominante do ego pensante é a serenidade, o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria. À medida que essa atividade está intimamente ligada à lembrança, seu humor inclina-se para a melancolia — segundo Kant e Aristóteles, o humor característico do filósofo. O humor predominante da Vontade é a tensão, que arruína a “tranquilidade do espírito”, a “animi tranquilitas”, de Leibniz, na qual, segundo ele, todos os filósofos sérios insistem [Op. cit., p. 110] e a qual foi por ele mesmo encontrada em cadeias de pensamento que provavam ser este o “melhor dos mundos possíveis”. Desse ângulo, a única tarefa que resta à Vontade é, na verdade, “QUERER não QUERER”, uma vez que todo ato voluntário só pode interferir na “harmonia universal” do mundo, em que “tudo o que é, visto da perspectiva do Todo, é o melhor”. [Ibidem, p. 122] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 5]
Assim, Leibniz, com uma consistência admirável, chega à conclusão de que o pecado de Judas não está em sua traição a Jesus, mas em seu suicídio: ao condenar-se, ele condenou implicitamente o todo da criação de Deus; ao odiar-se, ele odiou o Criador [Ibidem, pp. 42, 44, 76, 92, 98, 100]. Encontramos o mesmo pensamento, na sua versão mais radical, em uma das sentenças condenadas do Mestre Eckhart: “Tenha um homem cometido mil pecados mortais, se teve uma intenção correta, não deve desejar não os ter cometido” (Wenn jemand tausend Todsünden begangen hätte, dürfte er, wäre es recht um ihn bestellt, nicht wollen, sie nicht begangen zu haben”). [Citado por Walter Lehmann em sua Introdução para uma Antologia de Escritos Alemães, Meister Eckhart, Göttingen, 1919, sentença 15, p. 16.] Podemos nos permitir conjecturar que esta rejeição surpreendente do arrependimento por parte de dois pensadores cristãos, em Eckhart foi motivada por uma superabundância de fé que exigia, à maneira de Jesus, que o pecador perdoasse a si mesmo assim como se esperava que perdoasse aos outros, “sete vezes ao dia”, porque a alternativa seria declarar que teria sido melhor — não só para ele como também para toda a Criação — nunca ter nascido (“Que uma mó fosse pendurada em seu pescoço, e que fosse lançado ao mar”); enquanto, em Leibniz, podemos vê-la como uma vitória final do ego pensante sobre o ego volitivo, porque a vã tentativa que este último faz de QUERER retroativamente, quando bem-sucedida, poderia apenas resultar na aniquilação de tudo o que é. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 5]
A primazia do passado, entretanto — como Koyré descobriu —, desaparece inteiramente quando Hegel passa a discutir o Tempo, para ele, acima de tudo, “o tempo humano” [Op. cit., loc. cit], cujo fluxo o homem inicialmente, por assim dizer, experimenta sem pensar, como puro movimento, até que acontece de ele refletir sobre os acontecimentos exteriores. A atenção do espírito fica então dirigida essencialmente para o futuro, isto é, para o tempo que está no processo de vir em nossa direção (como indica, conforme já foi dito, o termo alemão Zukunft, vindo de zu kommen, semelhante ao francês avenir, cuja origem é à venir); e esse futuro antecipado nega o “presente permanente” do espírito, transformando-o em um “não-mais” antecipado. Nesse contexto, “a dimensão dominante do tempo é o futuro, que ganha prioridade sobre o passado”. “O Tempo encontra sua verdade no futuro, já que é o futuro que terminará e realizará o Ser. Mas o Ser, terminado e realizado, pertence como tal ao Passado.” [Ibidem, p. 177 e 185, nota] Essa reversão da sequência de tempo mais comum — passado-presente-futuro — é causada pela negação que o homem faz de seu presente: ele “diz não ao seu Agora”, criando assim seu próprio futuro [Ibidem, p. 188]. O próprio Hegel não menciona a Vontade nesse contexto, nem tampouco Koyré; mas parece óbvio que a faculdade que está por trás do espírito que nega não é o pensar, mas o QUERER, e que a descrição de Hegel do tempo experimentado humanamente relaciona-se à sequência de tempo adequada ao ego volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 6]
Trata-se de Plotino. Também ele sustenta que o espírito humano, a alma humana (psyche), é que dá origem ao tempo. O tempo é gerado pela natureza “hiperativa” da alma (polypragmon, um termo que sugere intensa atividade corporal); ansiando por sua própria imortalidade futura, a alma “busca algo além do seu estado presente”, e, assim, move-se sempre para um “próximo” e um “depois”, e para algo que não é o mesmo, mas é outra coisa, e depois outra, mais uma vez. Movendo-nos assim, percorremos um bom pedaço de nosso caminho [em direção à nossa eternidade futura] e construímos o tempo, a imagem da eternidade. Assim, “o tempo é a vida da alma”; uma vez que “a propagação da vida envolve o tempo”, a alma “produz a sucessão [de tempo] juntamente com sua atividade”, na forma de um “pensamento discursivo”, cuja discursividade corresponde ao “movimento que a alma faz ao passar de um modo de ser para outro”; consequentemente, o tempo é “não um acompanhamento da alma […] mas algo que […] está nela e com ela” [A passagem, em Plotino, é um comentário do Timeu de Platão, 37c-38b. Aparece em Ennead, III, 7, 11: “On Time and Eternity”. Utilizei uma tradução de A. H. Armstrong in Loeb Classical Library, Londres, 1967, e a tradução de Emile Bréhier para o francês, na edição bilíngue das Ennéades, Paris, 1924-38]. Em outras palavras, para Plotino, assim como para Hegel, o tempo é gerado pela inquietude inata do espírito, seu estender-se para o futuro, seus projetos e sua negação do “estado presente”. E, em ambos os casos, o verdadeiro preenchimento do tempo é a eternidade, ou, em termos seculares, existencialmente falando, a mudança do espírito do QUERER para o pensar. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 6]
O fracasso final de Hegel em conciliar as duas atividades do espírito, pensar e QUERER, com os seus conceitos de tempo opostos, parece-me evidente, mas ele próprio teria discordado: o pensamento especulativo é precisamente “a unidade de pensamento e tempo” [The Phenomenology of Mind, trad. J. B. Baillie (1910), Nova York, 1964, p. 803]; não lida com o Ser, mas com o Devir, e “o objeto do espírito pensante não é o Ser mas um Devir intuído” [Koyré, op. cit., p. 164, citando Encyclopedia, n° 258]. O único movimento que pode ser intuído é um movimento que gira em um círculo que forma “um ciclo que retorna sobre si mesmo […], que pressupõe o seu começo e chega ao seu começo somente no fim”. Este conceito cíclico de tempo, como vimos, está em perfeita harmonia com a filosofia grega clássica, enquanto a filosofia pós-clássica, seguida da descoberta da Vontade como a fonte principal do espírito para a ação, exige um tempo retilíneo, sem o qual o Progresso seria impensável. Hegel encontra a solução para esse problema, isto é, descobre como transformar os círculos em uma linha progressiva, admitindo que existe algo por trás de todos os membros individuais da espécie humana, e que este algo chamado Humanidade é na verdade uma espécie de alguém, que ele chamou de “Espírito do Mundo”, para ele não uma simples coisa-pensamento, mas uma presença corporificada (encarnada) na Humanidade, assim como o espírito de um homem está encarnado em seu corpo. Esse “Espírito do Mundo” corporificado na Humanidade, em contraposição a diferentes indivíduos e a nações particulares, leva a cabo um movimento retilíneo inerente à sucessão de gerações. Cada geração nova forma uma “nova fase de existência, um novo mundo”, e, assim, “tem que começar tudo outra vez”, mas “começa em um nível mais alto” porque, sendo humana e dotada de espírito, ou seja, de Lembrança, “conservou a experiência [anterior]” (grifos nossos). [Hegel, The Phenomenology of Mind, pp. 801, 807-808. Grifos nossos.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 6]
Além do mais, a plausibilidade da hipótese depende inteiramente da pressuposição da existência de um Espírito do Mundo a governar a pluralidade das vontades humanas e a orientá-las na direção de uma “significação” que surja da necessidade da razão, ou seja, falando em termos psicológicos, do desejo bastante humano de viver em um mundo que é como deveria ser. Encontramos uma solução semelhante em Heidegger, cujos insights sobre a natureza da vontade são incomparavelmente mais profundos, e cuja antipatia por essa faculdade é ostensiva e constitui a verdadeira reviravolta (Kehre) do último Heidegger: “não é a vontade humana a origem da vontade de QUERER”; mas “a Vontade quer que o homem queira sem experimentar o que a Vontade é” [“Überwindung der Metaphysik”, in Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, 1954, vol. I, set. xxii, p. 89.]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 6]
É apropriado que se façam algumas observações técnicas, tendo em vista a renovação do interesse por Hegel nas últimas décadas, renovação em que tiveram papel alguns pensadores altamente qualificados. O engenho do movimento dialético triádico — de Tese para Antítese para Síntese — impressiona especialmente quando aplicado à noção moderna de Progresso. Embora o próprio Hegel acreditasse em uma interrupção no tempo, em um fim da história que permitisse ao espírito intuir e conceituar todo o ciclo do Devir, este movimento dialético, visto em si mesmo, parece assegurar um progresso infinito, à medida que o primeiro movimento de Tese para Antítese resulta em uma Síntese, a qual imediatamente estabelece uma nova Tese. Embora o movimento original não seja de forma alguma progressivo, mas gire para trás e retorne sobre si, o movimento de Tese para Tese se estabelece por trás desses ciclos e constitui uma linha retilínea de progresso. Querendo visualizar o tipo de movimento, teremos como resultado a seguinte figura: A vantagem desse esquema como um todo é que ele assegura o progresso e, sem quebrar o contínuo do tempo, pode ainda dar conta do inegável fato histórico da ascensão e queda das civilizações. A vantagem do elemento cíclico, em particular, é que ele nos permite ver cada fim como um novo começo: Ser e Nada “são a mesma coisa, a saber, Devir […]. Uma direção é desaparecimento: o Ser passa a Nada; mas o Nada é, do mesmo modo, o seu próprio oposto, uma transição para o Ser, isto é, Surgimento” [Hegel, Science of Logic, trad. W. H. Johnston e L. G. Struthers, Londres, Nova York, 1966, vol. I, p. 118]. Além disso, a própria infinitude do movimento, embora de alguma forma em conflito com outras passagens hegelianas, está em perfeita harmonia com o conceito de tempo do ego volitivo e com a primazia que ele dá ao futuro sobre o presente e o passado. A Vontade, que não se subjuga à Razão e à sua necessidade de pensar, nega o presente (e o passado), mesmo quando o presente a confronta com a realização de seus próprios projetos. Isolada, a Vontade do homem “preferiria QUERER o Nada a não QUERER”, como observou Nietzsche [Toward a Genealogy of Morals (1887), nº 28]; e a noção de um progresso infinito implicitamente nega todo objetivo e admite fins somente como meios para burlar-se a si mesma [Heidegger, “Überwindung der Metaphysik”, op. cit., set. xxiii, p. 89]. Em outras palavras, o famoso poder de negação inerente à Vontade e concebido como o motor da História (não somente em Marx mas, portanto, já em Hegel) é uma força aniquilante que poderia resultar tanto em um processo de aniquilação permanente quanto em um Progresso Infinito. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 6]
Paulo certamente não ignorava a mudança radical que a velha exigência de se cumprir a lei sofrera no ensinamento de Jesus de Nazaré. E é bem possível que tenha subitamente entendido que nisso reside o único cumprimento verdadeiro da lei, tendo, então, descoberto que um tal cumprimento estava além do poder humano: levava a um eu-quero-mas-não-posso, muito embora o próprio Jesus nunca tivesse dito a seus seguidores que não poderiam fazer o que quisessem. Já existe em Jesus, contudo, uma nova ênfase na vida interior. Ele não teria ido tão longe quanto Eckhart, mais de mil anos depois, afirmando que ter vontade de fazer era suficiente para “herdar a vida eterna”, pois, “diante de Deus, QUERER fazer conforme minha capacidade e ter feito são a mesma coisa”. Ainda assim, a ênfase de Jesus no “Não cobiçarás”, o único dos Dez Mandamentos que se relaciona com a vida interior, aponta naquela direção — “todo o que olhar para uma mulher, cobiçando-a, já cometeu adultério […] no seu coração” (Mateus 5:28). Analogamente, em Eckhart, o homem que tem a vontade de matar sem nunca ter matado ninguém não cometeu pecado menor do que se tivesse assassinado toda a raça humana [Op. cit., p. 551]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 8]
