O que existe propriamente é o perihodos, o “período”, as mudanças do céu dentro de uma ordem. O que existe propriamente são as verdades permanentes da convivência humana, as ordenações morais, as ordenações estatais, as ordens das nações e coisas similares. Nenhum pensador pode ver o ser da existência humana de outro modo a não ser à luz das constantes humanas. A historia é o desvio de tais ordens permanentes: a tabela dos conceitos de virtude da ética antiga, os ideais de um Estado ordenado, de urna polis ordenada, de uma ordem que o filósofo deve ter presente em sua máxima perfeição e propor como exemplo à ação humana. A história é o elemento inextirpável de desordem humana num todo ordenado. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.
Apesar disso, uma característica essencial de toda técnica é não existir em vista de si mesma, nem por causa de um objeto a ser produzido que tivesse seu fim em si mesmo. O modo e a aparência do objeto a ser produzido dependem do uso a que se destina. O saber fazer de quem produz o objeto de uso não lhe dá nenhum poder, seja para garantir que a coisa produzida seja utilizada convenientemente e nem tampouco que seja utilizada para algo justo. Deveria [161] haver, portanto, um novo saber objetivo que cuidasse do uso correto das coisas, isto é, do emprego dos meios para os fins corretos. E, uma vez que nosso mundo de usos nada mais é que uma trama hierárquica dessas estruturas de meios e fins, surge naturalmente a idéia de uma tékhne superior, de um saber específico que conhece o emprego correto de todo saber específico, uma espécie de saber específico régio: A tékhne política. Tem sentido semelhante idéia? O político, como o especialista dos especialistas? A arte da política, como o maior de todos os conhecimentos objetivos? É certo que Estado nesse caso significa a polis grega e não o mundo. Mas uma vez que o pensamento grego sobre a polis refere-se sempre só à ordem interna da polis e não propriamente ao que chamamos de a grande política das relações internacionais, a questão é simplesmente de escala ou parâmetro. O mundo administrado de maneira perfeita corresponderia exatamente ao ideal da polis. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
E mesmo onde se elaborou uma explicação fundamental sobre a diferença entre um saber produtivo (techne) e um saber prático (Phronesis), na Ética de Aristóteles, em muitos pontos não fica claro como se relaciona o saber político do homem de estado e do agente político com o saber técnico do especialista. E verdade que parece haver uma clara hierarquia entre eles, à medida que o general, sob o qual estão a serviço todas as outras “artes”, está ele próprio a serviço da paz, enquanto que o homem de estado atua em vista da felicidade de todos tanto na paz quanto na guerra. Mas a questão básica é esta: Quem é homem de estado? Será aquele especialista que alcança o topo da escala dos cargos políticos, ou o cidadão que como membro do verdadeiro soberano expressa sua decisão pelo voto (e que ao lado disso exerce ainda sua profissão “cidadã”)? No Cármides, Platão levou ao absurdo o ideal técnico de uma ciência política, que seria a ciência da ciência. E claro que não é viável compreender-se o saber em que se baseiam as decisões prático-políticas segundo o modelo do saber produtivo, considerando o saber sobre a produção da felicidade humana como o mais elevado saber técnico. Isso não pode ser ensinado, como já Platão gostava de demonstrar aos filhos dos grandes homens de Atenas, e como Aristóteles, que ensinava em Atenas, mesmo não sendo ateniense, qualificando como sofistas (e não como politólogos) e rechaçando os especialistas em fundações ideais do Estado e no estabelecimento de constituições, que vinham a Atenas. Na verdade, esses especialistas eram tudo, menos homens de estado, isto é, [253] cidadãos líderes em sua própria polis. Mas mesmo que isso tenha sido muito claro para Aristóteles e ele tenha elaborado magistralmente a própria estrutura do saber prático frente à estrutura do saber técnico, ficou em aberto ainda uma questão: Que tipo de saber é esse pelo qual Aristóteles chegou a essas distinções e as ensinava? E que tipo de saber é a ciência prática (e política)? VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Foi, em todo caso, um renascimento estranhamente declamatório. Como se poderia redescobrir a arte clássica da linguagem sem seu espaço clássico, a polis, ou a res publicai A retórica havia perdido seu posto central desde o final da República Romana e na Idade Média constitui um elemento da cultura escolar mantida pela Igreja. Não podia experimentar uma renovação, como pretendia o humanismo, sem passar por uma mudança funcional muito mais drástica. A redescoberta da Antigüidade clássica coincidiu com dois fatos carregados de conseqüências: a descoberta da imprensa e, como efeito da Reforma, a enorme difusão da leitura e da escrita, ligada à doutrina sobre o sacerdócio comum. Assim iniciou-se um processo que, ao final, e depois de séculos, levou não somente à erradicação do analfabetismo, mas também a uma cultura da leitura privada que deixava em segundo plano a palavra falada, inclusive a palavra lida em voz alta e o discurso pronunciado: um imenso processo de interiorização do qual só agora nos damos conta, quando os meios de comunicação social abriram caminho para uma nova maioridade. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Poderíamos dizer algo parecido sobre a diferença entre o conceito de Estado e o conceito de polis, sugeridos acertadamente por Strauss. O fato de a instituição do Estado ser algo bem diferente do que a comunidade de vida natural da polis não é uma conclusão muito correta. Mas com isso também descobre-se algo — e novamente a partir dessa experiência da diferença — que não permanece incompreensível apenas para a teoria moderna. Também seria incompreensível para nossa relação com os textos clássicos herdados da tradição, se não os compreendêssemos a partir de sua oposição com a modernidade. Chamar a isso de “revitalisation” parece-me ser novamente uma maneira de falar tão imprecisa como o Re-enactment de Collingwood. A vida do espírito não é como a do corpo. O reconhecimento desse fato não significa um falso historicismo. Significa estar em perfeita harmonia com Aristóteles: epido-sis eis auto. Objetivamente falando, creio não divergir muito de Strauss, uma vez que também ele considera inevitável em nosso pensamento atual a “fusion of history and philosophical questions”. Estou totalmente de acordo com Strauss quando ele diz que seria uma afirmação dogmática querer ver nisso uma primazia absoluta da modernidade. Os exemplos citados — que se podem multiplicar à vontade a partir dos escritos de Strauss — mostram de maneira inequívoca o tanto de compreensão prévia que nos domina imperceptivelmente quando pensamos com os conceitos ricamente herdados da tradição, e o quanto pode nos ensinar uma retomada dos pais do pensamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.