Gadamer (VM): autoconsciência

Portanto, esses estudos sobre hermenêutica procuram demonstrar a partir da experiência da arte e da tradição histórica, o fenômeno da hermenêutica em toda a sua envergadura. Importa reconhecer nele uma experiência da verdade, que não terá de ser apenas justificada filosoficamente, mas que é, ela mesma, uma forma de filosofar. A hermenêutica que se vai desenvolver aqui não é, por isso, uma doutrina de métodos das ciências do espírito, mas a tentativa de um acordo sobre o que são na verdade as ciências do espírito, para além de sua autoconsciência metódica, e o que as vincula ao conjunto da nossa experiência do mundo. Se fizermos da compreensão o objeto de nossa reflexão, o objetivo não será uma doutrina artificial da compreensão, como o queria a hermenêutica tradicional da filologia e da teologia. Uma tal doutrina artificial ignoraria que, em face da verdade do que a tradição nos diz, o formalismo do saber artificial faz uma falsa reivindicação de superioridade. Se, a seguir, se passar a comprovar o quanto de acontecimento age em toda compreensão e quão pouco, através da consciência histórica-moderna, se debilitam as tradições em que nos vemos, não se procurará com isso, por exemplo, baixar diretrizes para as ciências ou para a prática da vida, mas sim, corrigir uma falsa concepção sobre o que são. VERDADE E MÉTODO Introdução

Mas havia a tarefa bastante urgente, numa pesquisa que estava, na verdade, em plena florescência, de elevar a “escola histórica” a uma autoconsciência lógica. Já no ano de 1843 J.G. Droysen, o autor e descobridor da história do helenismo, tinha escrito: “Não há certamente nenhum campo científico que esteja tão afastado de uma justificação, delimitação e articulação teóricas como a história”. Droysen já tinha exigido de um Kant que, num imperativo categórico, “viesse a indicar à história as fontes vivas de onde flui a vida histórica da humanidade”. E manifesta a esperança “de que o conceito da história, compreendido mais profundamente, será o ponto de gravitação, em redor do qual a desordenada oscilação das ciências do espírito tem de ganhar firmeza e a possibilidade de um continuado progresso”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A formação como elevação à universalidade é pois uma tarefa humana. Exige um sacrifício do que é particular em favor do universal. O sacrifício do particular, porém, significa negativamente: inibição da cobiça e, com isso, liberdade de seu objeto (Gegenstand) e liberdade para sua objetividade. Aqui, as deduções da dialética fenomenológica complementam o que foi escrito na “Propedêutica”. Na “Fenomenologia do Espírito” Hegel desenvolve a gênese da autoconsciência livre “em si e para si” e mostra que a essência do trabalho é formar a coisa, e não deformá-la. Na consistência autônoma que o trabalho propicia à coisa, a consciência que trabalha se reencontra a si mesma como uma consciência autônoma. O trabalho é a cobiça inibida. Ao formar o objeto, portanto, enquanto ela é ativa de modo destituído do próprio e em busca de um sentido universal eleva-se a consciência que trabalha, acima do imediatismo de sua existência rumo à universalidade — ou, como Hegel se expressa: ao formar a coisa, forma-se a si mesmo. O que ele quer dizer é o seguinte: enquanto o homem está adquirindo um “poder” (Können), uma habilidade, ganha ele, através disso, uma consciência de senso próprio. O que pareceu ser-lhe negado no destituir-se do próprio, no servir, na medida em que ele se submeteu totalmente a um sentido que lhe era estranho, volta em seu proveito, na medida em que ele é uma consciência laboriosa. Como tal encontra ele em si mesmo um sentido próprio, sendo perfeitamente correto dizer do trabalho: ele forma. O senso próprio (Selbstgefuhl) da consciência laboriosa contém todos os momentos daquilo que perfaz uma formação prática: distanciamento da imediatez da cobiça, das necessidades pessoais e do interesse privado e a exigência de um sentido universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Assim, como se sabe, esse ideal foi proclamado na antiguidade tanto pelos professores de filosofia como pelos de retórica. A retórica encontrava-se há muito tempo em luta com a filosofia e era sua a reivindicação de transmitir, ao contrário das ociosas especulações dos “sofistas”, a verdadeira sabedoria de vida. Vico, que era ele mesmo professor de retórica, encontra-se, aqui, portanto, em