Mas essa faculdade tem uma natureza curiosamente paradoxal. Realiza-se por um imperativo que não diz simplesmente “tu deves” — como no caso em que o espírito fala ao corpo, conforme colocou Agostinho mais tarde, e o corpo imediata e, por assim dizer, impensadamente obedece —, mas diz também “tu deves QUERER”, o que já implica que, seja o que for que eu acabe fazendo de fato, eu posso responder: quero ou não quero. O próprio mandamento, o “tu deves”, coloca-me diante de uma escolha entre o “eu quero” e o “eu não quero”, ou seja, em termos teológicos, entre a obediência e a desobediência. (A desobediência, lembramos, vem a tornar-se, mais tarde, o pecado mortal par excellence; e a obediência, a própria base da ética cristã, a “virtude das virtudes” [Ekhart]. A propósito, uma virtude que, diferentemente da pobreza e da castidade, dificilmente pode ser tirada dos ensinamentos e das pregações de Jesus de Nazaré.) Se a vontade não tivesse a opção de dizer “Não”, ela não seria mais uma vontade; e se não houvesse uma contravontade em mim, despertada pelo próprio conteúdo do mandamento do “tu deves”, se, para usar os termos de Paulo, “o pecado” não habitasse “em mim” (Romanos 7:20), eu não precisaria absolutamente de uma vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 8]
Falei anteriormente da natureza reflexiva das atividades do espírito: o cogito me cogitare, o volo me velle (mesmo o juízo, a faculdade menos reflexiva das três, repercute, atua sobre si mesma). Veremos depois que essa reflexividade fica mais forte do que nunca no ego volitivo; a questão é que todo “eu-quero” surge de uma inclinação natural para a liberdade, isto é, de uma reação natural dos homens livres quando subjugados. A vontade sempre se dirige a si mesma; quando a lei diz: “tu deves”, a vontade responde “tu deves QUERER o que diz a ordem” — e não a executar inadvertidamente. É então que tem início a disputa interna, pois a contravontade, despertada, tem semelhante poder de ordem. Logo, a razão pela qual “os que observam a Lei estão sob o peso da maldição” (Gálatas 3:10) não é somente o “eu-quero-e-não-posso”, mas é também o fato de que o “quero” é inevitavelmente rebatido por um “não-quero”, de modo que até mesmo quando a lei é obedecida e cumprida ainda reste uma resistência interna. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 8]
Na luta entre o “QUERER” e o “não-querer”, o resultado só pode depender em um ato — se ações não contam mais, a Vontade nada pode. E uma vez que o conflito se dá entre velle e nolle, a persuasão não tem lugar, como tinha no velho conflito entre a razão e os desejos. Quanto ao fenômeno em si, “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse eu faço” (Romanos 7:19), ele não é obviamente uma novidade. Encontramos quase as mesmas palavras em Ovídio: “Vejo o que é melhor e aprovo; sigo o que é pior” [Metamorphoses, livro VII, II, 20-21, “Video meliora proboque,/ deteriora sequor”], e esta é provavelmente uma tradução da famosa passagem da Medeia, de Eurípides (linhas 1078-80): “Sei muito bem o mal que desejo fazer; mais forte porém do que minhas deliberações [boulemata] é o meu thymos [o que faz com que eu me mova], a causa dos maiores males entre os mortais.” Eurípides e Ovídio podem ter lamentado a fraqueza da razão quando confrontada com o impulso passional dos desejos; e Aristóteles pode ter dado um passo à frente quando detectou a autocontradição na escolha do pior, um ato que lhe forneceu a definição do “homem-vil”; mas nenhum deles teria atribuído esse fenômeno à livre escolha da Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 8]
A Vontade, que se divide, produzindo automaticamente sua própria contravontade, precisa ser curada para tornar-se de novo uma só. Como o pensamento, a vontade dividiu o um em dois-em-um, só que, no caso do ego pensante, “curar-se” da divisão seria a pior coisa que poderia acontecer; poria fim completo ao pensamento. Ora, seria bastante tentador concluir que a misericórdia divina, a solução de Paulo para a desgraça da Vontade, na verdade elimina a Vontade, destituindo-a, por milagre, de sua contravontade. Mas não se trata mais de volições, já que a misericórdia não pode ser almejada; a salvação “não depende do QUERER ou do esforço do homem, mas da misericórdia de Deus”, e Ele “usa de misericórdia com quem quer, e endurece o coração de quem quer” (Romanos 9:16, 18). Além disso, assim como “veio a lei” não somente para tornar o pecado identificável, mas para “aumentar a perdição”, também a graça “abundou” onde o “pecado cresceu” — trata-se, de fato, de felix culpa, pois como poderiam os homens conhecer a glória se não tivessem contato com a desgraça? Como conheceríamos o dia se não houvesse a noite? [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 8]
Uma vez que a razão descobre essa região interna em que o homem enfrenta somente as “impressões” que as coisas externas deixam em seu espírito, em vez de enfrentar sua existência factual, sua tarefa está cumprida. O filósofo não é mais o pensador que examina qualquer coisa que lhe apareça no caminho, mas sim o homem que se educou para jamais “se voltar para as coisas externas”, onde quer que ele esteja. Epiteto dá um exemplo esclarecedor desta atitude. Não impede seu filósofo de ir aos jogos como qualquer um; mas, ao contrário da multidão “vulgar” dos outros espectadores, ele está ali “interessado” somente em si mesmo e em sua própria “felicidade”; força-se portanto a “QUERER que aconteça somente o que acontece de fato e que só ganhe aquele que de fato ganha” [The Manual, 23 e 33]. Esse afastamento da realidade enquanto ainda se está em meio a ela — em contraste com a retirada do ego pensante para o estar-só do diálogo sem som de mim comigo mesmo, em que todo pensamento é um re-pensar por definição — tem consequências muito importantes. Significa, por exemplo, que quando alguém vai a algum lugar, não presta atenção a seu objetivo, mas só se interessa pela “própria atividade” de caminhar; ou “quando a deliberação está [unicamente] interessada no ato de deliberar, e não em obter aquilo que se planeja” [Discourses, livro II, cap. xvi]. Nos termos da parábola do jogo, é como se esses espectadores, olhando com olhos que não veem, fossem meras aparições fantasmagóricas no mundo das aparências. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 9]
A primeira coisa que a razão pode ensinar à vontade é a distinção entre as coisas que dependem do homem, aquelas que estão em seu poder (o eph’ hémin aristotélico) e aquelas que não estão. O poder da vontade reside em sua decisão soberana de interessar-se somente pelas coisas que estão em poder do homem; e estas coisas residem exclusivamente na interioridade humana [The Manual, I]. Logo, a primeira decisão da vontade é não QUERER o que não pode obter e deixar de não QUERER o que não pode evitar — em suma, não se interessar por qualquer coisa sobre a qual não tenha poder. (“Que importa se o mundo é composto de átomos ou de partes infinitas, ou se é composto de fogo e de terra? Não é suficiente conhecer […] os limites entre a vontade de obter e a vontade de evitar […] e desconsiderar as coisas que estão além de nós?”) [Fragments, I] E uma vez que “é impossível que o que acontece viesse a ser diferente do que é” [Ibidem, 8], uma vez que o homem, em outras palavras, não tem absolutamente nenhum poder no mundo real, foram-lhe concedidas as faculdades surpreendentes da razão e da vontade, que lhe permitem reproduzir o exterior — completo, mas destituído de sua realidade — dentro de seu espírito, no qual ele é inegavelmente o senhor e o soberano. Ali ele reina sobre si e sobre os objetos de seu interesse, já que só a vontade pode ser obstáculo para si mesma. Tudo o que parece ser real, o mundo das aparências, precisa na verdade de meu consentimento para poder ser real para mim. E tal consentimento não pode ser impingido a mim: se recuso-me a consentir, a realidade do mundo desaparece como se fosse uma mera aparição. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 9]
À primeira vista, essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença (apatheia) — como se proteger da realidade, como perder sua habilidade de ser por ela afetado, para o bem ou para o mal, na alegria ou na tristeza — parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental. Encontramos em Agostinho tal refutação em sua forma mais resumida e plausível. Os estoicos, diz ele, descobriram o truque de como fingir que estão felizes: “Não podendo ter o que quer, o homem quer o que pode ter” [“Ideo igitur id vult quod potest, quoniam quod vult nom potest”] [De Trinitate, livro XIII, vii, 10]. Além disso, prossegue, os estoicos pressupõem que “todo homem deseja, por natureza, ser feliz”, sem contudo acreditar em imortalidade, pelo menos não em ressurreição do corpo, isto é, em uma vida futura sem morte, e aí temos uma contradição em termos. Pois “se todo homem deseja de fato ser feliz, deve necessariamente também QUERER ser imortal. […] Para que possa viver feliz é preciso antes estar vivo” [Cum ergo beati esse omnes homines velint, si vere volunt, profecto et esse immortales volunt. […] Ut enim homo beate vivat, oportet ut vivat] [Ibidem, viii, 11]. Em outras palavras, os mortais não podem ser felizes, e a insistência dos estoicos no medo da morte como a maior fonte de infelicidade atesta isso; o máximo que podem conseguir é ficar “indiferentes”, deixar de ser afetados pela vida ou pela morte. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 9]
Essa refutação, entretanto, tão razoável nesse nível de argumentação, deixa escapar alguns pontos importantes. Há, em primeiro lugar, a questão de por que deveria ser necessário um QUERER com a finalidade de não QUERER; por que não seria possível simplesmente perder a faculdade sob o domínio dos insights superiores do raciocínio correto. Afinal, não sabemos todos como é relativamente fácil perder pelo menos o hábito, se não a faculdade de pensar? Basta viver em constante estado de distração e jamais deixar a companhia de outros. Pode-se argumentar que é mais difícil quebrar o hábito que os homens têm de QUERER o que está fora de seu poder do que quebrar o hábito de pensar; mas para um homem suficientemente “treinado”, não deve ser necessário ficar repetindo mil vezes o não QUERER — já que o mé thele, o “não QUERER”, em que não se pode evitar, é no mínimo tão importante para esse aprendizado quanto o simples apelo à força de vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 9]
Muito relacionado com o que foi dito anteriormente, e ainda mais enigmático, é o fato de que Epiteto não fica absolutamente satisfeito com o poder da vontade de deixar de QUERER. Ele não prega simplesmente a indiferença a tudo o que não está em nosso poder; ele exige com insistência que o homem queira o que de qualquer maneira acontece. Já citei a parábola do jogo na qual o homem cujo único interesse é o bem-estar do eu é exortado a QUERER “que aconteça somente o que acontece e que ganhe somente quem ganha”. Em um outro contexto, Epiteto vai muito além e exalta (sem citar nomes) “filósofos” que disseram “que ‘se o homem bom soubesse de antemão dos acontecimentos vindouros, ele ajudaria a natureza, mesmo que isso significasse lidar com a doença, com a morte, com a mutilação’” [Discourses, livro II, cap. x]. Certamente ele recai, em seu argumento, na velha noção estoica de heimarmene, a doutrina do destino segundo a qual tudo acontece em harmonia com a natureza do universo e cada coisa particular, homem ou animal, planta ou pedra, tem sua tarefa designada pelo todo, sendo por ele justificada. Mas não só Epiteto demonstra explicitamente não estar interessado em qualquer questão relativa à natureza ou ao universo, como também não há nada na antiga doutrina que indique que a vontade do homem, totalmente infrutífera por definição, tenha algum valor na “ordenação do universo”. Epiteto se interessa pelo que acontece a ele: “Quero uma coisa e ela não acontece; quem é mais desgraçado do que eu? Não a quero e ela acontece; quem é mais desgraçado do que eu?” [Ibidem, livro II, cap. xvii Em resumo, para “viver bem”, não é suficiente “deixar de pedir para que os eventos aconteçam como se quer”; deve-se “deixar a vontade ser tal que os eventos devam acontecer como acontecem” [The Manual, 8]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 9]
