Quando o idealismo especulativo procurou superar o subjetivismo e o agnosticismo estético, fundamentados em Kant, elevando-se a um ponto de partida do saber infinito, como vimos, uma tal autolibertação gnóstica da finitude encerrou em si a subsunção da arte na filosofia. Teremos de, em lugar disso, fixar-nos no ponto de partida da finitude. Parece-me que o que há de produtivo na crítica de Heidegger ao subjetivismo da modernidade é que sua interpretação temporal do ser abriu, nesse sentido, possibilidades próprias. A interpretação do ser, a partir do horizonte do tempo, não significa, segundo mal-entendido que sempre ocorre, que a pre-sença (Dasein) seja temporalizada tão radicalmente que já não possa mais deixar valer nada como sempre-sendo ou como eterno, mas que deve compreender-se totalmente com relação ao seu próprio tempo e futuro. Se for essa a opinião, então não se trata, de maneira alguma, de uma crítica e da superação do subjetivismo, mas de uma radicalização “existencialista” do mesmo, cujo futuro coletivista se pode profetizar. A questão da filosofia, de que se trata aqui, se dirige justamente a esse subjetivismo. Só por isso é que este é impelido ao cume, a fim de ser questionado. A questão da filosofia é indagar o que vem a ser o ser do compreender-se. Com essa indagação, ultrapassa, em princípio, o horizonte desse compreender-se. Ao revelar o tempo como o seu fundamento oculto, não prega um engajamento cego com base num desespero niilista, mas abre-se a algo até então oculto, a uma experiência que supera o pensamento baseado na subjetividade, que Heidegger denomina de ser. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mesmo assim, esta constatação ainda não apresenta uma solução para o problema epistemológico, tal qual o colocava Dilthey. Antes, nessa condição de homogeneidade, o verdadeiro problema epistemológico da história permanece ainda oculto. Pois a pergunta é propriamente como se eleva a experiência do indivíduo e seu conhecimento à experiência histórica. Na história não se trata já de nexos que são vividos, como tais, pelo indivíduo ou que como tais podem ser revividos por outros. A argumentação de Dilthey só vale de imediato para o viver e reviver do indivíduo. Por isso, é nele que se inicia a reflexão epistemológica. Dilthey desenvolve o modo como o indivíduo adquire um contexto vital e procura ganhar, a partir daí, os conceitos constitutivos capazes de sustentar também o contexto histórico e seu conhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma (256) de toda vida, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a idéia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no (265) esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Nesse sentido, o historiador vai mais além do labor hermenêutico. A isto corresponde o fato de que aqui o conceito da interpretação obtém um sentido novo e aguçado. Não se refere somente à realização expressa da compreensão de um dado texto, tarefa que cabe ao filólogo levar a cabo. O conceito da interpretação histórica possui, antes, seu correlato no conceito da expressão, conceito que a hermenêutica histórica não entende no seu sentido clássico e usual, como termo retórico, referente à relação da linguagem com o pensamento. O que expressa a expressão não é somente o que nela deve tornar-se expresso, o que ela intenciona, mas preferentemente aquilo que também chega a expressar-se nesse intencionar e dizer, sem que este deva ser expresso, aquilo, portanto, que a expressão como que “dissimula”. Nesse sentido amplo, o conceito “expressão” não se restringe à expressão lingüística. Ele abarca, antes, tudo aquilo atrás de que e tem de ir, urna vez que se queira posicionar-se atrás disto, o qual é de tal modo, que possibilita este estar atrás. A interpretação tem a ver, aqui, não tanto com o sentido intencionado, mas com o sentido oculto, e que tem de ser revelado. E nesse sentido cada texto representa não somente um sentido compreensível, mas também um sentido necessitado de diversas perspectivas de interpretação. Em primeiro lugar ele próprio é um fenômeno de expressão. E compreensível que o historiador se interesse precisamente por esse seu aspecto. Pois o valor testemunhal de um relato, por exemplo, depende efetivamente do que representa o texto como fenômeno expressivo. Nele pode-se adivinhar o que queria o escritor, sem chegar a dizê-lo, a que partido pertencia, que convicções atribuía às coisas, ou ainda, que grau de falta de consciência e de inverdade ter-se-á de lhe atribuir. Evidentemente (342) que não se pode deixar de lado esses momentos subjetivos da credibilidade de um testemunho. Mas sobretudo temos de levar em conta que o conteúdo da tradição, ainda que supondo-se assegurada sua credibilidade subjetiva, deve: ser ainda interpretado, isto é, o texto se entende como um documento cujo sentido real tem de ser elucidado mais além de seu sentido literal, por exemplo, comparando-o com outros dados que permitam avaliar o valor histórico de uma tradição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A filologia é a alegria pelo sentido que se enuncia. É indiferente se o mesmo se expressa pela linguagem ou de outra forma. Assim, naturalmente tanto a arte é portadora desse sentido como a ciência e a filosofia. Contudo, mesmo esse sentido mais amplo de filologia, como o que compreende o sentido, é diferente da história, mesmo que também esta busque compreender o sentido. Enquanto ciências, ambas fazem uso dos métodos de sua ciência. Porém, à medida que se trata de um texto, mesmo que de estatuto diferente, estes não devem ser compreendidos apenas pelas vias da investigação metodológica. Todo texto já sempre encontrou seu leitor, antes que a ciência viesse em seu auxílio. A diferença entre alegria pelo sentido que se expressa e investigação do sentido que está oculto já articula o âmbito de sentido em que se movimentam as duas formas de compreensão. De um lado está a motivação do leitor pelo sentido — e o conceito de leitor pode ser estendido, sem dificuldades, a todas as formas de arte. Do outro lado, está o saber inconsciente do leitor sobre sua própria pátria e proveniência, a profundidade histórica do próprio presente. A interpretação de textos dados, cujo sentido se expressa, permanece, assim, sempre referida a uma compreensão precedente e consuma-se no seu enriquecimento. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por Aristóteles para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
A escola histórica, porém, sobretudo na forma decisiva que Droysen, seu metodologista mais arguto, reivindica para a tarefa (124) do historiador, não aceitou de modo algum essa total alienação objetivista do objeto da história. Pelo contrário, Droysen perseguiu essa “objetividade eunuca” com um sarcasmo mordente, e caracterizou a pertença às grandes forças morais, que regem a história, como a condição prévia de toda compreensão histórica. Sua célebre fórmula, segundo a qual a tarefa do historiador consiste em compreender pela via da investigação, contém um aspecto teológico. Os planos da Providência estão ocultos para o homem. Contudo, mediante a investigação das estruturas da história do mundo, o espírito histórico pode adquirir uma idéia do sentido oculto da totalidade. Compreender, aqui, é mais do que um método universal apoiado ocasionalmente na afinidade ou congenialidade do historiador com seu objeto histórico. Não é só uma questão de casual simpatia pessoal. Na escolha dos objetos e dos pontos de vista sob os quais se apresenta um objeto como um problema histórico, já está atuando um elemento da própria historicidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas idéias consiste em buscar suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em Aristóteles que se encontra a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala. A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória, que nos capacita reconhecer algo como o mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento do comum. Aristóteles pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? Aristóteles apresenta uma imagem ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a deter-se, uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.