Mas o preço que ele paga, por essa justificação da crítica no terreno do gosto, reside em que nega ao gosto qualquer significado cognocitivo. E um princípio subjetivo, ao qual ele reduz o senso comum. Nele nada se reconhece dos objetos que vêm a ser julgados de belos, apenas se afirma, porém, que a eles corresponde a priori um sentimento de prazer no sujeito. É conhecido que esse sentimento é fundamentado por Kant, na conveniência que a representação do objeto possui, como tal, para a nossa capacidade de conhecimento. É o jogo livre de força de imaginação e compreensão, uma relação conveniente e subjetiva para com o conhecimento, que apresenta o fundamento do prazer no objeto. Essa relação conveniente-subjetiva é, de fato, de acordo com a idéia, igual para todos, é pois passível de ser transmitida universalmente e fundamenta assim a reivindicação do juízo de gosto na sua validade universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
À sua intenção transcendental corresponde, então, o fato de que a “Analítica do gosto” pode extrair exemplos de prazer estético, à vontade, das belezas artísticas naturais, do que seja decorativo, bem como da representação artística. O gênero de existência dos objetos, cuja representação agrada, não tem importância para a natureza do julgamento estético. A “crítica do juízo estético” não pretende ser uma filosofia da arte — por mais que a arte seja um objeto desse juízo. O conceito de “juízo de gosto estético puro” é uma abstração metódica, que está de viés para a diferença entre a natureza e a arte. Por isso, importa reconduzir ao seu padrão as interpretações artístico-filosóficas da estética de Kant, através de um exame mais exato, interpretações que se vinculam especialmente ao conceito de gênio. Para essa finalidade, consideramos a notável e muito controvertida doutrina de Kant sobre a beleza livre e dependente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Kant discute aqui a diferença entre o juízo de gosto “puro” e “intelectualizado”, que corresponde ao contraste da beleza “livre” e “dependente” (com relação a um conceito). Para a compreensão da arte, essa é uma doutrina altamente fatal, enquanto surgem, como a genuína beleza do juízo de gosto puro, a beleza natural livre e — no terreno da arte — o ornamento, porque são belos “para si” (“für sich”). Por toda parte onde o conceito é “acionado junto com” — e isso ocorre não somente no campo da poesia, mas também em toda a arte representativa — a situação parece a mesma dos exemplos apresentados por Kant para a beleza “dependente”. Os exemplos de Kant — homem, animal, prédios — designam as coisas da natureza, tal qual ocorrem no mundo dominado pelos fins humanos, ou coisas que foram produzidas para fins humanos. Em todos esses casos, a determinação do fim significa uma limitação para o prazer estético. Assim, segundo Kant, a tatuagem, ou seja, a ornamentação do corpo humano causa repugnância, embora “de imediato” pudesse agradar. Certamente que Kant não fala aqui da arte como tal (não simplesmente, da “bela representação de uma coisa”), mas também não, da mesma forma, das belas coisas (da natureza, ou da arte da construção). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Todavia, se se olhar mais exatamente, uma tal concepção não confere nem com as palavras de Kant nem com a questão que ele examina. O suposto deslocamento do ponto de vista de Kant, do gosto para o gênio, dessa forma não resiste; é só preciso aprender a reconhecer, já no princípio, a preparação secreta do desenvolvimento posterior. É indubitável que aquelas limitações, que impedem a tatuagem a uma pessoa ou um certo ornamento a uma igreja, não sejam lamentadas por Kant, mas ao contrário, fomentadas, que Kant, portanto, do ponto de vista moral, julgue como um ganho, aquela ruptura que com isso acontece ao prazer estético. Os exemplos da beleza livre devem representar, evidentemente, não a própria beleza, mas tão-somente assegurar que, o agradar, como tal, não representa um julgamento da perfeição da coisa. E quando Kant, ao final do parágrafo, através da diferenciação daquelas duas espécies de beleza, essa possibilidade de apaziguamento de uma divergência com relação ao gosto é, afinal, apenas um efeito colateral, que tem como base a cooperação de dois modos de consideração, e de tal maneira que o caso mais freqüente será a unanimidade de ambos os modos de consideração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Uma tal unanimidade vai sempre ocorrer onde o “ver além de um conceito” não suspende a liberdade da força de imaginação. Kant pode, sem se contradizer, caracterizar, como uma condição justificável, que é também uma condição do prazer estético, que com a determinação do fim não