Somente quando o poder da vontade chega a esse ponto de clímax, em que consegue QUERER o que é, nunca estando, portanto, “em desavença com as coisas exteriores”, é que ele se pode dizer onipotente. Subjacente a todos os argumentos para tal onipotência está a patente pressuposição de que a realidade para mim obtém seu grau de realidade por consentimento meu; e subjacente a essa pressuposição, garantindo sua eficácia prática, está o fato simples de que posso cometer o suicídio quando achar a vida verdadeiramente insuportável — “a porta está sempre aberta”. E aqui a solução não implica — como é o caso, por exemplo, em Camus — uma espécie de rebelião cósmica contra a condição humana; para Epiteto, tal rebelião não teria nenhum sentido, já que “é impossível que aquilo que acontece seja diferente do que é” [Fragments, 8]. Isso é impensável, porque mesmo uma negação absoluta depende do puro e inexplicável estaraí [thereness] de tudo o que é, inclusive eu mesmo, e Epiteto jamais exige uma explicação ou uma justificativa para o inexplicável. Logo, como Agostinho vem a argumentar mais tarde [In De Libero Arbitrio, Livro III, v-viii], aqueles que acreditam escolher não ser quando cometem suicídio estão errados; escolhem uma forma de ser que acabará por vir algum dia de todo modo, e escolhem a paz, que é naturalmente apenas uma forma de ser. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 9]
A questão cuja resposta adiou por tantos anos é o ponto de partida para uma filosofia da Vontade própria de Agostinho. Mas foi em uma interpretação minuciosa da Epístola de Paulo aos Romanos que ele a concebeu originalmente. Nas Confissões, bem como nas duas seções finais de O livre-arbítrio, tira conclusões filosóficas e enuncia as consequências do estranho fenômeno (o de que é possível QUERER e, na ausência de qualquer empecilho externo, ser, ainda assim, incapaz de realizar) que Paulo descrevera em termos de leis antagônicas. Agostinho, porém, não fala de duas leis, mas de “duas vontades, uma nova e a outra antiga, uma carnal e a outra espiritual”, e descreve em detalhe, assim como Paulo, a maneira como essas vontades lutaram “dentro” dele e como “a discórdia entre elas [lhe] dilacerou a alma” [Confessions, livro VIII, cap. v]. Em outras palavras, toma cuidado para evitar sua própria heresia maniqueísta inicial, que ensina que dois princípios antagônicos governam o mundo, um bom e um mau, um carnal e um espiritual. Para ele, agora há somente uma lei, e o primeiro insight, portanto, é o mais óbvio e também o mais surpreendente: “Non hoc vele quod posse” — “QUERER e poder não são o mesmo.” [Ibidem, cap. viii] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
O que surpreende é estarem as duas faculdades, QUERER e poder realizar, tão intimamente ligadas: “A vontade deve estar presente para que o poder seja produtivo”; e nem é preciso dizer que o poder deve estar presente para que a vontade possa dele fazer uso. “Se agimos […] [isso] jamais pode ser sem vontade”, mesmo quando “fazemos uma coisa a contragosto, sob coação”. “Quando não agimos”, o motivo pode ser a “falta [de] vontade” ou a “falta [de] poder”. [Uma explicação detalhada sobre a derivação de voluntas de velle e potestas de posse aparece em The Spirit and the Letter, arts. 52-58, um trabalho da fase final interessado na questão “A fé está ela mesma em nosso poder?”, in Morgenbesser e Walsh, op. cit., p. 22.] Surpreende ainda mais que Agostinho concorde com o argumento principal dos estoicos para explicar a predominância da Vontade, isto é: “Nada está tanto em nosso poder como a própria vontade, pois não há intervalo; no momento em que queremos — lá está.” [On Free Choice of the Will, livro III, cap. iii, 27: cf. ibidem, livro I, cap. xii, 86, e Retractationes, livro I, cap. ix, 3.] Mas ele não acredita que a Vontade seja suficiente. “A lei não comandaria se não houvesse vontade, nem a graça ajudaria se a vontade fosse suficiente.” O que importa aqui é que a Lei não se dirige ao espírito, caso em que simplesmente se revelaria, e não ordenaria; dirige-se, sim, à Vontade, porque “o espírito não se move até que queira ser movido”. E esse é o motivo pelo qual somente a Vontade — nem a razão nem os apetites ou desejos — está “em nossas mãos; é livre”. [Epistolae, 177, 5; On Free Choice of the Will, livro III, cap. i, 8-10; cap. iii, 33.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Essa prova da liberdade da Vontade se funda exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real — a faculdade necessária para executar os comandos da Vontade. A prova retira sua plausibilidade de uma comparação da vontade com a razão, por um lado, e com os desejos, por outro; e não é possível, para nenhum dos dois, dizer-se livre. (Vimos que Aristóteles introduziu sua proairesis para evitar o dilema de dizer que o “homem bom” obriga-se a desviar-se de seus apetites, ou que o “homem vil” obriga-se a desviar-se de sua razão.) Qualquer coisa que a razão me diga é forçosa no que diz respeito à razão. Posso ser capaz de dizer “Não” para uma verdade a mim revelada, mas não posso de modo algum fazê-lo em termos racionais. Os apetites surgem automaticamente em meu corpo, e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim; posso dizer “Não” a eles, aconselhado pela razão ou pela lei de Deus, mas a razão em si não me leva à resistência. (Duns Scotus, muito influenciado por Agostinho, elabora mais tarde esse argumento. Sem dúvida o homem carnal, no sentido em que Paulo o entendia, não pode ser livre; mas o homem espiritual tampouco é livre. Qualquer poder que o intelecto possa ter sobre o espírito será um poder de forçar; o que o intelecto jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitar-se a ele, mas deve também QUERER fazê-lo.) [Ver Étienne Gilson, Jean Duns Scot: introduction à ses positions fondamentales, Paris, 1952, p. 657.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
A faculdade da Escolha, tão decisiva para o liberum arbitrium, aplica-se aqui não à seleção deliberativa de meios para um fim, mas principalmente — e, em Agostinho, exclusivamente —, à escolha entre velle e nolle, entre QUERER e não-querer. Este nolle nada tem a ver com o querer-não-querer e não pode ser traduzido como “eu-deixo-de-querer”, porque isso sugere ausência de vontade. Nolle não é menos ativamente transitivo do que velle, e não é menos uma faculdade de vontade: se quero o que não desejo, trata-se de não-querer meus desejos; e posso do mesmo jeito não-querer o que a razão me diz estar certo. Em todo ato de vontade há um “eu-quero” e um “não-quero” envolvidos. São essas as duas vontades cuja discórdia Agostinho disse que “[lhe] dilacerou a alma”. Seguramente “aquele que quer, quer alguma coisa”, e este algo lhe é apresentado “exteriormente, através dos sentidos do corpo, ou vem ao espírito por meios ocultos”; mas o que importa é que nenhum destes objetos determina a vontade [On Free Choice of the Will, livro III, cap. xxv]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
O que é então que faz a vontade QUERER? O que põe a vontade em movimento? A questão é inevitável, mas a resposta acaba levando a um regresso ao infinito. Pois se a pergunta fosse respondida, “não irias perguntar também sobre a causa daquela causa, caso a descobrisses?”. Não desejarias saber a “causa da vontade anterior à vontade?”. Não poderia ser inerente à Vontade, nesse sentido, não ter uma causa? “Pois ou a Vontade é a sua própria causa ou não é uma Vontade.” [Ibidem, cap. xvii] A Vontade é um fato que, em sua factualidade puramente contingente, não pode ser explicado em termos de causalidade. Ou, para antecipar uma última sugestão de Heidegger, já que a Vontade se experimenta como causadora do acontecimento de coisas que, de outra forma, não teriam acontecido, não poderia ocorrer que aquilo que se esconde por trás da nossa busca de causas não é nem o intelecto nem nossa sede de saber (que poderia ser saciada com a informação direta), mas precisamente a Vontade — como se por trás de cada “por que” existisse um desejo latente, não só de aprender e de conhecer, mas também de saber-como? [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Na refutação de Agostinho ao estoicismo, podemos ver uma transformação e uma solidificação semelhantes, ocasionadas por meio de pensamento conceitual. O verdadeiramente escandaloso na doutrina não era que o homem pudesse QUERER dizer “Não” à realidade, mas que esse “Não” fosse insuficiente; diziam ao homem que para ele encontrar a tranquilidade, deveria treinar sua vontade a dizer “Sim” e a “deixar sua vontade ser a de que os eventos aconteçam como acontecem”. Agostinho entende que esta submissão voluntária pressupõe uma limitação rigorosa da própria capacidade da vontade. Embora, em sua visão, a todo velle corresponda um nolle, a liberdade da faculdade é limitada porque nenhum ser criado pode QUERER contra a criação, pois isso seria — mesmo no caso do suicídio — um QUERER dirigido não só contra uma contravontade, mas também contra o próprio sujeito que quer e que não-quer. A vontade, a faculdade de um ser vivo, não pode dizer: “preferiria não ser” ou “preferiria o nada per se”. Quem disser “preferiria não existir a ser infeliz” não merece crédito, já que, enquanto está dizendo isso, ainda está vivo. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Não obstante, isso só pode acontecer porque estar vivo sempre implica um desejo de continuar vivendo: por essa razão, a maior parte das pessoas prefere “ser infeliz a não ser absolutamente nada”. Mas e quanto àqueles que dizem “se eu tivesse sido consultado antes de existir teria preferido não existir a ser infeliz”? Esses não levaram em conta que até mesmo essa proposição é feita com base firme no Ser; se considerassem devidamente o assunto veriam que sua própria infelicidade faz com que eles existam menos do que desejam; ela lhes toma um pouco da existência. “O grau de sua infelicidade é proporcional à distância que mantêm daquilo que existe no grau supremo [quod summe est]” e, portanto, fora da ordem temporal, que está cheia de não-existência — “pois as coisas temporais, antes de existir, não têm existência; enquanto existem, passam; tendo passado, jamais existirão novamente”. Todos os homens temem a morte, e esse sentimento é mais verdadeiro do que qualquer opinião que nos leve a “pensar que deveríamos QUERER não existir”, pois o fato é que “começar a existir é o mesmo que caminhar para a não-existência”. Em suma, “todas as coisas, pelo simples fato de que são, são boas”, inclusive o mal e o pecado; e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus-Criador, mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de QUERER a não-existência absoluta. Nesse contexto, é importante observar que Agostinho (embora a maior parte do que venho citando tenha sido retirada da última parte de De libero arbitrium voluntatis) em nenhum lugar exige, como Eckhart fez mais tarde, que “um homem bom deva submeter sua vontade à vontade divina, de modo a QUERER aquilo que Deus quer: portanto, se Deus quis que eu pecasse, não devo QUERER não ter cometido meu pecado; é este o meu verdadeiro arrependimento”. [On Free Choice of the Will, livro III, caps. vi-viii; Lehmann, op. cit., sentença 14. p. 16.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Voltamos à questão da Vontade nas Confissões, que são quase totalmente não argumentativas e ricas no que hoje chamamos de descrições “fenomenológicas”. Pois embora Agostinho comece por conceituar a posição de Paulo, ele vai muito além, além até de suas próprias primeiras conclusões conceituais — de que “QUERER e estar apto a executar não são a mesma coisa”, de que “a lei não poderia mandar se não houvesse vontade, nem a graça poderia ajudar se a vontade fosse suficiente”, de que o modo de perceber de nosso espírito é um modo que procede apenas por uma sucessão de opostos, o dia tornando-se noite e a noite tornando-se dia, e que aprendemos sobre a justiça somente tendo a experiência da injustiça, sobre a coragem somente por meio da covardia, e assim por diante. Refletindo sobre o que de fato acontecera durante o “combate ardoroso que travara consigo mesmo” antes de sua conversão, Agostinho descobriu que a interpretação que Paulo fazia de uma luta entre carne e espírito estava errada. Pois “meu corpo obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha alma, movendo seus membros a um mínimo sinal, do que minha alma obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada” [Confessions, livro VIII, cap. viii]. Assim, o problema não estava na natureza dual do homem, metade carne e metade espírito: encontrava-se na própria faculdade da Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