meio a uma tradição humanística procedente da antiguidade. Certamente essa tradição também é de impôftância para o que há de evidente nas ciências do espírito e, especialmente, a positiva ambiguidade do ideal retórico, que não somente surge sob o veredicto de Platão, mas também, da mesma forma, sob o veredicto do metodologismo anti-retórico da modernidade. Desse ponto de vista, muita coisa do que nos irá ocupar já ressoa em Vico. Seu apelo ao sensus communis abrange, porém, além do momento retórico, ainda um outro momento da antiga tradição. É o antagonismo entre o acadêmico e o sábio, sobre o qual ele se apoia; um antagonismo que encontrou a sua primeira configuração na imagem cínica de Sócrates que possui seu fundamento objetivo no antagonismo conceitual entre sophia e de phronesis, que foi elaborado pela primeira vez por Aristóteles, que nos Peripatéticos foi desenvolvido como uma crítica do ideal teórico de vida e que co-determinou, na época helenística, a imagem do sábio, principalmente depois que o ideal de formação grega se tinha fundido com a autoconsciência da liderança política romana. Também a ciência jurídica romana, no seu período tardio, p. ex., instala-se, como se sabe, apoiada no pano de fundo da arte jurídica e da prática jurídica, que se envolve mais com o ideal prático da phronesis do que com o ideal teórico da sophia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de “vivência”, podemos concluir do que precedeu que o conceito de vivência de Dilthey contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a vivência e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma consequência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo linguístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da vivência e a fome de vivência, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra “vivência” alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da vivência em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na “perception clara e distinta”, que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de vivência de Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Foram sobretudo dois princípios a partir dos quais se apresentou esse tema abrangente, que diz respeito à correlação entre a vida e a vivência; e veremos mais tarde como Dilthey, e especialmente Husserl, se enredaram na presente problemática. De um lado, trata-se do significado fundamental que possui a crítica de Kant sobre toda a doutrina substancial da alma e sobre a unidade transcendental da autoconsciência, que é diferente daquela, e que é a unidade sintética da aperception. Nessa crítica da psicologia racionalista foi possível vincular a ideia de uma psicologia baseada num método crítico, iniciativa que Paul Natorp já havia tomado em 1888127 e a partir do que Richard Hõnigswald viria a fundamentar, mais tarde, o conceito da psicologia do pensamento. Através do conceito do estar-consciente, que proclama a imediaticidade da vivência, Natorp designou o objeto da psicologia crítica e desenvolveu o método de uma subjetivação universal como sendo a forma de pesquisa da psicologia reconstrutiva. Natorp apoiou e continuou desenvolvendo, mais tarde, seu princípio fundamental através de uma crítica pormenorizada à formação do conceito da pesquisa psicológica contemporânea. Mas já em 1888 estava fixado o pensamento básico de que a concreção da vivência originária, isto é, a totalidade da consciência, constitui uma unidade indivisível, que somente se diferencia e determina através do método objetivador do conhecimento. “O consciente, porém, significa vida, isto é, relações recíprocas generalizadas.” Isso se observa principalmente na relação entre o consciente e o tempo: “O dado não é o consciente como fenômeno no tempo, mas o tempo como forma do consciente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Onde a arte domina, aí passam a valer as leis da beleza e são ultrapassadas as fronteiras da realidade. É o “reino ideal”, a ser defendido contra todas as limitações, até mesmo contra a tutela moral do estado e da sociedade. Vincula-se certamente com o deslocamento interno na base ontológica da estética de Schiller, o fato de que também seu extraordinário princípio, nas Cartas sobre a educação estética, se modifique na execução. Torna-se conhecido que uma educação pela arte torna-se uma educação para a arte. No lugar da verdadeira liberdade ética e política, para o que a arte