se manifeste nenhuma divergência. E com o isolamento das belezas livres, como seres para si, era artificial (o “gosto” parece, demais, se comprovar, na maior parte dos casos, lá onde se escolhe não somente o correto, mas o correto para o lugar correto), pode-se e deve-se ir além do ponto de vista daquele juízo de gosto puro, desde que se diga: É certo que não se pode falar de beleza onde um determinado conceito de compreensão é esquematicamente sensorializado pela força da imaginação, mas tão-somente onde a força de imaginação está em livre concordância com a razão, ou seja, onde pode ser produtiva. Mas esse formar produtivo da força da imaginação não é o mais rico lá, onde ele é simplesmente livre, como no revolutear dos arabescos, mas lá onde vive em um espaço de jogo, o qual o empenho por unidade da compreensão não age tanto no sentido de construir-lhe barreiras, mas de pré-linear incentivos para o seu jogo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Isso vale também para a idéia normal da figura humana. Mas na figura humana existe, realmente, um ideal de beleza na “expressão do ético”. “Expressão do ético”: considere-se isso juntamente com a doutrina posterior das idéias estéticas e da beleza como símbolo da eticidade. Então se reconhece que, com a doutrina do ideal da beleza, encontra-se preparado também o lugar para a essência da arte. A aplicação teorético-artística dessa doutrina, no sentido do classicismo de Winckelmann, está à mão. O que Kant quer dizer é, obviamente, que na representação da figura humana o objeto apresentado e aquilo que nos fala nessa representação, como conteúdo artístico, são a mesma coisa. Não pode haver nenhum outro conteúdo dessa representação do que aquilo que já ganha expressão na figura e na aparição do representado. Falando kantianamente: o prazer intelectualizado e interessado nesse ideal da beleza representado não se separa do prazer estético, mas torna-se um com ele. Somente na representação da figura humana fala-nos todo o conteúdo da obra, ao mesmo tempo como expressão de seu objeto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É assim que o formalismo conduz do “prazer seco” à decisiva dissolução não somente do racionalismo na estética, mas sobretudo de toda doutrina da beleza universal (cosmológica). Justamente com aquela diferenciação classicista entre idéia normal e ideal da beleza, Kant destrói o fundamento, a partir do qual a estética da perfeição encontra sua beleza única e incomparável na plena agradabilidade sensorial de todo ente. Somente então “a arte” consegue tornar-se um fenômeno autônomo. Sua tarefa não é mais a representação do ideal da natureza — mas o auto-encontro do homem na natureza e no mundo humano-histórico. A comprovação de Kant, de que o belo agrada sem conceituação alguma, não impede, de forma alguma, que só o belo que nos atinge significativamente encontra o nosso inteiro interesse. Justamente o reconhecimento da ausência de conceituação do gosto conduz para além de uma estética do mero gosto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Quando Kant indaga pelo interesse que se dispensa ao belo, não empiricamente, mas a priori, essa indagação de interesse pelo belo, em face da determinação fundamental da falta de interesse do prazer estético, acaba apresentando uma nova indagação e completa a transição do ponto de vista do gosto para o ponto de vista do gênio. É a mesma doutrina que se desdobra com relação a ambos os fenômenos. Ao assegurar os fundamentos, acaba-se liberando a “crítica do gosto” de todo preconceito, tanto sensualista como racionalista. Está certo que Kant ainda não apresente aqui a pergunta sobre a forma de existência do que foi esteticamente julgado (e com isso de todo o campo indagatorio da relação do belo natural e do belo artístico). Essa dimensão da indagação se abre porém com necessidade, se se pensar o ponto de vista do gosto até o fim, e isto significa para além de si mesmo. A interessante importância do belo é que propriamente movimenta a problemática da estética kantiana. Ela é cada vez uma outra, para a natureza e para a arte, e justamente a comparação do belo natural com o belo artificial dá ao problema seu desenvolvimento. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aqui vem à tona o mais próprio de Kant. Não é, de forma alguma, como seria de esperar, a arte, devido à qual Kant vai além “do prazer desinteressado” e indaga do interesse pelo belo. Tínhamos, a partir da doutrina do ideal da beleza, descoberto apenas uma vantagem da arte com relação ao belo natural: a vantagem de ser linguagem imediata da expressão do ético. Kant, ao contrário, acentua de início (no parágrafo 42) a vantagem do belo natural com relação ao belo artístico. A beleza natural não possui uma vantagem somente para o juízo estético puro, ou seja, o de tornar claro que o belo repousa, afinal, na finalidade da coisa imaginada para nossa capacidade de compreensão como tal. Isso se torna tão nítido no belo natural, porque não possui nenhum significado, quanto ao conteúdo, que mostre o juízo de gosto em sua pureza não-intelectualizada. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mas não possui somente essa vantagem metódica — possui também, segundo Kant, uma vantagem quanto ao conteúdo. É evidente que, nesse ponto, Kant leve muito em conta sua doutrina. A bela natureza consegue despertar um interesse imediato, ou seja, um interesse moral. O achar belas as belas formas da natureza aponta, para além disso, para o pensamento de que “a natureza produziu aquela beleza”. Onde esse pensamento desperta um interesse, aí há cultivo do sentimento ético. Enquanto Kant, esclarecido por Rousseau, recusa a conclusão universal do refinamento do gosto quanto ao belo, baseado sobremaneira no sentimento ético, a questão de haver um sentido para a beleza da natureza é, segundo Kant, uma coisa à parte. Que a natureza seja bela, é coisa que só desperta interesse para quem “já tenha anteriormente fundamentado seu interesse pelo bem-ético”. O interesse pelo belo na natureza é, portanto, “moral por parentesco”. Na medida em que percebe a coincidência não intencional da natureza com o nosso prazer, que é independente de qualquer interesse, e por conseguinte, uma maravilhosa conveniência (Zweckmässigkeit) da natureza para conosco, indica-nos, como ao fim último da criação, indica a nossa “determinação moral”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Aqui se conjuga a rejeição da estética da perfeição, na mais bela forma, com a significação moral do belo natural. Justamente porque não encontramos na natureza fins em si e, mesmo assim, achamos beleza, isto é, uma conveniência para a finalidade de nosso prazer, a natureza nos faz, com isso, um “aceno”, no sentido de que somos realmente o último fim, o fim derradeiro da criação. A dissolução do antigo pensamento cosmológico, que deu ao homem seu lugar no arcabouço total dos entes e a cada ente seu objetivo de perfeição, dá ao mundo, que deixa de ser belo, enquanto uma ordem de fins absolutos, a nova beleza, a beleza de ser conveniente para nós. Torna-se “natureza”, cuja inocência reside em que nada sabe dos homens e de seus vícios sociais. Mesmo assim, ela tem algo a nos dizer. Com vista à idéia de uma determinação inteligível da humanidade, a natureza, na qualidade de a bela natureza, ganha uma linguagem que a conduz a nós. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Em face dessa situação, apresenta-se a pergunta pelo modo como Kant determina a mútua relação entre o gosto e o gênio. Kant conserva sua primazia principiai para o gosto, na medida em que também as obras das belas artes, que são artes de um gênio, encontram-se sob o ponto de vista condutor da beleza. Pode-se ter dificuldade em citar, em contraste com a inventividade do gênio, o aprimoramento posterior, que se torna um imperativo do gosto — mas essa é a disciplina necessária, que se pode atribuir ao gênio. Até aí, em casos de litigio, segundo a opinião de Kant, o gosto continua merecendo a primazia. Mas essa questão não tem significação principiai. Porque, basicamente, o gosto encontrase no mesmo nível que o gênio. A arte do gênio reside em tornar transmissível o jogo livre das forças do conhecimento. É o que produzem as idéias estéticas, que ele inventa. A transmissibilidade do estado de ânimo, do prazer, caracteriza também o prazer estético do gosto. E uma capacidade do julgamento, portanto, um gosto de reflexão, mas aquilo sobre o que ele reflete é somente aquele estado de ânimo do avivamento das forças do conhecimento, que se encontra tanto no belo natural como no belo artístico. A significação sistemática do conceito do gênio, ao contrário, está restrita ao caso especial da beleza artística, mas a significação do conceito do gosto é universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Isso se mostra também no uso da linguagem. A redução de Kant, do conceito de gênio ao artista, que tratamos acima, não conseguiu se impor. Ao contrário, no século XIX o conceito de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou — em união com o conceito da criatividade — uma verdadeira apoteose. Era o conceito romântico-idealista da produção inconsciente, que suportou esse desenvolvimento e que alcançou uma enorme repercussão através de Schopenhauer e da filosofia do inconsciente. É verdade que mostramos que uma tal posição preferencial sistemática do conceito do gênio em contraste com o conceito do gosto