A cisão se dá na própria vontade; o conflito não surge de uma cisão entre o espírito e a vontade e tampouco de uma cisão entre a carne e o espírito. Isso comprova-se pelo simples fato de que a Vontade fala sempre no modo imperativo: “Tu Deves QUERER”, diz a Vontade a si mesma. Somente a própria Vontade tem poder para emitir semelhantes ordens, e “se a vontade fosse plena, não ordenaria que fosse vontade”. É da natureza da Vontade duplicar-se, e, neste sentido, onde quer que haja uma vontade, há sempre “duas vontades, nenhuma das quais é plena [tota], e o que falta a uma está presente na outra”. Por essa razão, são sempre necessárias duas vontades antagônicas para se chegar a ter vontade; “não é, portanto, monstruoso QUERER em parte e em parte não-querer” (“Et ideo sunt duae voluntates. quia una earun tota non est. […] Non igitur monstrum partim velle, partim nolle”). O problema é que é o mesmo ego volitivo que simultaneamente quer e não quer: “Era eu o que queria, era eu o que não queria; eu mesmo. Não era um QUERER total nem tampouco um não-querer completo” — e isso não significa que eu tivesse “dois espíritos, um bom e o outro mau”, mas que o tumulto das duas vontades em um só espírito “dilacerava-me” [Ibidem, caps. ix e x]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Encontramos as primeiras mostras dessa nova linha de investigação no final das Confissões, a obra anterior mais próxima de Sobre a Trindade. Ali ocorre pela primeira vez a Agostinho utilizar o dogma teológico do três-em-um como um princípio filosófico geral. Insta o leitor a “considerar essas três coisas que existem em si mesmas […] [e] são bem diferentes da Trindade […], as três coisas de que falo são: Ser, Conhecer e QUERER. [As três estão interligadas.] Pois eu Sou Conhecendo e Querendo; e tenho Conhecimento de que Sou e de que Quero; e Quero Ser e Conhecer. Repare quem puder, nesses três, quão inseparável é uma vida, um espírito, uma essência; enfim, como é difícil a distinção, que, ainda assim, existe” [Ibidem, livro XIII, cap. xi]. A analogia não significa, é claro, que o Ser é análogo ao Pai, o Conhecer ao Filho e o QUERER ao Espírito Santo. O que interessa a Agostinho é simplesmente que o “Eu” espiritual contém três coisas totalmente diferentes, que são inseparáveis e, ainda assim, distintas. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
A tríade Ser, QUERER e Conhecer aparece somente na formulação um tanto incerta das Confissões: é óbvio que o Ser aqui não está em seu lugar, já que não é uma faculdade do espírito. Em Sobre a Trindade, a mais importante tríade do espírito é Memória, Intelecto e Vontade. Essas três faculdades “não são três espíritos, mas um só […]. Referem-se mutuamente […], sendo que cada uma é compreendida pelas” outras duas, e que também mantêm relação consigo mesmas: “Lembro-me de que tenho memória, intelecto e vontade; entendo que entendo, quero e me lembro; e quero QUERER, lembrar-me e entender.” [Ibidem, livro X, cap. xi, 18] Essas três faculdades são iguais em peso, mas sua Unidade deve-se à Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Eis aqui um primeiro indício de certas consequências que muito mais tarde Duns Scotus viria a extrair do voluntarismo agostiniano: a redenção da vontade não pode ser espiritual nem tampouco advém de intervenção divina; a redenção vem do ato que — com frequência na forma de um “coup d’état”, na expressão feliz de Bergson — interrompe o conflito entre o velle e o nolle. E o preço da redenção é, como veremos, a liberdade. Assim como expressou Duns Scotus (seguindo o resumo de um comentador moderno), “é possível para mim estar escrevendo neste momento, assim como me é possível não estar a escrever”. Ainda sou completamente livre e pago por essa liberdade pelo fato curioso de que a Vontade sempre quer e não-quer ao mesmo tempo: a atividade do espírito, no caso da vontade, não exclui o seu oposto. “Ainda assim, meu ato de escrever exclui o seu oposto. Por um ato de vontade, posso me determinar a escrever, e, por outro, posso decidir não escrever, mas minha ação em relação às duas coisas não pode ser simultânea.” [Efrem Bettoni, Duns Scotus: The Basic Principles of his Philosophy, trad. Bernardine Bonansea, Washington, 1961, p. 158. Grifo nosso.] Em outras palavras, a Vontade é redimida, cessando de QUERER e começando a agir, e a interrupção não pode se originar de um ato de querer-não-querer, pois isso já seria uma nova volição. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
O que a vontade não é capaz de realizar é esse desfrutar imóvel; a vontade é dada como uma faculdade do espírito, porque o espírito não “se basta”, e, “em virtude de sua necessidade e do seu QUERER, torna-se excessivamente atento às suas próprias ações” [Ibidem, livro X, cap. v, 7. Grifo nosso]. A vontade decide como usar a memória e o intelecto, isto é, “remete essas faculdades a alguma outra coisa”, mas não sabe como usá-las com “o júbilo, não da esperança, mas do que é realmente o melhor” [Ibidem, cap. xi, 17]. É esse o motivo pelo qual a vontade não está jamais satisfeita, “pois satisfação significa que a vontade está em repouso” [Ibidem, livro XI, cap. v, 9], e nada — e certamente nunca a esperança — pode apaziguar a inquietação de vontade, “a não ser a resignação”, o desfrutar calmo e duradouro de algo presente; somente “a força do amor é tão grande que faz com que o espírito envolva em si mesmo as coisas sobre as quais refletiu longamente com amor” [Ibidem, livro X, cap. v, 7]. Todo o espírito “está nas coisas sobre as quais pensa com amor”, e são essas as coisas “sem as quais ele não pode pensar em si mesmo” [Ibidem, cap. viii, 11]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
A dificuldade nessas “coisas inteligíveis” é que, embora estejam “tão presentes à mirada do espírito […] quanto as coisas tangíveis estão presentes […] aos sentidos corporais”, alguém “que chega [a elas] não se detém nelas […], e cria-se, assim, um pensamento transitório de uma coisa que não é transitória. E esse pensamento transitório é memorizado […], de modo que haja um lugar para onde o pensamento possa de novo retornar”. (O exemplo que ele dá de durabilidade em meio à transitoriedade humana é retirado da música. É como se “alguém fosse QUERER apreender [uma melodia] passando por intervalos de tempo, enquanto ela está à parte do tempo, em uma espécie de silêncio secreto e sublime”; sem a memória para registrar a sequência de sons não seria possível sequer “conceber a melodia, ainda que se pudesse ouvir o canto”. [Ibidem, livro XII, cap. xiv, 23]) O que o Amor produz é a duração, uma permanência da qual o espírito seria, de outra forma, incapaz. Agostinho conceituou as palavras de São Paulo na Epístola aos Coríntios: “O amor não acaba nunca; permanecem estes três — a fé, a esperança e o amor —, porém, o maior destes [o mais durável, por assim dizer] é o amor” (I Coríntios 13:8). [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Em outras palavras e elaborando um pouco essas especulações, temos o seguinte: o Homem é posto em um mundo de mudança e de movimento como um novo começo porque sabe que tem um começo e que terá um fim; sabe até mesmo que este começo é o começo de seu fim — “toda a nossa vida nada mais é do que uma corrida em direção à morte”. [Ibidem, livro XIII, cap. x] Nenhum animal, de nenhuma espécie, tem, neste sentido, um começo ou um fim. Com o homem criado à imagem do próprio Deus veio ao mundo um ser que, por ser um começo correndo para um fim, pôde ser dotado da capacidade de QUERER ou não QUERER. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Nesse aspecto, ele foi a imagem de um Deus-Criador; mas uma vez que era temporal, e não eterno, a capacidade foi completamente dirigida para o futuro. (Sempre que Agostinho fala dos três tempos verbais, enfatiza a primazia do futuro — de modo semelhante a Hegel, como vimos. O primado da Vontade entre as faculdades do espírito exige a primazia do futuro nas especulações sobre o tempo.) Todo homem, sendo criado no singular, é um novo começo em virtude de ter nascido; se Agostinho tivesse levado essas especulações às suas consequências, teria definido os homens não à maneira dos gregos, como mortais, mas como “natais”, e teria definido a liberdade da Vontade não como o liberum arbitrium, a escolha livre entre QUERER e não QUERER, mas como a liberdade sobre a qual fala Kant na Crítica da razão pura. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 10]
Tomás não foi o primeiro a considerar o mal como nada mais do que “privação”, uma espécie de ilusão de ótica causada quando o todo, do qual o mal é apenas uma parte, não é levado em conta. Já Aristóteles tivera a noção de um Universo “no qual toda parte tem seu lugar perfeitamente ordenado”, de modo que o bem inerente ao fogo “causa mal à água” por acidente [Citado em ibidem, questão 49, a. 3]. E este continua sendo o mais resistente e repetido argumento tradicional contra a existência real do mal; nem mesmo Kant, que inventou o conceito de “mal radical”, acreditava que alguém que “não possa demonstrar-se um amante” deva, por isso, estar “fadado a demonstrar-se um vilão”, que, usando a linguagem de Agostinho, velle e nolle estejam interligados e que a verdadeira escolha da Vontade seja entre QUERER e não-querer. Ainda assim, é verdade que este velho topos da filosofia faz mais sentido em Tomás do que na maior parte dos outros sistemas, porque o centro do sistema de Tomás, seu “primeiro princípio”, é o Ser. No contexto de sua filosofia, “dizer que Deus criou não só o mundo mas também [criou] nele o mal seria dizer que Deus criou o nada”, como apontou Gilson [History of Christian Philosophy in the Middle Age, Nova York, 1955, p. 375]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 11]
Voltando a Tomás, ele insiste: “Se Intelecto e Vontade forem comparados de acordo com a universalidade de seus respectivos objetos, então […] o Intelecto é absolutamente mais alto e mais nobre do que a Vontade.” Essa proposição é bastante significativa porque ela não vem de sua filosofia geral do Ser. O próprio Tomás de certa forma admite isso. Para ele, a primazia do Intelecto sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos — a Verdade sobre o Bem —, mas sim no modo como as duas faculdades “concorrem” dentro do espírito humano: “todo movimento da vontade […] é precedido de uma compreensão” — ninguém pode QUERER o que não conhece — “enquanto […] a compreensão não é precedida de um ato da vontade” [Summa Theologica, I, questão 82, a. 4]. (Aqui naturalmente ele se afasta de Agostinho, que sustentava a primazia da Vontade como atenção, mesmo para atos de percepção sensorial.) Tal precedência mostra-se em cada volição. Na “livre escolha”, por exemplo, em que se elegem os meios para um fim, os dois poderes concorrem na eleição: “o poder cognitivo […], através do qual julgamos que uma coisa é preferível a outra […]”, e “o poder apetitivo [por meio do qual] exige-se que o apetite aceite o julgamento do conselho” [Ibidem, questão 83, a. 3]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 11]
Se encaramos as posições agostinianas e tomísticas em termos puramente psicológicos, como seus autores costumavam com frequência qualificá-las, temos que admitir que a oposição entre elas é algo espúria, já que ambas são igualmente plausíveis. Quem poderia negar que ninguém pode QUERER o que não conhece de alguma forma, ou, ao contrário, que alguma volição precede e decide a direção que queremos dar a nosso conhecimento ou à nossa busca de conhecimento? A verdadeira razão de Tomás para sustentar a primazia do Intelecto — assim como a razão final de Agostinho para decidir sobre o primado da Vontade — está na resposta indemonstrável para a questão decisiva de todos os pensadores medievais: em que “consiste o fim e a felicidade última do homem”? [Levantado por Tomás na Summa contra Gentiles, III, 26] Sabemos que a resposta de Agostinho foi amor; ele pretendia passar sua vida eterna em uma união livre de desejos e inseparável da criatura com seu criador. Já Tomás, em óbvia resposta a Agostinho e aos agostinianos (embora sem mencioná-los), diz que embora se possa pensar que a felicidade e o fim último do homem consistam “não em conhecer Deus, mas em amá-Lo, ou em algum outro ato de vontade em direção a Ele”, ele, Tomás, sustenta que “uma coisa é possuir o bem que é o nosso fim, e outra é amá-lo; pois o amor era imperfeito antes de possuirmos o fim, e perfeito depois de dele termos tomado posse”. Para ele, um amor sem desejo é impensável, e, portanto, a resposta é categórica: “A felicidade última do homem é essencialmente conhecer Deus pelo Intelecto; não é um ato da Vontade.” Aqui Tomás segue seu mestre, Alberto Magno, que declarou que “o júbilo supremo se dá quando o Intelecto encontra-se em estado de contemplação”. [Citado de Wilhelm Kahl, Die Lehre vom Primat des Willens bei Augustin, Duns Scotus und Descartes, Estrasburgo, 1886, p. 61, nota.] A concordância absoluta de Dante merece menção: Hence may be seen how the celestial bliss / Is founded on the act that seeth god, / Not that which loves, which comes after this. [The Divine Comedy, Paraíso, canto xviii, I. 109 s., trad. Laurence Binyon, Nova York, 1949. “Assim vês como a glória celestial se funda/ Mais no ato de ver a Deus/ Do que no amor que apenas o secunda.” (Tradução livre, N. T.)] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 11]