deve nos preparar, desponta a formação de um “estado estético”, uma sociedade de formação que se interessa pela arte Com isso, também a superação do dualismo kantiano do mundo dos sentidos e do mundo ético, que é representado pela harmonia da obra de arte e pela liberdade do jogo estético, transforma-se obrigatoriamente num novo antagonismo. A conciliação do ideal e da vida através da arte é, meramente, uma conciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade da índole humana, à qual ambos elevam, só é liberdade num estado estético e não na realidade. E assim que se abre no fundamento da conciliação estética do dualismo kantiano do ser e do dever, um dualismo ainda mais profundo e mais insolúvel. É a prosa da realidade alheada que, contra a qual, a poesia da conciliação estética tem de procurar sua própria autoconsciência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Com isso — diferenciando-se da diferenciação que exerce um gosto preenchido e determinado em selecionar e rejeitar — deve-se caracterizar a abstração, que, como tal, somente pratica uma seleção em relação à qualidade estética, como tal. Ela completa-se na autoconsciência da “vivência estética”. A que está dirigida a vivência estética, há de ser a obra verdadeira — aquilo de que ela prescinde, são os momentos extra-estéticos que lhe são aderentes: fim, função, significado de conteúdo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O conceito da “cosmovisão”, que nos é familiar e que surge pela primeira vez em Hegel, na Fenomenologia do Espíritom, para caracterizar a complementação postulatória da experiência ética fundamental em uma ordem moral do mundo, de Kant e de Fichte, só irá encontrar sua genuína cunhagem na estética. É a multiplicidade e a possível mudança das cosmovisões que acabou emprestando ao conceito “cosmovisão” esse tom com que estamos familiarizados. Nesse sentido, porém, o exemplo condutor é a história da arte, porque essa multiplicidade histórica não se deixa suspender na unidade de uma meta do progresso, voltada para a verdadeira arte. É verdade que Hegel só conseguiu reconhecer a verdade da arte devido ao fato de tê-la sobrepujado com o saber conceitual da filosofia, e construiu a história das cosmovisões, bem como a história mundial e a história da filosofia, a partir de uma completa autoconsciência do presente. Também nisso, porém, não se pode ver apenas que seja um desvio do caminho, já que, com isso, se ultrapassa o campo do espírito subjetivo. Nessa ultrapassagem reside um momento da verdade permanente do pensamento de Hegel. É verdade que, na medida em que a verdade do conceito, através disso, se torna todo-poderosa e suspende em si toda experiência, a filosofia de Hegel desautoriza, ao mesmo tempo e novamente, o caminho da verdade, que reconhecera na experiência da arte. Se procurarmos defender esse caminho no que lha cabe de razão, teremos de prestar conta, por princípio, ao que, aqui, se chama de verdade. São as ciências do espírito no seu conjunto onde se terá de ir encontrar uma resposta para essa pergunta. Pois estas não querem suplantar, mas compreender a variabilidade de todas as experiências, quer seja variabilidade da consciência estética ou histórica, quer a da consciência religiosa ou política, o que, porém, significa: exceder-se em sua verdade. Ainda vamos pormenorizar essa questão de como Hegel e o que há de evidente nas ciências do espírito, o que representa a “escola histórica”, se comportam reciprocamente, e de como se reparte a ambos os lados, o que possibilita uma compreensão adequada daquilo que denominamos a verdade das ciências do espírito. Não poderemos fazer justiça ao problema da arte do ponto de vista da consciência estética, mas apenas do ponto de vista dessa moldura mais ampla. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Neste ponto Hegel aponta para além da dimensão global em que se havia colocado o problema da compreensão em Schleiermacher. Hegel o eleva à base, sobre a qual ele fundamenta a filosofia como a forma mais alta do espírito absoluto. No saber absoluto da filosofia leva-se a cabo aquela autoconsciência do espírito que, como diz o texto, abrange, “de um modo superior”, também a verdade da arte. Desse modo, para Hegel é a filosofia, isto é, a auto-imposição histórica do espírito, que domina a tarefa hermenêutica. Nela o comportamento histórico da imaginação se transforma em um comportamento pensante com respeito ao passado. Hegel expressa assim uma verdade categórica, dizendo que a essência do espírito histórico não consiste na restituição do passado, mas na mediação de pensamento com a vida atual. Hegel tem razão quando se nega a pensar essa mediação de pensamento como uma relação externa e posterior, e a coloca no mesmo nível que a verdade da arte. Com isso ele ultrapassa fundamentalmente a ideia da hermenêutica de Schleiermacher. Também para nós a questão da verdade da arte obrigou a uma crítica da consciência tanto estética como histórica, ao mesmo temo em que indagamos pela verdade que se manifesta na arte e na história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Se reconhecermos como tarefa seguir mais Hegel do que Schleiermacher, teremos de acentuar a história da hermenêutica de um modo totalmente novo. Esta já não terá sua realização na liberação da compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, e já não poder-se-á considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey, seguindo os passos de Schleiermacher. Nossa tarefa, antes, será refazer o caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diversos dos que ele tinha em mente com a sua autoconsciência histórica. Nesse sentido desviar-nos-emos inteiramente do interesse dogmático pelo problema hermenêutico que o Antigo Testamento despertou já na igreja antiga, e nos contentaremos em palmilhar o desenvolvimento do método hermenêutico na Idade Moderna, que desemboca da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mais ainda: a teologia da Reforma parece nem sequer ser consequente. Ao acabar reivindicando como fio condutor para a compreensão da unidade da Bíblia, a fórmula de fé protestante suspende, também ela, o princípio da Escritura, em favor de uma tradição reformatoria, que em todo caso é breve. Sobre isso, e deste modo, já apresentaram seu julgamento não só a teologia da Contra-reforma, mas também o próprio Dilthey. Este glosa essas contradições da hermenêutica protestante, partindo do auto-senso pleno das ciências históricas do espírito. Mais tarde teremos de nos indagar se essa autoconsciência realmente se justifica — precisamente também com relação ao sentido teológico da exegese bíblica — e se o princípio fundamental filológico-hermenêutico de compreender os textos a partir deles mesmos não trará em si uma certa insuficiência e não necessitará, ainda que não na maioria das vezes o reconheça, ser completado por um fio condutor de caráter dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para mim, há motivos externos e internos pelos quais essa hipótese parece ser pouco provável. Essa refinada regra metódica que ainda hoje está sendo tão mal-empregada, desmedidamente, como uma carta em branco, para as mais arbitrárias interpretações, e que, por consequência, está sendo contestada, enquadra-se mal no grêmio dos filólogos. Estes, enquanto “humanistas”, têm, antes, sua autoconsciência no fato de reconhecer o puro e simples caráter modelar dos textos clássicos. Para o verdadeiro humanista, seu autor não é, de modo algum, alguém que compreende a si mesmo menos do que o humanista, a sua obra. Não se deve esquecer que o objetivo supremo do humanista jamais é, em princípio, “compreender” seus modelos, mas assemelhar-se a eles e até superá-los, não somente como intérprete, mas também como imitador — quando não, até como rival. Tal qual a vinculação dogmática à Bíblia, também a vinculação humanista aos clássicos teve que começar por abrir espaço a uma relação mais distanciada, para que o ofício do intérprete chegasse a um grau de autoconsciência como o que expressa a fórmula de que nos ocupamos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Há muitas formas de pensar a história a partir de um padrão situado além dela própria. O classicismo de Wilhelm von Humboldt considera a história como a perda e a decadência da perfeição da vida grega. A teologia histórica gnóstica da época de Goethe, cuja influência sobre o jovem Ranke tem sido exposta há pouco, pensa o futuro como a restauração de uma [205] perfeição dos tempos originais, que foi perdida. Hegel reconciliou o caráter estético modelar da antiguidade clássica com a autoconsciência do presente, caracterizando a religião da arte dos gregos como uma figura já superada do espírito, e proclamando na autoconsciência filosófica da liberdade a perfeição da história no presente. Todas estas são maneiras de pensar a história