respondia, de forma alguma, à estética kantiana. Porém a preocupação essencial de Kant veio a produzir uma fundamentação da estética que é autônoma e liberta do padrão do conceito, e de maneira alguma chegou a colocar a questão relativa à verdade no âmbito da arte, mas, fundamentou o julgamento estético sobre o a priori subjetivo do sentimento vital, a harmonia de nossa capacidade para “o conhecimento como tal”, que perfaz a essência comum do gosto e do gênio, anteposto ao irracionalismo e ao culto do gênio do século XIX. A doutrina de Kant sobre a “elevação do sentimento vital” no prazer estético promoveu o desenvolvimento do conceito “gênio” para um conceito de vida abrangente, principalmente depois que Fichte havia elevado o ponto de vista do gênio e a produção genial a um ponto de vista universal e transcendental. Assim aconteceu que o neokantianismo, na medida em que procurava derivar tudo que tivesse valor de objeto da subjetividade transcendental, terminou caracterizando o conceito de vivência como a genuína realidade do consciente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É verdade que nisso ele próprio pôde apoiar-se em Kant, na medida em que esteja tinha atribuído ao gosto o significado de uma transição do prazer dos sentidos ao sentimento ético . Quando, porém, Schiller proclamou a arte um exercício da liberdade, reportou-se ele mais a Fichte do que a Kant. O jogo livre da capacidade de conhecimento, sobre o qual Kant fundamentara o a priori do gosto e do gênio, entendia Schiller antropológicamente, com base na doutrina dos instintos de Fichte, no qual o instinto lúdico devia produzir a harmonia entre o instinto da forma e o instinto da matéria. O cultivo desse instinto é a meta da educação estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O verdadeiro processo da formação, isto é, o elevar-se à universalidade, é aqui, ao mesmo tempo, uma decadência em si mesmo. A “presteza da reflexão pensadora de se movimentar em universalidades, de colocar qualquer conteúdo sob pontos de vista propostos e, assim vesti-lo com pensamentos”, é, segundo Hegel, a maneira de não se deixar envolver com o verdadeiro conteúdo dos pensamentos. Immermann denomina um tal derramar-se livre do espírito em si, algo dissipador”. Com isso, descreve a situação introduzida pela literatura e pela filosofia clássicas da época de Goethe, em que os epígonos já encontravam prontas todas as formas do espírito e, por isso, o que era o genuíno trabalho da formação, isto é, o burilar o que era estranho e tosco, acabava sendo trocado pelo prazer do mesmo. Tinha se tornado fácil fazer uma boa poesia e, por esse motivo, tornara-se difícil ser um poeta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O “motivo”, uma expressão comum na linguagem dos pintores, pode ilustrar isto. Pode ser tanto objetivo como abstrato — como motivo, em todo caso, visto ontologicamente, imaterial (aneu hyles). Isso não quer dizer, de maneira alguma, que seja destituído de conteúdo. Antes, algo torna-se um motivo pelo fato de possuir unidade, de maneira convincente, e pelo fato de que o artista executa essa unidade, como unidade de um sentido, tal qual aquele que a recebe entende-a como unidade. Kant, nesse contexto, fala reconhecidamente de “idéias estéticas”, às quais o pensamento irá atribuir muita coisa inominável”. Essa é uma maneira de ultrapassar a pureza transcendental do estético e de reconhecer o modo de ser da arte. Estava longe dele, como já demonstramos, querer evitar a “intelectualização” do prazer estético puro em si. O arabesco não é, de maneira alguma, seu ideal estético, mas meramente um exemplo metódico preferido. Para fazer jus à arte, a estética tem de ultrapassar-se a si mesma e renunciar à “pureza” do estético. Mas será que, com isso, ela encontra realmente uma posição sólida? Em Kant, o conceito do gênio havia possuído uma função transcendental, através da qual o conceito da arte encontra seu fundamento. Tínhamos visto de que forma esse conceito do gênio se ampliou, nos seus sucessores, a uma base universal da estética. Mas será que o conceito do gênio é adequado para isso? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Isso vem impresso também no fato de que os jogos possuem um espírito próprio e especial. Isso também não diz respeito ao humor ou ao estado de espírito daqueles que jogam o jogo. Mais do que isso, essa diversidade do estado de ânimo ao se jogar diferentes jogos ou de sentir prazer em tais jogos é conseqüência e não causa da diversidade dos próprios jogos. Os próprios jogos diferenciam-se entre si através de seu espírito. Isso repousa não mais no fato de que eles caracterizam e ordenam o vaivém do movimento do jogo, que eles são, cada vez, diferentes. As regras e os regulamentos, que preservem o preenchimento do espaço lúdico, perfazem a essência de um jogo. Isso vale, com todo seu caráter geral, onde quer que haja um jogo. Vale, por exemplo, também para os jogos de águas ou para animais que brincam. O espaço lúdico em que se desenrola o jogo (brincadeira), será, ao mesmo tempo, mensurado de dentro pelo próprio jogo (brincadeira) e limita-se bem mais através da regulamentação, que determina o movimento do jogo, do que através daquilo contra o que ele se choca, isto é, os limites do espaço livre, que restringem o movimento de fora. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O conceito da imitação, porém, só consegue descrever o jogo da arte, se não se perder de vista o sentido do conhecimento, que se encontra na imitação. Aí, encontra-se o que é representado — é a relação mímica originária. Quem imita alguma coisa deixa isso ser aí o que ele conhece e como o conhece. E imitando que a criança começa a brincar, fazendo o que [119] conhece e confirmando assim a si mesma. Também o prazer com que as crianças se fantasiam, a respeito do que já se manifesta Aristóteles, não pretende ser um esconder-se, uma simulação, a fim de que se adivinhe e se reconheça quem está por trás disso, mas, ao contrário, um representar, de tal modo que apenas o representado é. Por nada desse mundo a criança vai querer ser adivinhada por trás de sua fantasia. O que ela representa deve ser, e se há algo que deva ser adivinhado, é exatamente isso. Terá de ser reconhecido o que ali “está”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Diz-se dessas afecções de que trata Aristóteles, que é através delas que o espetáculo teatral proporciona a purificação de paixões desse gênero. Como se sabe, essa tradução é discutível e, sobretudo, o sentido do genitivo. Mas a questão a que se refere Aristóteles parece-me inteiramente independente disto, e seu conhecimento tem de, no final, tornar-se compreensível, [136] porque duas concepções gramaticalmente tão diferentes podem contrapor-se tão tenazmente uma à outra. Parece-me claro que Aristóteles se refere à melancolia trágica que se assenhora do espectador à vista de uma tragédia. A melancolia, porém, é uma espécie de alívio e de solução, em que a dor e o prazer estão misturados de uma forma singular. Como é que, então, Aristóteles pode denominar esse estado de purificação? Qual é a impureza que adere às afecções, ou que são elas próprias, e como é que isso é expulso pela comoção? Parece-me que a resposta encontra-se no seguinte: o ser-assolado pela desolação e pelo calafrio representa uma bifurcação dolorosa. Há nisso uma desunião com o que acontece, um não-querer-ter-por-verdadeiro, que se rebela contra o horrendo acontecimento. No entanto, é justamente este o efeito da catástrofe trágica, isto é, que se dissolve a bifurcação com o que é. Deste modo, produz uma libertação universal do peito confrangido. Não somente nos livramos do desterro em que o que é desolador e espantoso desse destino único nos mantém presos, mas também, conciliados com isso, estamos livres de tudo que nos divide daquilo que é. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Porém, uma tal descrição da compreensão que separa, significa que a configuração das idéias que procuramos compreender como discurso ou como texto não é compreendida com referência ao seu conteúdo objetivo, mas como uma configuração estética, como obra de arte ou “pensamento artístico”. Se afirmarmos isso entenderemos por que aqui não se trata da relação com a coisa (em Schleiermacher “o ser”). Schleiermacher segue as determinações fundamentais de Kant, quando diz que o “pensamento artístico” “somente se distingue pelo maior ou menor prazer”, e é propriamente “só o ato momentâneo do sujeito”. A esta altura, é naturalmente a pressuposição, pela qual se colocou pela primeira vez a tarefa da compreensão que faz com que este “pensamento artístico” não seja um simples ato momentâneo, mas que se exterioriza. Schleiermacher vê no “pensamento artístico” momentos especiais da vida, nos quais dá-se um prazer tão grande que eles irrompem em exteriorização, mas mesmo assim — e, por mais que suscitem prazer nas “imagens originais das obras de arte” — continuam sendo um pensamento individual, livre combinação, não vinculada pelo ser. É exatamente isso que distingue os textos poéticos dos científicos. Schleiermacher quer dizer com isso, certamente, que o discurso poético não se submete ao padrão de entendimento sobre a coisa em causa, descrito acima, porque o que nele se diz não é dissociável do “como”, da maneira de ser dito. Por exemplo, a guerra de Tróia está no poema homérico — quem se volta para a realidade histórica da coisa em causa lê mais Homero