Quando iniciei essas considerações tentei enfatizar a distinção entre Vontade e desejo, e, consequentemente, entre o conceito de Amor na filosofia da Vontade de Agostinho e o eros platônico no Banquete, em que se indica uma deficiência no amante e um desejo de possuir qualquer coisa que possa faltar. O que acabei de citar de Tomás mostra, a meu ver, até que ponto seu conceito das faculdades apetitivas deve-se ainda à noção de um desejo de possuir em um Além tudo o que possa faltar à vida terrena. Pois a Vontade, entendida basicamente como desejo, termina quando se toma posse do objeto desejado, e a noção de que “a Vontade é exaltada quando está de posse daquilo que quer” [Citado de Gustav Siewerth, Thomas von Aquin, die menschliche Willensfreiheit. Texte […] ausgewähltsmit einer Einleitung versehen, Düsseldorf, 1954, p. 62.] é simplesmente uma inverdade — este é precisamente o momento em que a Vontade deixa de QUERER. O Intelecto, que segundo Tomás é um “poder passivo” [Summa Theologica, I, questão 79, a. 2], tem garantida a primazia sobre a Vontade não só porque “apresenta um objeto ao apetite”, sendo assim anterior a ele, mas também porque sobrevive à Vontade, que se extingue, de certo modo, quando se alcança o objeto. A transformação da Vontade em Amor — em Agostinho, bem como em Duns Scotus — era, pelo menos em parte, inspirada por uma separação mais radical entre a Vontade e os apetites e desejos e por uma noção diferente da “felicidade e do fim último do homem”. Mesmo no Além, o homem continua sendo homem, e sua “felicidade última” não pode ser a simples “passividade”. O Amor pôde ser invocado para redimir a vontade porque ainda é ativo, embora sem inquietude, sem perseguir um fim ou ter medo de perdê-lo. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 11]
Aquilo que em Aristóteles era o “mais contínuo dos prazeres” é agora esperado como ventura eterna, não um prazer que possa atender às volições, mas um deleite que põe em repouso a vontade, de modo que o fim último da Vontade, visto em referência a si mesmo, seja deixar de QUERER — atingir, em suma, o seu próprio não-ser. E no contexto do pensamento de Tomás, isso implica que toda atividade, uma vez que seu fim jamais é alcançado enquanto ainda é ativa, ambiciona finalmente a sua própria autodestruição; os meios desaparecem quando o fim é alcançado. (É como se alguém, ao escrever um livro, fosse sempre levado pelo desejo de terminá-lo e de livrar-se da escrita.) O ponto a que Tomás, em sua decidida predileção pela contemplação como simples ver e não-fazer, estava disposto a chegar fica evidente em uma fortuita observação marginal, quando interpreta um texto paulino que trata do amor entre duas pessoas. Poderia o “prazer” de amar alguém, indaga ele, significar que o “fim” último da Vontade foi posto no homem? A resposta é “não”, pois, segundo Tomás, o que Paulo disse na verdade foi que “gostava de seu irmão como um meio para gostar de Deus” [Summa Theologica, I-II, questão 11, a. 3. Cf. Commentary on St. Paul’s Epistle to the Galatians, cap. 5, lec. 3.] — e Deus, como vimos, não pode ser alcançado pela Vontade ou pelo Amor do Homem, mas somente por seu Intelecto. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 11]
É esse o teste pelo qual a liberdade é demonstrada, e nem o desejo nem o intelecto podem equiparar-se a ela: um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir, e uma questão apresentada ao intelecto pode apenas ser negada ou afirmada. Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos QUERER ou não-querer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo: “In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle, quae sunt contraria, respectu unius obiecti” (“Está em poder de nossa vontade QUERER e não-querer, que são contrários, com relação ao mesmo objeto”) [Citado de Kahl, op. cit., pp. 86-87]. Ao dizer isso, Scotus não está negando, é claro, que duas volições sucessivas são necessárias para QUERER e não QUERER o mesmo objeto; mas sustenta, sim, que o ego volitivo, ao realizar uma delas, sabe ser livre para realizar também o seu contrário: “A característica essencial de nossos atos volitivos é […] o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha, uma vez que tenha sido feita (grifos nossos) [Bettoni, Duns Scotus, p. 76]. É precisamente desta liberdade, que se manifesta apenas como atividade espiritual — o poder de revogar desaparece uma vez que se execute a volição —, que falamos anteriormente em termos de uma fragmentação da vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Essa recusa, que Scotus não menciona em sua discussão do possível ódio a Deus, é postulada em analogia com sua objeção à velha ideia de que “todos os homens querem ser felizes”. Ele admite ser evidente que os homens desejam por natureza ser felizes (embora não haja um acordo sobre o que é felicidade), mas a Vontade — e aqui temos o ponto crucial — pode transcender a natureza, no caso, suspendê-la: há uma diferença entre a inclinação natural do homem para a felicidade e a felicidade como objetivo de vida deliberadamente escolhido; não é absolutamente impossível para o homem descartar de todo a felicidade ao fazer seus projetos voluntários. No que diz respeito à inclinação natural e à limitação imposta pela natureza ao poder da Vontade, tudo o que se pode afirmar é que “nenhum homem quer ser desgraçado”. [Ver Bernardine M. Bonansea, “Duns Scotus’ Voluntarism”, in Ryan e Bonansea, op. cit., p. 92. “Non possum velle esse miserum; (…) sed ex hoc non sequitur, ergo necessario volo beatitudinem, quia nullum velle necessario elicitur a voluntate”, p. 93, nota 38.] Scotus evita dar uma resposta clara à questão de se o ódio a Deus é possível ou não pela relação íntima que existe entre essa questão e a questão do mal. Alinhado com todos os seus predecessores e sucessores, também ele nega que o homem possa QUERER o mal como mal, “mas não sem levantar algumas dúvidas quanto à possibilidade da visão oposta”. [Ver ibidem, pp. 89-90 e nota 28. Bonansea enumera as passagens “que parecem indicar a possibilidade de a vontade buscar o mal como mal” (p. 89, nota 25).] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
A autonomia da Vontade — “nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”) [Citado de Vogt, op. cit., p. 31] — limita de forma decisiva o poder da razão, cujo ditame não é absoluto; mas não limita o poder da natureza, seja da natureza do homem interior, a que se dá o nome de “inclinações”, seja da natureza das circunstâncias exteriores. A vontade não é, de modo algum, onipotente em sua efetividade real: sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a QUERER. Para ilustrar essa liberdade do espírito, Scotus dá o exemplo de “um homem que se atira de um lugar alto” [Bonansea, op. cit., p. 94, nota 44]. Esse ato acaba com sua liberdade, uma vez que agora ele necessariamente cai? Segundo Scotus, não. Enquanto o homem está caindo necessariamente, compelido pela lei da gravidade, permanece livre para continuar a “QUERER cair”, e pode também, é claro, mudar de ideia, caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade. Lembramos o exemplo de Espinosa, da pedra que rola, a qual, se fosse dotada de consciência, seria necessariamente vítima da ilusão de que havia ela mesma se atirado e de que, se estava agora rolando, era por sua própria vontade. Tais comparações são úteis para que possamos nos dar conta de até que ponto tais proposições e suas ilustrações, no disfarce de argumentos plausíveis, dependem de pressupostos preliminares sobre necessidade ou liberdade como fatos autoevidentes. Para ficar com o presente exemplo: nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a liberdade assegurada na experiência interior; nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é, real e necessariamente, conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do intelecto. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
A seguir, resumirei essas cadeias de pensamento — ou experiências de pensamento — admiravelmente originais e altamente relevantes, que claramente se chocam com a natureza de nossas tradições filosóficas e teológicas, mas que nos escapam facilmente por ser apresentadas à maneira do escolástico e por se perderem facilmente nas intrincadas argumentações scotianas. Já mencionei alguns dos notáveis insights: primeiro, sua objeção ao velho clichê de que “todos os homens querem ser felizes” (do qual só sobrou que “nenhum homem pode QUERER ser infeliz”); segundo, sua não menos surpreendente prova da existência da contingência (“Que todos aqueles que negam a contingência sejam torturados até que admitam que seria possível não serem torturados”) [Para a “prova” da contingência, Scotus invoca a autoridade de Avicena, citando de sua Metaphysics: “Aqueles que negam o primeiro princípio [isto é, que Algum ser é contingente] devem ser açoitados ou queimados até que admitam que não é a mesma coisa ser queimado ou chicoteado e não ser queimado ou chicoteado.” Ver Arthur Hyman e James J. Walsh, Philosophy in the Middle Ages, Nova York, 1967, p. 92.]. Ao esbarrarmos com observações tão terra a terra em cercanias eruditas, é tentador vê-las como simples chistes. Sua validade, segundo Scotus, depende da experientia interna, uma experiência do espírito cuja evidência só pode ser negada por aqueles a quem falta a experiência, assim como o homem cego negaria a experiência da cor. O caráter seco e inflamável de tais observações poderia sugerir clarões de insights, em vez de cadeias de pensamento; mas esses clarões abruptos normalmente só se dão na coisa-pensamento em uma única frase expressiva, que é o resultado de um longo exame crítico prévio. É característico de Scotus que, a despeito de sua “paixão pelo pensamento construtivo”, ele não fosse um edificador de sistemas; seus insights mais surpreendentes aparecem com frequência por acaso e fora de contexto; ele devia saber das desvantagens disso, pois nos adverte explicitamente para não entrarmos em disputas com oponentes litigiosos, que, na falta da experiência interna, são capazes de ganhar uma discussão e perder a questão. [Qualquer um que esteja acostumado com as disputas medievais entre as escolas não deixa de se surpreender com seu espírito contencioso, um tipo de “saber contencioso” (Francis Bacon), que objetivava acima de tudo uma vitória efêmera. As sátiras de Erasmo e Rabelais, assim como os ataques de Francis Bacon, atestam uma atmosfera nas escolas que deve ter sido bastante desagradável para aqueles que estavam fazendo filosofia de fato. Para Scotus, ver Saint-Maurice in Ryan e Bonsnsea, op. cit., pp. 354-358.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Era assim que a questão se apresentava aos cristãos; é por isso que os “cristãos […] dizem que Deus age contingentemente […], livre e contingentemente” [Wolter, op. cit., p. 80]. Mas é possível também, segundo Scotus, chegar à mesma avaliação da contingência por meio da filosofia. Afinal, fora o Filósofo que definira o contingente e o acidental (to symbébekos) como “aquilo que poderia também não ser” (endechomenon mé einai) [Aristóteles, Phisics, 256b10]; e de que o ego volitivo tinha mais ciência em cada volição do que o fato de que poderia também não QUERER (experitur enim qui vult se posse non velle [Auer, op. cit., p. 169])? Como o homem poderia chegar a ser capaz de distinguir um ato livre de vontade de um desejo irresistível sem aquele teste interno infalível? [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