que pressupõem um paradigma situado fora dela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Desse modo, a própria autocompreensão hermenêutica da escola histórica, que tivemos ocasião de rastrear em Ranke e Droysen, encontra sua fundamentação última na ideia da história universal. Por outro lado, a escola histórica não podia aceitar a fundamentação hegeliana da unidade da história universal através do conceito do espírito. A ideia de que o caminho do espírito rumo a si mesmo se consuma na plena autoconsciência do presente histórico, espírito este que perfaz o sentido da história, não é mais do que uma auto-interpretação escatológica que, no fundo, subsume a história no conceito especulativo. Em lugar disso, a escola histórica se viu encurralada rumo a uma compreensão teológica de si mesma. Se não quisesse suspender a sua própria essência, a de pensar-se a si mesma como uma investigação progressiva, teria de referir seu próprio conhecimento finito e limitado a um espírito divino, para o qual as coisas seriam conhecidas em sua consumação. É o velho ideal da compreensão infinita, que aqui se aplica propriamente ainda ao conhecimento da história. É o que diz Ranke: “A divindade — se me é permitido ousar essa observação — , assim eu penso, contempla toda a humanidade histórica em seu conjunto e considerando-a, toda ela, valiosa por igual, já que antes dela não há tempo algum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A ideia da compreensão infinita (intellectus infinitus), para a qual tudo é ao mesmo tempo (omnia simul), aparece aqui reformulada como imagem original da justiça histórica. O historiador se lhe aproxima quando sabe que todas as épocas e todos os fenômenos históricos se justificam igualmente perante Deus. Dessa maneira, a consciência do historiador é a representante da perfeição da autoconsciência humana. Quanto melhor consiga reconhecer o valor próprio e indestrutível de cada fenômeno, isto é, quando pensa historicamente, tanto mais semelhante a Deus pensará. É bem por isso que Ranke compara o ofício do historiador com o do sacerdócio. Para o luterano Ranke, o verdadeiro conteúdo da mensagem cristã é a imediatez para com Deus. A restauração dessa imediatez, que [215] precedeu a queda do pecado original, não somente se produz através dos meios da graça na igreja — também o historiador participa dela ao fazer objeto de sua investigação a essa humanidade caída na história e ao reconhecer a imediatez rumo a Deus, nunca perdida de todo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A expressão da compreensão adquire, a partir daqui, seu tom quase religioso. Compreender é participar imediatamente da vida, sem a mediação do pensamento através do conceito. O que interessa ao historiador não é referir a realidade a conceitos, mas chegar em todas as partes ao ponto em que “a vida pensa e o pensamento vive”. Os fenômenos da vida histórica são entendidos na compreensão, como manifestações do todo da vida, da divindade. Essa penetração compreensiva dos mesmos significa, de fato, mais do que um universo interior, tal como Dilthey reformulou o ideal do historiador face a Ranke. Trata-se de um enunciado metafísico, pelo que Ranke se aproxima enormemente de Fichte e Hegel, quando diz: “A intuição clara, plena e vivida, tal é a marca do ser que se tornou transparente e que enxerga através de si mesmo. Numa tal formulação, é impossível não perceber como Ranke, no fundo, permanece próximo do idealismo alemão. A plena auto-transparência do ser, que Hegel pensou no saber absoluto da filosofia, continua legitimando também a autoconsciência de Ranke como historiador, por mais que ele recuse as pretensões da filosofia especulativa. Essa é justamente a razão pela qual se [216] torna tão próximo para ele o modelo do poeta, e porque não sente a menor necessidade de estabelecer limites face a ele, como historiador. Pois o que o historiador e o poeta têm em comum é que um e outro conseguem representar o elemento em que vivem todos “como algo que está fora deles”. Esse puro abandono à contemplação das coisas, a atitude épica de quem busca a lenda da história do mundo, tem direito a chamar-se de poético, na medida em que, para o historiador, Deus está presente em tudo, não sob a forma do conceito, mas sob a da “representação externa”. Não é possível descrever melhor a autocompreensão de Ranke, do que através desses conceitos de Hegel. O historiador, tal como o