como discurso poético. Ninguém [192] quereria afirmar que o poema tenha ganho algo de realidade artística através das escavações dos arqueólogos. O que se deve compreender aqui não é precisamente um pensamento comum da coisa em causa, mas um pensamento individual, que, por sua essência, é combinação livre, expressão, livre exteriorização de uma essência individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Concorda com isso o fato de que a ciência moderna só tenha se recordado da valência ontológica autônoma da “forma” (Gestalt), quando chegou aos limites da construtibilidade mecânica do ente, e que somente então tenha incluído a idéia dessa forma — mesmo que de simetrias bem mais formais — como princípio suplementar de conhecimento na explicação natural, sobretudo na explicação da natureza viva (biologia, psicologia). Não é que com isso renuncie à sua atitude fundamental, mas que meramente procura alcançar, por um caminho mais refinado, o seu objetivo, o domínio do ente. Isso deve ser acentuado em contraste com a autocompreensão da ciência moderna da natureza. Mas ao mesmo tempo, e em seus próprios limites, nos limites do domínio da natureza que ela própria conseguiu, a ciência faz valer a beleza da natureza e a beleza da arte que servem a um prazer livre de qualquer [484] interesse. A partir da inversão da relação entre o que é belo por natureza e o que é pela arte, já descrevemos o processo de alternância, pelo qual o que é belo por natureza acaba perdendo sua primazia, até o ponto de ser pensado como reflexo do espírito. Poderíamos ter acrescentado que o mesmo conceito da “natureza” obtém a cunhagem que ele carrega consigo, desde Rousseau, somente a partir de seu reflexo no conceito da arte. Converte-se num conceito polêmico, ou seja, o do outro do espírito, o não-eu, e como tal já não lhe convém nada da dignidade ontológica universal, própria do cosmo como ordem das coisas belas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A determinação kantiana fundamental do prazer estético, como um gosto isento de todo interesse, não somente se refere ao fato puramente negativo de que o objeto desse gosto não seja nem empregado como útil nem desejado como bom, mas quer dizer também positivamente que o “estar-aí” (“Dasein”) não pode acrescentar nada ao conteúdo estético do prazer, à “pura contemplação”, precisamente porque o ser estético é representar-se. Somente a partir do ponto de vista moral é que se pode encontrar um interesse pela existência (Dasein) do belo, por exemplo, pelo canto do rouxinol, cuja enganosa imitação é para Kant, até certo ponto, uma ofensa moral. A questão seria, naturalmente, até que ponto podemos assumir, como conseqüência real dessa constituição do ser estético, o fato de que aqui não há porque procurar verdade alguma, já que aqui não se conhece nada. Nas nossas análises estéticas já consideramos a estreiteza do conceito do conhecimento que condiciona, nesse ponto, o questionamento kantiano, e partindo da questão da verdade da arte tínhamos encontrado o caminho para a hermenêutica, na qual encontramos fundidas no uno a arte e a história. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Chamar o aprender a falar de processo de aprendizagem é apenas uma façon de parier. Na verdade, trata-se apenas de um jogo, um jogo de imitação e de intercâmbio. A formação do som e o prazer na formação do som, no impulso de imitação da criança receptiva coadunam-se com o aparecimento do sentido. Ninguém pode responder de um modo racional à pergunta pela primeira compreensão de sentido. Esta sempre já vem precedida por experiências de sentido anteriores à linguagem e principalmente o intercâmbio de olhares e gestos, de tal modo que todas as transições são fluentes. Igualmente incompreensível é a perfeição do fim. Ninguém pode construir, propriamente, isto que a lingüística de hoje chama de “competência para a linguagem”. O que isso significa não pode ser retratado objetivamente como a consistência do que é correto segundo a linguagem. Antes, a expressão “competência” indica que a capacidade de linguagem desenvolvida naquele que fala não se [6] deixa descrever como o emprego de regras e assim como um mero manejo correto da linguagem, segundo as regras. É preciso vê-la como o fruto de um processo no exercício da linguagem que seja de certo modo livre, de tal modo que uma pessoa acaba “sabendo” o que é correto a partir de sua competência própria. Um ponto nuclear de minha própria tentativa de conferir validade hermenêutica à universalidade do aspecto próprio da linguagem é minha concepção do aprendizado da fala e da conquista de orientação no mundo como uma trama inextricável da história da formação do homem. Mesmo sendo um processo infindável, isso pode fundamentar algo como competência. Compare-se por exemplo o aprendizado de línguas estrangeiras. Aqui, de modo geral, pode-se falar apenas de uma aproximação à dita competência para a linguagem, a não ser que alguém esteja inserido de modo duradouro e profundo no universo da língua estrangeira. No geral, só se pode alcançar competência na própria língua materna, ou na linguagem que se fala onde se cresceu e onde se vive. Com isso se diz que aprendemos a ver o mundo com os olhos da língua materna e que, pelo contrário, o primeiro passo na capacitação pessoal para a linguagem começa a articular-se na perspectiva do mundo que nos circunda. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Deus, porém, é a palavra. Desde os primórdios, a palavra humana serviu, no âmbito da reflexão teológica, para visualizar a palavra de Deus e o mistério da Trindade. Sobretudo Agostinho descreveu em muitas variantes o mistério sobre-humano da Trindade a partir da palavra e do diálogo, e de como este se dá entre os seres humanos. Ora, a palavra e o diálogo tem em si um momento de jogo. O modo como se ousa dizer uma palavra ou bem “guardá-la consigo”, o modo de arrancar do outro uma palavra e dele obter uma resposta, o modo como respondemos e como cada palavra “comporta um espaço de jogo” no contexto determinado em que é dita e compreendida, tudo isso aponta para uma estrutura comum entre o compreender e o jogar. A criança começa a conhecer o mundo através de jogos de linguagem. Sim, tudo que aprendemos, realiza-se em jogos de linguagem. Isso, porém, não significa que quando falamos estejamos apenas jogando um jogo, sem levar a fala a sério. Ao contrário, as palavras que encontramos mobilizam nossa própria opinião, integrando-a em relações que ultrapassam o caráter momentâneo de nossa opinião. Quando é que a criança que escuta e imita as palavras dos adultos começa a compreender as palavras que usa? Quando é que o jogo torna-se sério? Quando começa a seriedade e deixa de ser jogo? De certo modo, a fixação do [131] significado das palavras brota sempre ludicamente do valor situacional das palavras. Assim como a escrita fixa o elemento sonoro da linguagem que assim repercute articulando a configuração sonora da própria linguagem, também a fala viva e a vida da linguagem têm o seu jogo nesse movimento de alternância viva. Ninguém pode fixar o significado de uma palavra e nem tampouco o simples aprendizado correto e o uso do significado fixo das palavras são garantias de que alguém saiba e possa falar. A vida da linguagem consiste antes no progresso constante do jogo que começamos a jogar quando aprendemos a falar. Novos usos de linguagem estão sempre a entrar em jogo, da mesma maneira que saem imperceptível e involuntariamente do jogo. Nesse jogo contínuo joga-se a convivência dos seres humanos. Também o entendimento que se dá na conversação é um jogo. Quando duas pessoas conversam entre si, falam a mesma linguagem. Elas próprias não se dão conta de que pelo fato de falarem estão dando continuidade ao jogo da linguagem. Ademais, cada uma também fala sua própria linguagem. A compreensão dá-se porque tem lugar um discurso contra discurso, sem que esse lugar se torne fixo. Na conversação entramos constantemente no mundo das idéias do outro, nos confiamos ao outro e ele se confia a nós. Assim, alternamos mutuamente o jogo até que tenha início o verdadeiro diálogo, o jogo de dar e receber. Não se pode negar que nesse diálogo verdadeiro se dê o que costumamos chamar de acaso, de prazer da surpresa, e por fim, também, de leveza e enlevo, que constituem parte essencial do jogo. Esse enlevo é experimentado ademais sem perder a posse de si mesmo, pois mesmo sem nos darmos conta fazemos a sua experiência como um enriquecimento pessoal. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.
É de Aristóteles a definição clássica do homem como o ser vivo que possui logos. Na tradição do Ocidente, essa definição foi canonizada com a forma: o homem é o animal racional, o ser vivo racional, o ser que se distingue de todos os outros animais pela capacidade de pensar. A palavra grega logos foi traduzida no sentido de razão ou pensar. Na verdade, a palavra significa também e sobretudo: linguagem. Em certa passagem, Aristóteles estabeleceu a diferença entre homem e animal do seguinte modo: os animais têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que lhe causa dor, a fim de evitá-lo. Aos animais a natureza só lhes permitiu chegar até esse ponto. Apenas aos homens foi dado ainda o logos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. Uma frase de sentido muito profundo. O útil e o prejudicial são o que não é desejável em si mesmo, e sim em vista de algo outro que ainda não está dado, mas motiva a sua busca. Isso expõe como característica do homem um sobrepor-se ao atual, um sentido para o futuro. E Aristóteles acrescenta depois que, com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto… e tudo isso porque o homem é o único ser que possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo que pensa. E mais: E somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