O que aparentemente ia contra a liberdade da Vontade de QUERER ou não QUERER era a lei da causalidade, que Scotus também conhecia na versão aristotélica: uma cadeia causal que tornasse o movimento inteligível e levasse finalmente a uma fonte imóvel, de todo o movimento, “o motor imóvel”, uma causa que não é ela mesma causada. A força do argumento, ou melhor, sua força explanatória, está no pressuposto de que uma só causa é suficiente para explicar por que uma coisa deveria ser em vez de não-ser, isto é, para explicar o movimento e a mudança. Scotus questiona toda a noção de uma cadeia de causalidade que siga em uma linha contínua através de uma sucessão de causas suficientes e necessárias, e que tenha de chegar, no final, a uma Causa Primeira para evitar um regresso ao infinito. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Diz-se que Scotus admitiu de bom grado que “não há resposta real para a questão sobre o modo de conciliar a liberdade e a necessidade” [Ver Bonansea, op. cit., p. 95]. Não estava a par da dialética hegeliana, na qual o processo da necessidade pode produzir a liberdade. Mas, no seu modo de pensar, não era preciso haver tal conciliação, pois a liberdade e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito; se é que havia conflito, ele corresponderia a um conflito intramuros, entre os egos pensante e volitivo, um conflito em que a vontade dirige o intelecto e faz com que o homem pergunte: “Por quê?” A razão para isso é simples: a Vontade, como Nietzsche descobriria mais tarde, é incapaz de “QUERER retroativamente”; logo, deixe-se para o intelecto a tarefa de descobrir o que deu errado. A questão “por quê?” — “qual é a causa”? — é sugerida pela vontade porque a vontade se experimenta como um agente causativo. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
É esse aspecto da Vontade que enfatizamos quando dizemos que “a Vontade é a fonte da ação” ou, na linguagem escolástica, que “nossa vontade […] é produtora de atos, e é o que permite a seu possuidor operar explicitamente no QUERER” [Citado de Hyman e Walsh, op. cit., p. 596]. Para falar em termos de causalidade, primeiro a vontade causa volições, e tais volições causam certos efeitos que nenhuma vontade pode desfazer. O intelecto, tentando fornecer à vontade uma causa explanatória que lhe abrande a indignação quanto à própria fraqueza, fabricará uma história que faça com que os dados se encaixem. Sem pressupor a necessidade, faltaria à história toda a coerência. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Intimamente ligada a essa doutrina da contingência está a solução, de simplicidade surpreendente, que Scotus dá ao velho problema da liberdade, uma vez que o problema surge da própria faculdade da vontade. Discutimos com algum detalhe a curiosa fragmentação da vontade, o fato de que a divisão dois-em-um, característica de todos os processos do espírito e descoberta primeiramente — por Sócrates e Platão — no processo do pensamento, transforma-se em uma luta fatal entre o “eu-quero” e o “não-quero” (entre velle e nolle), que devem, ambos, estar presentes para assegurar a liberdade: “Experitur enim qui vult se posse non velle.” “Aquele que experimenta uma volição tem também a experiência de ser capaz de não QUERER.” [Auer, op. cit., p. 152] Os escolásticos, seguindo a filosofia da Vontade de Paulo, o Apóstolo, e de Agostinho, concordavam que a graça divina era necessária para curar o infortúnio da Vontade. Scotus, talvez o mais pio dentre eles, discordava disso. Não é necessária qualquer intervenção divina para redimir o ego volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Ela própria sabe muito bem como se curar das consequências do dom inestimável e, ainda assim, altamente questionável da liberdade humana; questionável porque o fato de a vontade ser livre e de não ser determinada ou limitada por qualquer objeto dado, exterior ou interiormente, não significa que o homem como homem goze de liberdade ilimitada. O modo normal que o homem tem de escapar à sua liberdade é simplesmente agir conforme as proposições da vontade: “Por exemplo, é possível para mim estar escrevendo neste momento, assim como me é possível não estar escrevendo; ainda assim, meu ato de escrever exclui o seu oposto. Por um ato da vontade posso me determinar a escrever, e por outro ato posso decidir não escrever, mas não posso tomar uma atitude simultânea em relação às duas coisas.” [Bettoni, Duns Scotus, p. 158] Em outras palavras, a vontade humana é indeterminada, aberta a contrários e, portanto, fragmentada somente à medida que sua única atividade consiste em formar volições; no momento em que para de QUERER e começa a agir conforme uma das proposições da vontade, ela perde sua liberdade — e o homem, o possuidor do ego volitivo, fica tão feliz com a perda quanto ficou o asno de Buridan quando resolveu o problema da escolha entre os dois montes de feno, decidindo seguir seu instinto: parar de escolher e começar a comer. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Subjaz a essa solução, que parece simplista à primeira vista, uma distinção feita por Scotus — provavelmente sob a influência de Aristóteles — entre activum e factivum. Trata-se da distinção entre a atividade pura, a energeia aristotélica, que tem seu fim e ergon em si mesma, e a fabricação, facere, que consiste em “produzir ou moldar algum objeto externo”, e isso implica “que a operação é transitória, isto é, tem um fim fora do agente. Os artefatos do homem são produzidos por uma atividade transitória” [Wolter, op. cit., pp. 57 e 177]. As atividades do espírito, tais como pensar ou QUERER, são atividades da primeira espécie, e estas, pensava Scotus, embora não tenham qualquer resultado no mundo real, são de uma “perfeição” maior, porque essencialmente não são transitórias. Elas cessam não por terem chegado a seu próprio fim, mas somente porque o homem, criatura limitada e condicionada, é incapaz de continuá-las indefinidamente. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Quando Scotus especula sobre uma vida após a morte — isto é, sobre uma existência “ideal” para o homem como homem —, esta tão almejada transformação da vontade em amor com seu inerente delectatio é decisiva. A transformação do QUERER em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma: logo, a bem-aventurança futura, a beatitude que se goza na vida eterna, não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação. A contemplação do summum bonum, da “coisa” mais alta, portanto, Deus, seria o ideal do intelecto, que sempre se baseia na intuição, a apreensão de uma coisa em seu “ser-isto” [Thisness], haecceitas, que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado, mas também porque a intuição do “ser-isto” é imperfeita: o “intelecto […] recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade” [Bettoni, Duns Scotus, p. 122]. A noção de “paz eterna”, ou de Descanso, surge da experiência da inquietação, dos desejos e apetites de um ser necessitado que pode transcendê-los em atividades do espírito, sem jamais ser capaz de escapar completamente a eles. O que a Vontade em um estado de bem-aventurança, isto é, em uma vida após a morte, não precisa mais ou não consegue mais ter é a rejeição e o ódio, mas isso não significa que o homem em estado de bem-aventurança tenha perdido a faculdade de dizer “sim”. A essa aceitação incondicional Scotus dá o nome de “Amor”: “Amo: volo ut sis.” “A beatitude é, portanto, o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo intelecto e o ama, satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele.” [Bonansea, op. cit., p. 120] Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade, mas não mais como uma atividade do espírito, uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo intelecto. Pois a “beatitude […] consiste no alcance pleno e perfeito do objeto como ele é em si, e não simplesmente como está no espírito” [Ibidem, p. 119]. O espírito, transcendendo as condições existenciais do “viajante” ou peregrino na terra, tem uma indicação desta bem-aventurança futura em sua experiência de pura atividade, isto é, em uma transformação da vontade em amor. Recaindo na distinção agostiniana entre uti e frui, usar algo para alguma outra coisa e desfrutar de algo por si mesmo, Scotus diz que a essência da beatitude consiste no fruitio, “o amor perfeito a Deus por amor a Deus […] e é assim distinto do amor a Deus por amor a si mesmo”. Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria alma, ainda assim é amor concupiscentiae, amor desejoso [Ibidem, p. 120]. Já em Agostinho encontramos a transformação da vontade em amor, e é bastante provável que as reflexões de ambos os pensadores fossem guiadas pelas palavras de Paulo sobre “o amor que jamais acaba”, nem mesmo “quando vier o que é perfeito” e tudo o mais tiver sido “aniquilado” (I Coríntios 13:8-13). Em Agostinho, a transformação se dá pela força unificadora da vontade; não há maior força unificadora do que o amor com que os amantes se amam (“maravilhosamente unidos”) [On the Trinity, livro X, cap. viii, 11]. Mas, para Scotus, a base de experiência para a eternidade do amor está em sua concepção de um amor que não só está por assim dizer esvaziado, purificado dos desejos e das necessidades, mas é também um amor no qual a própria faculdade da Vontade é transformada em atividade pura. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 12]
Foi nessa região de especulação pura que a Vontade apareceu durante o curto período do idealismo alemão. “Na instância última e mais alta”, declarou Schelling, “não há outro Ser senão a Vontade. A Vontade é Ser primordial, e todos os predicados aplicam-se somente a ela — a ausência de fundamento, a eternidade, a independência do tempo, a autoafirmação! Toda filosofia luta apenas para encontrar esta expressão maior.” [Ibidem, p. 350] E citando essa passagem em What is called thinking? Heidegger logo acrescenta: “Os predicados, pois, que o pensamento metafísico atribuiu desde a Antiguidade ao Ser, Schelling encontra-os em sua forma final e mais alta no QUERER. A Vontade nesse QUERER não significa aqui uma capacidade da alma humana, entretanto; a palavra ‘QUERER’ designa aqui o Ser dos seres como um todo” (grifos nossos) [Trad. F. D. Wieck e J. G. Gray, Nova York, Evanston, Londres, 1968, p. 91]. Sem dúvida, Heidegger está certo; a Vontade de Schelling é uma entidade metafísica; mas, ao contrário das falácias metafísicas mais comuns e mais antigas, ela é personificada. Em um contexto diferente e de forma mais precisa, o próprio Heidegger sintetiza o significado deste Conceito personificado: a falsa “opinião de que a vontade humana é a origem da vontade-de-querer surge [facilmente], quando, ao contrário, é a Vontade-de-querer que quer o homem, sem que ele sequer experimente a essência de tal vontade” [Vorträge und Aufsätze, p. 89]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 13]
Consideraremos a princípio alguns enunciados descritivos simples, sem conotações filosóficas gerais ou metafísicas. A maior parte vai soar bastante familiar, mas será melhor não precipitar a conclusão de que possamos estar aqui diante de influências eruditas. Inferir esse tipo de coisa é especialmente tentador no caso de Heidegger, por seu profundo conhecimento de filosofia medieval, por um lado, e por sua insistência na primazia do tempo futuro em Ser e Tempo (de que já falei), por outro. Mais digno de nota ainda é que, em sua discussão sobre a Vontade, que toma fundamentalmente a forma de uma interpretação de Nietzsche, ele nunca mencione as descobertas de Agostinho nas Confissões. Logo, fica melhor atribuir aquilo que irá parecer familiar no que vem a seguir às características peculiares da faculdade da vontade; até mesmo a influência de Schopenhauer sobre o jovem Nietzsche pode ser desconsiderada aqui sem maiores escrúpulos. Nietzsche sabia que “Schopenhauer falou sobre a ‘vontade’; mas não há nada mais característico de sua filosofia do que a ausência de uma vontade genuína” [The Will to Power, n° 95, p. 59], e viu corretamente que a razão para isso reside em um “equívoco básico na compreensão da vontade (como se o anseio, o instinto, o ímpeto fossem a essência da vontade)”, ao passo que “o QUERER é precisamente um senhor dos anseios, aquilo que estipula para eles o seu modo e a sua medida” [Ibidem, n° 84, p. 52]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Pois “QUERER não é o mesmo que desejar, esforçar-se por algo ou ter necessidade de algo: distingue-se de tudo isso através do elemento do Comando […]. Que se comande algo, isto é inerente ao QUERER” [Ibidem, n° 668, p. 353. Trad. da autora]. Heidegger comenta: “Não há expressão mais característica em Nietzsche do que […] QUERER é comandar; inerente ao QUERER está o pensamento que comanda.” [Nietzsche, vol. I, p. 70] E não menos característico é que este pensamento que comanda só muito raramente dirige-se ao domínio dos outros: o comando e a obediência ocorrem ambos no espírito — de um modo estranhamente semelhante ao da concepção de Agostinho sobre a qual Nietzsche certamente nada sabia. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Ele explica em detalhes em Para além do bem e do mal: Aquele que quer dá ordens a alguma coisa que nele obedece […]. O aspecto mais estranho deste fenômeno múltiplo a que chamamos de “Vontade” é que só tenhamos uma palavra para ele, e, em especial, que tenhamos só uma palavra para o fato de que somos, em cada caso particular, ao mesmo tempo quem dá as ordens e quem lhes obedece; ao obedecermos, experimentamos os sentimentos de coerção, ânsia, pressão, resistência, que normalmente começaram a se manifestar imediatamente após o ato de QUERER; por estarmos, entretanto, […] no comando […] experimentamos uma sensação de prazer, e isso ainda mais intensamente porque estamos habituados a superar a dicotomia pela noção do Eu, o Ego, e isso de um modo que tomamos como certa em nós a obediência, e que identificamos QUERER e executar, QUERER e agir [grifos nossos]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Não esperaríamos que Nietzsche acreditasse na graça divina como o poder de cura da dualidade da Vontade. O inesperado na descrição acima é que ele tenha detectado na “consciência” da luta uma espécie de truque do “Eu” que o capacita para escapar ao conflito identificando-se com a parte que comanda, e para fechar os olhos, por assim dizer, para os sentimentos desagradáveis e paralisantes de se estar sob coerção e, portanto, sempre prestes a resistir. Nietzsche com frequência denuncia esse sentimento de superioridade como uma ilusão, ainda que como uma ilusão saudável. Em outras passagens ele explica a “estranheza” do fenômeno como um todo chamando-o de uma “oscilação [da vontade] entre sim e não”, mas mantém-se preso ao sentimento da superioridade do “Eu”, identificando a oscilação com uma espécie de vaivém entre o prazer e a dor. O prazer, diferente neste e em outros aspectos do deletactio de Scotus, é claramente o júbilo antecipado do “eu-posso” inerente ao próprio ato de QUERER, independente da performance, do sentimento triunfante que todos conhecemos quando nos desempenhamos bem, independente de exaltação ou de plateia. Em Nietzsche, o que importa é que ele inclui os sentimentos negativos de servidão, de estar sob coação e de resistência ou ressentimento entre os obstáculos necessários sem os quais a Vontade nem sequer conheceria seu próprio poder. Somente ao vencer uma resistência interna é que a Vontade toma consciência de sua gênese: ela não brotou para adquirir poder; o poder é sua própria fonte. Novamente em Para além do bem e do mal: ‘‘‘Liberdade da vontade’ é a expressão para a condição prazerosa múltipla daquele que quer e que está no comando e simultaneamente se vê como o mesmo que executa o comando — desfrutando, enquanto tal, o triunfo sobre a resistência, mas de posse do juízo de que é sua própria vontade que está superando a resistência. Dessa maneira, aquele que quer acrescenta os sentimentos prazerosos da execução ao sentimento prazeroso que tem como Comandante.” [Ibidem, grifo nosso] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
A mudança nietzschiana do “eu-quero” para o “eu-posso” antecipado, que nega o “eu-quero-e-não-posso” de Paulo, negando assim toda a ética cristã, está baseada em um “Sim” irrestrito à Vida, isto é, em uma elevação da Vida, tal como ela é experimentada fora de todas as atividades do espírito, à posição de valor supremo, segundo o qual tudo o mais deve ser avaliado. Isso é possível e razoável porque há, com efeito, um “eu-posso” inerente a cada “eu-quero”, como vimos em nossa discussão sobre Duns Scotus: “Voluntas est potentia quia ipsa alquid potest” (“A Vontade é um poder porque consegue alcançar algo”) [Ver cap. III, p. 142]. A Vontade nietzschiana, entretanto, não se limita por seu próprio “eu-posso” inerente; por exemplo, ela pode QUERER a eternidade, e Nietzsche anseia por um futuro que produzirá o “super-homem”, isto é, uma nova espécie humana forte o suficiente para viver no pensamento de um “eterno retorno”. “Produzimos o pensamento mais pesado — produzamos agora o ser para quem isso será fácil e venturoso! […] Para celebrar o futuro, não o passado. Para cantar [dichten] o mito do futuro.” [In Anfzeichnung zum VI, Teil von “Also Sprach Zarathustra”, citado de Heidegger, Was Heisst Denken?, p. 46.] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
A ideia da Vida como o mais alto valor não pode, é claro, ser demonstrada; é uma simples hipótese, o pressuposto do senso comum de que a vontade é livre, porque, sem esse pressuposto — como se tem dito repetidas vezes —, nenhum preceito de natureza moral, religiosa ou jurídica poderia chegar a fazer sentido. Ela é contrariada pela “hipótese científica” segundo a qual — como apontou Kant de maneira notável — todo ato, no momento em que entra no mundo, cai em uma rede de causas, aparecendo assim em uma sequência de ocorrências explicáveis somente no contexto da causalidade. Para Nietzsche, o decisivo é que a hipótese do senso comum constitui um “sentimento dominante do qual não podemos nos livrar mesmo se as hipóteses científicas fossem demonstradas” [The Will to Power, n° 667, p. 352. Trad. da autora]. Mas a identificação da vontade com a vida, a ideia de que nosso ímpeto de viver e nossa vontade de QUERER são, ao final, a mesma coisa tem outras consequências, talvez mais sérias para o conceito nietzschiano de poder. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Aqui, a princípio, é como se estivéssemos lidando com uma metáfora perfeita, uma “semelhança perfeita de duas relações entre coisas completamente diferentes” [Ver O Pensar, cap. II]. A relação entre as ondas e o mar, do qual elas se erguem sem intenção ou meta, criando uma euforia enorme e sem propósito, assemelha-se e, portanto, ilumina o turbilhão que a Vontade provoca na morada da alma — parecendo estar sempre em busca de algo, até que se acalma, ainda que sem se extinguir, sempre pronta para um novo levante. A Vontade aprecia o QUERER assim como o oceano aprecia as ondas, pois “a não QUERER, o homem prefere ainda QUERER o nada” [Toward a Genealogy of Morals, n° 28]. Em um exame mais detido, entretanto, parece que algo bastante decisivo aconteceu àquilo que era originalmente uma metáfora homérica. Aquelas metáforas, como vimos, eram sempre irreversíveis: olhando para as tempestades no oceano, nos lembraríamos de nossas emoções interiores; mas aquelas emoções nada nos informavam sobre o mar. Na metáfora nietzschiana, as duas coisas diferentes que a metáfora reúne não apenas se assemelham; para Nietzsche, elas são idênticas; e o “segredo” do qual ele tanto se orgulha é precisamente seu conhecimento dessa identidade. Vontade e Onda são a mesma coisa, e pode-se mesmo ficar tentado a supor que as experiências do ego volitivo fizeram com que Nietzsche descobrisse o turbilhão do mar. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Há, em primeiro lugar — o que parece óbvio, mas que nunca foi apontado antes —, o fato de que “a Vontade não pode QUERER retroativamente; não pode parar a roda do tempo”. Esta é a versão de Nietzsche para o “eu-quero-e-não-posso”, pois é precisamente este QUERER retroativo que a Vontade quer e pretende alcançar. Dessa impotência Nietzsche retira todo o mal humano — o rancor, a sede de vingança (castigamos porque não podemos desfazer o que foi feito), a sede de poder para dominar os outros. A essa “genealogia da moral” poderíamos acrescentar a impotência da Vontade, que persuade o homem a preferir olhar para trás, relembrando e pensando, porque, para o olhar retrospectivo, tudo o que é parece ser necessário. O repúdio da Vontade libera o homem de uma responsabilidade que seria intolerável caso nada do que foi feito pudesse ser desfeito. Em todo caso, foi provavelmente o choque da Vontade com o passado que fez com que Nietzsche fizesse experimentos com o Eterno Retorno. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Em segundo lugar, o conceito de “vontade-de-potência” é redundante: a Vontade gera poder para o QUERER; logo, a vontade que tem como objetivo a humildade não é menos poderosa do que aquela cujo objetivo é mandar nos outros. O ato de vontade em si já é um ato de potência, uma indicação de força (o “sentimento de força”, Kraftgefühl) que vai além do que se requer para satisfazer as necessidades e demandas da vida cotidiana. Se há uma contradição simples nos experimentos de pensamento de Nietzsche, é a contradição entre a impotência factual da Vontade — ela quer, mas não pode QUERER retroativamente — e este sentimento de força. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
O necessário, claramente, não é mudar o mundo ou os homens, mas sim o modo que estes têm de “avaliá-lo”, seu modo, em outras palavras, de pensar e refletir sobre ele. Nas palavras de Nietzsche, o que deve ser superado são os filósofos, aqueles cuja “vida é um experimento de cognição” [The Gay Science, livro IV, n° 324. Trad da autora]; deve-se ensiná-los a lidar com as coisas. Se Nietzsche tivesse desenvolvido esses pensamentos em uma filosofia sistemática, teria criado uma espécie de doutrina epitetiana amplamente enriquecida, ensinando mais uma vez “a arte de viver a própria vida”, cujo truque psicológico poderoso consiste em QUERER que aconteça o que de qualquer modo acontece [Ver cap. II, pp. 73-84]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 14]
Mencionei que a ênfase moderna no futuro como o tempo verbal predominante mostrou-se na escolha heideggeriana do Cuidado como o existencial dominante em suas análises iniciais da existência humana. Se relemos as seções correspondentes em Sein und Zeit (especialmente o nº 41), fica evidente que mais tarde ele usou certas características do Cuidado em sua análise da Vontade.] Portanto, a posição de Heidegger sobre a faculdade da Vontade, que culmina com sua insistência passional em QUERER “não QUERER” — que, é claro, nada tem a ver com a oscilação da Vontade entre velle e nolle, QUERER e não-querer — surge diretamente de sua investigação extremamente cuidadosa da obra de Nietzsche, a que ele volta, depois de 1940, repetidas vezes. Ainda assim, os dois volumes do seu Nietzsche, que foram publicados em 1961, são em certos aspectos os mais expressivos; contêm conjuntos de conferências dadas em cursos entre os anos 1936 e 1940, isto é, exatamente nos anos em que a “reviravolta” realmente ocorreu e que ainda não tinha, portanto, sido submetida às interpretações do próprio Heidegger. Se ao ler esses dois volumes ignoramos as reinterpretações posteriores de Heidegger (que se deram depois de Nietzsche), podemos ficar tentados a datar a “reviravolta” como um evento autobiográfico concreto, precisamente entre o volume I e o volume II; pois, a bem da verdade, o primeiro volume explica Nietzsche, aceitando-o, enquanto o segundo é escrito em um tom atenuado, mas inconfundivelmente polêmico. Essa mudança importante de disposição foi observada, ao que eu saiba, somente por J. L. Metha em seu excelente livro sobre A filosofia de Martin Heidegger [Nova York, 1971, p. 112] e, de maneira menos decisiva, por Walter Schulz. A relevância dessa datação parece evidente: é contra a vontade-de-potência que a “reviravolta” se dirige original e primordialmente. No entender de Heidegger, a vontade de governar e de dominar é uma espécie de pecado original, do qual ele mesmo se achou culpado quando tentou lidar com seu breve passado no movimento nazista. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