Também não existe nenhum fundamento racional que justifique admitir que a ampliação das áreas em que o planejamento e a ordem racional são bem-sucedidos poderia nos aproximar de uma ordem política racional do mundo. Com o mesmo direito podemos [158] chegar à conclusão inversa e teremos que reconhecer o crescente perigo representado pela utilização de nexos racionais para fins irracionais, como expressa o ditame: “primeiro a obrigação, depois o prazer”. Devemos perguntar de modo ainda mais radical se não é exatamente a cientifização de nossa economia e de nossa vida social — pense-se por exemplo nas pesquisas de opinião e nas estratégias de sua formação — que, se não fomentou, ao menos tornou consciente a incerteza com relação aos fins últimos, isto é, sobre o autêntico conteúdo da ordem mundial. A cientificização encobre a incerteza de seus critérios de ordem, logo no instante em que transforma o todo da configuração do mundo em objeto de seu planejamento elaborado e controlado cientificamente. Será que a tarefa acabou sendo mal colocada? Por mais que a atuação cientificamente racionalizada alcance uma infinidade de setores parciais, é lícito pensar a totalidade da ordem do mundo como objeto de uma tal planificação e realização racionais? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
No fundamental, a arte de recitar tampouco é diferente. Necessita apenas de uma técnica especial, porque os ouvintes são pessoas anônimas e o texto poético exige sua realização em cada ouvinte. Encontramos aqui algo parecido com o que acontece quando soletramos, a saber, a recitação mecânica. Declamar mecanicamente não é falar, mas alinhar fragmentos de sentido, um atrás do outro. Um exemplo claro é o das crianças que aprendem versos de memória e os “recitam”, para a alegria dos pais. Quem é realmente capaz de recitar ou é um artista da recitação, ao contrário, tornará presente uma figura global de linguagem, do mesmo modo que o ator deve criar as palavras de seu personagem como se as encontrasse no ato. Não poderá ser uma série de retalhos de fala, mas um todo, composto de sentido e som, que “se sustenta por si”. Por isso o falante ideal não pode fazer-se presente a si mesmo, mas unicamente ao texto, que deve tornar-se acessível inclusive a um cego, incapaz de ver seus gestos. Disse Goethe certa vez: “Não há maior nem mais puro prazer do que fechar os olhos e ouvir recitar — não declamar — um fragmento de Shakespeare, entoado com uma voz natural perfeita”. Podemos perguntar, no entanto, se a recitação é possível com qualquer tipo de textos poéticos; por exemplo, quando se trata de poesia para meditação. Este problema surge também na história dos gêneros da lírica. A lírica coral e o canto em geral, que convida a cantar junto, é algo totalmente distinto do tom elegíaco. A poesia para meditação somente parece possível na pura solidão. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Quando se fala, portanto, de emancipação como a dissolução de coerções levada a efeito pela conscientização isso é um enunciado muito relativo. O seu conteúdo depende de quais coerções se está falando. Como se sabe, o processo de socialização psicológico-individual está vinculado com a repressão dos instintos e a renúncia ao prazer. A convivência social e política das pessoas, por outro lado, é estruturada por ordenações sociais que exercem uma influência dominante sobre aquilo que vale como correto. No âmbito psicológico individual pode haver certamente distorções neuróticas que impossibilitam a própria capacidade de comunicação social. Aqui, sim, pode-se dissolver o caráter de coerção dos empecilhos comunicativos pelo esclarecimento e conscientização. Nesse processo, na verdade, não se faz mais que reintroduzir no mundo das normas da sociedade quem está impedido de participar. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre Aristóteles. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o “prazer”. Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível “explicar” essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre idéia e “realidade”. Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as “coisas, elas mesmas”. Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: “Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente”. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.