A análise estritamente fenomenológica da Vontade feita por Heidegger no volume I de Nietzsche segue cuidadosamente suas análises anteriores do eu em Ser e Tempo; só que a Vontade toma o lugar atribuído ao Cuidado no trabalho anterior. Lemos: “A auto-observação e o autoexame nunca trazem à luz o eu ou mostram como nós mesmos somos. Mas, ao QUERER e também ao não-querer, fazemos exatamente isso; aparecemos em uma luz que é em si iluminada por um ato de vontade. QUERER sempre significa: trazer-se a si mesmo […]. Querendo, encontramo-nos com quem somos autenticamente.” [Nietzsche, vol. I, p. 63-64] Logo, “QUERER é essencialmente QUERER o próprio eu, mas não um eu dado que é aquilo que é, mas o eu que quer tornar-se aquilo que é […]. A Vontade de fugir do próprio eu é, na verdade, um ato de não QUERER” [Ibidem, p. 161]. Veremos mais adiante que esse retorno ao conceito de eu de Ser e Tempo não deixa de ter importância para a “reviravolta” ou “mudança de disposição” manifesta no segundo volume. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
No segundo volume há uma mudança definitiva de ênfase, do pensamento do Eterno Retorno para uma interpretação da Vontade quase que exclusivamente como vontade-de-potência, no sentido específico de uma vontade de governar e dominar em lugar de uma expressão do instinto de vida. A noção do volume I de que todo ato de vontade, exatamente porque é um comando, gera uma contravontade (Widerwillen) — isto é, a ideia de um obstáculo necessário em cada ato de vontade, que deve primeiro superar um não-querer — é agora generalizada para uma característica inerente a todo ato de fazer. Para um carpinteiro, por exemplo, a madeira consiste no obstáculo “contra o qual” ele trabalha quando faz com que ela se torne uma mesa [Ibidem, vol. II, p. 462]. Isso também é generalizado: todo objeto, exatamente porque é um “objeto” — e não simplesmente uma coisa, independente da avaliação, do cálculo e do fazer humanos —, está aí para ser superado por um sujeito. A vontade-de-potência é a culminância da subjetivização da Era Moderna; todas as faculdades humanas estão sob o comando da Vontade. “A Vontade é QUERER ser o senhor […]. [É] fundamental e exclusivamente: Comando […]. No comando, aquele que dá o comando [também] lhe obedece […]. Assim, o eu que comanda é seu próprio superior.” [Ibidem, p. 265] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
Aqui o conceito da Vontade perde de fato as características biológicas que têm papel tão importante na compreensão de Nietzsche da Vontade como simples sintoma do instinto de vida. Está na natureza do poder — e não mais na natureza da superabundância e do excesso da vida — espalhar-se e expandir-se: “O poder existe somente à medida que ele mesmo aumente e à medida que [a vontade-de-potência] comande este aumento.” A Vontade instiga a si mesma, dando ordens: [não é a vida mas a vontade-de-potência a essência do poder. Essa essência, e nunca uma quantidade [limitada] de poder, continua sendo a meta da Vontade, uma vez que a Vontade pode existir somente na relação com o poder. Eis por que a Vontade necessariamente precisa dessa meta. É também a razão pela qual um terror do vazio permeia essencialmente toda vontade. […] Do ponto de vista da Vontade […], [o nada] é a extinção da Vontade no deixar de QUERER […]. Logo […], [citando Nietzsche] nossa “vontade prefere QUERER o nada a não QUERER […]”. “QUERER o nada”, aqui, significa QUERER […] a negação, a destruição, a devastação [grifos nossos] [Ibidem, p. 267]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
A palavra final de Heidegger sobre essa faculdade diz respeito à destrutividade da Vontade, assim como a palavra final de Nietzsche dizia respeito à sua “criatividade” e superabundância. Tal destrutividade manifesta-se na obsessão da Vontade pelo futuro, que leva necessariamente o homem ao esquecimento. Para que possa QUERER o futuro, no sentido de ser senhor do futuro, o homem deve esquecer e finalmente destruir o passado. Da descoberta de Nietzsche de que a Vontade não pode “QUERER retroativamente”, segue-se não só a frustração e o ressentimento, mas também a vontade positiva e ativa de aniquilar o que foi. E já que tudo o que é real “veio a ser”, isto é, incorpora um passado, essa destrutividade relaciona-se em última instância a tudo o que é. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
Heidegger sintetiza isso em What is Called Thinking?: Diante daquilo que ‘foi’, a vontade não tem mais nada a dizer […], o “foi” resiste ao QUERER da Vontade […] o ‘foi’ reage e é contrário à Vontade. […] Mas, por meio dessa reação, o contrário cria raízes dentro da própria vontade. A vontade […] padece disso — ou seja, a Vontade padece de si mesma […] do que passou, do passado. Mas o que passou originase do passar… Assim, a Vontade quer ela mesma o passar […]. A reação da Vontade contra todo “foi-se” mostra-se como a vontade de fazer com que tudo passe, de QUERER, portanto, que tudo mereça passar. A reação que surge na Vontade é, então, a vontade contra tudo o que passa — tudo, isto é, tudo o que vem a ser a partir de um vir-a-ser, e que perdura (grifos nossos). [Pp. 92-93. Trad. da autora] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
Nessa compreensão radical de Nietzsche, a Vontade é essencialmente destrutiva; e é a essa destrutividade que a reversão original de Heidegger se contrapõe. Seguindo essa interpretação, a própria natureza da tecnologia é a vontade de QUERER, ou seja, de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo, cujo fim natural só pode ser a destruição total. A alternativa a esse jugo é “deixar-ser, e o deixar-ser como atividade é o pensamento que obedece ao chamado do Ser”. A disposição que permeia o deixar-ser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no QUERER; mais tarde, em sua reinterpretação da “reviravolta”, Heidegger a chama de “Gelassenheit”, uma serenidade que corresponde ao deixar — ser e que “nos prepara” para “um pensamento que não é uma vontade” [Gelassenheit, p. 33; Discourse on Thinking, p. 60]. Esse pensamento está “além da distinção entre atividade e passividade” porque está além do “domínio da Vontade”, isto é, além da categoria da causalidade, que Heidegger, concordando com Nietzsche, deriva da experiência que o ego volitivo tem de produzir efeitos e, portanto, de uma ilusão produzida pela consciência. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
O insight segundo o qual pensar e QUERER não são somente duas faculdades do ser enigmático chamado “homem”, mas são também opostos, ocorreu tanto a Nietzsche quanto a Heidegger. É a versão de ambos do conflito fatal que se processa quando o dois-em-um da consciência, realizado no diálogo sem som de mim comigo mesmo, transforma sua harmonia e amizade originais em um conflito contínuo entre vontade e contravontade, entre comando e resistência. Mas encontramos testemunho deste conflito por toda a história desta faculdade. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
A diferença entre a posição de Heidegger e a de seus predecessores reside no seguinte: o espírito do homem, chamado pelo Ser para transpor para a linguagem a verdade do Ser, está sujeito a uma História do Ser (Seinsgeschichte), e essa História determina se os homens respondem ao Ser em termos de QUERER ou em termos de pensar. É a História do Ser, funcionando por trás dos homens de ação, que, como o Espírito do Mundo de Hegel, determina os destinos humanos e revela-se ao ego pensante caso este último consiga superar a vontade e realizar o deixar-ser. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
Para sublinhar a semelhança entre Cuidado (antes da “reviravolta”) e Vontade em um cenário moderno, voltamos-nos para Bergson, que — certamente não influenciado por pensadores anteriores, mas seguindo a evidência imediata da consciência — propusera, apenas algumas décadas antes de Heidegger, a coexistência de dois eus, um social (o “Eles” de Heidegger) e o outro, o “fundamental” (o “autêntico” de Heidegger). A função da vontade é “recuperar esse eu fundamental das “atribulações da vida social em geral e da linguagem em particular”, isto é, daquela linguagem falada habitualmente em que cada palavra tem um “significado social” [Bergson, Time and Free Will, pp. 128-130, 133]. Trata-se de uma linguagem repleta de clichês, necessária para a comunicação com os outros em “um mundo externo bem distinto de [nós mesmos], que é a propriedade comum a todos os seres conscientes”. A vida em comum com os outros criou seu próprio tipo de fala, que leva à formação de “um segundo eu […] que obscurece o primeiro”. A tarefa da filosofia é levar de volta esse eu social para “o eu real e concreto […], cuja atividade não pode ser comparada à de qualquer outra força”, porque essa força é a pura espontaneidade da qual “cada um de nós tem conhecimento imediato”, adquirido pela observação imediata que se faz de si mesmo [Ibidem, pp. 138-143; cf. p. 183]. E Bergson, bem na linha de Nietzsche e também, por assim dizer, em sintonia com Heidegger, enxerga a “prova” dessa espontaneidade na criatividade artística. A geração de uma obra de arte não pode ser explicada por causas antecedentes, como se aquilo que agora é real estivesse antes latente ou potencial, seja na forma de causas externas ou de motivos internos: “Quando um músico compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes de ser real?” [Bergson, Creative Mind, trad. Mabelle L. Andison, Nova York, 1946, pp. 27 e 22] Heidegger está bastante alinhado com a posição geral quando escreve, no volume I de Nietzsche (isto é, antes da “reviravolta”): “QUERER sempre significa: trazer-se a si mesmo […]. Querendo, encontramo-nos conosco assim como somos autenticamente.” [Pp. 63-64] [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
Esse Alguém, o pensador que se desabituou de QUERER, passando a “deixar-ser”, é, na verdade, o “autêntico Eu” de Ser e Tempo, que agora ouve o chamado do Ser, em lugar do chamado da Consciência. Diferente do Eu, o pensador não é convocado por si mesmo a seu Eu; contudo “ouvir o chamado autenticamente significa mais uma vez persuadir-se a agir factualmente” (“sich in das faktische Handeln bringen”) [Ibidem, nº 59, p. 294]. Nesse contexto, a “reviravolta” significa que o Eu não atua mais em si mesmo (o que se abandonou foi o In-sich-handeln-lassen des eigensten Selbst) [Ibidem, n° 59-60, p. 295], mas, obediente ao Ser, desempenha pelo pensamento puro o papel de contracorrente de Ser que subjaz à “espuma” dos seres — as meras aparências cuja corrente é conduzida pela vontade de potência. O “Eles” reaparece aqui, mas sua principal característica não é mais o “palavrório” (Gerede); é a destrutividade inerente ao QUERER. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
O que origina essa mudança é uma radicalização decisiva tanto da antiga tensão entre pensar e QUERER (a ser resolvida pelo “querer-não-querer”) quanto do conceito personificado, que apareceu em sua forma mais articulada no “Espírito do Mundo” de Hegel, aquele Ninguém fantasmagórico que confere significado àquilo que é factualmente, ainda que de um modo sem sentido e contingente. Em Heidegger, este Ninguém que supostamente atua por trás dos homens de ação encontra agora uma encarnação na existência do pensador, que age sem nada fazer, sem dúvida uma pessoa que pode até ser identificada como “Pensador” — coisa que, entretanto, não significa seu retorno ao mundo das aparências. Ele continua sendo o solus ipse no “solipsismo existencial”, só que agora o destino do mundo, a História do Ser, passa a depender dele. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 15]
A liberdade filosófica, a liberdade da vontade, é relevante somente para pessoas que vivem fora das comunidades políticas, como indivíduos solitários. As comunidades políticas, nas quais os homens se tornam cidadãos, são produzidas e preservadas por leis; e tais leis, feitas pelos homens, podem variar muito e podem dar forma a inúmeros tipos de governo, todos eles, de uma maneira ou de outra, tolhendo a vontade livre de seus cidadãos. Com exceção da tirania, no entanto, em que uma vontade arbitrária governa as vidas de todos, os governos abrem algum espaço de liberdade para a ação, espaço que, na verdade, põe em movimento o corpo constituído de cidadãos. Os princípios que inspiram as ações dos cidadãos variam de acordo com as diferentes formas de governo, mas são todos, como Jefferson os designou corretamente, “princípios energéticos” [Citado da introdução de Franz Neumann a The Spirit of the Laws, de Montesquieu, trad. Thomas Nugent, Nova York, 1949, p. xl]; e a liberdade política “ne peut consister qu’à pouvoir faire ce que l’on doit vouloir et à n’être point contraint de faire ce que l‘on ne doit pas vouloir” — “só pode consistir no poder de fazer aquilo que devemos QUERER e em não sermos forçados a fazer o que não devemos QUERER” [Esprit des Lois, livro XI, cap. 3]. [Arendt, Vida do Espírito II O QUERER 16]