entende Ranke, pertence à forma do espírito absoluto que Hegel descreveu como “religião da arte”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A marca distintiva da consciência histórica não pode consistir em ser realmente “saber absoluto”, no sentido hegeliano, isto é, em que reúna numa autoconsciência presente a totalidade daquilo que o espírito veio a ser. Pois a concepção histórica do mundo discute precisamente a pretensão da consciência filosófica de conter em si a verdade inteira da história do espírito. Essa é, antes, a razão pela qual fazia falta a experiência histórica: que a consciência humana não é um intelecto-infinito para o qual tudo seja simultâneo e presente por igual. A identidade absoluta de consciência e objeto é, por princípio, inacessível à consciência histórica e finita. Ela permanece enredada no nexo de efeitos da história. E então em que se apoia sua [239] distinção de elevar-se, apesar disso sobre si mesma e tornar-se assim capaz de um conhecimento histórico objetivo? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É verdade que o próprio Dilthey sempre levou em consideração essa objeção e procurou uma solução para a questão pelo modo como é possível a objetividade, dentro da relatividade, e como pode-se pensar a relação do finito com o absoluto. A tarefa é expor como se ampliaram esses conceitos de valor, relativos à época, a algo absoluto”. Em Dilthey, porém, será vã a procura de uma resposta real a esse problema do relativismo, e isto não porque ele jamais tenha encontrado a resposta certa, mas porque essa não era sua própria e verdadeira pergunta. Antes, no desenvolvimento da auto-reflexão histórica que o levava de relatividade a relatividade, ele se soube sempre no caminho rumo ao absoluto. Nesse sentido, Ernst Troeltsch resumiu perfeitamente o trabalho de toda a vida de Dilthey na formulação: da relatividade à totalidade. A fórmula que Dilthey emprega para isso diz o seguinte: “Ser conscientemente um ser condicionado” — uma fórmula que se dirige abertamente contra a pretensão da filosofia da reflexão, pretensão de deixar para trás todas as barreiras da finitude, ascendendo para o absoluto e para o infinito do espírito, para a consumação e a verdade da autoconsciência. No entanto, sua incansável reflexão sobre a objeção do “relativismo” mostra que ele não pôde manter realmente a consequência de sua investida da filosofia da vida contra a filosofia da reflexão do idealismo. Não fosse assim, ele teria de reconhecer, na objeção do relativismo, o “intelectualismo”, a que seu próprio ponto de partida da imanência do saber na vida pretendia minar pela base. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na verdade há muitas formas de se ter certeza. O modo de certeza que consegue sustentar um convencimento que perpassou através da dúvida é diferente dessa certeza vital imediata de que se revestem todos os objetivos e valores da consciência humana, quando fazem exigência de incondicionalidade. Com mais direito, porém, distingue-se a certeza alcançada na própria vida da certeza da ciência. A certeza científica sempre tem uma feição cartesiana. É o resultado de uma metodologia crítica, que procura somente deixar valer o que for indubitável. Portanto, essa certeza não procede da dúvida e de sua superação, mas já subtrai-se de antemão à possibilidade de sucumbir à dúvida. Assim como em Descartes e na sua famosa meditação sobre a dúvida se propõe uma dúvida artificial e hiperbólica — como se fosse um experimento — que conduz ao fundamentum inconcussum da autoconsciência, a ciência metódica põe em dívida, fundamentalmente, tudo aquilo sobre o que é possível duvidar, com o fim de chegar, deste modo, a resultados seguros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da vida. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à vida, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da “vida da consciência”. E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de vida não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego, isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente consequente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O “outro” aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde “se converte”, por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a [255] interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da vida, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma [256] de toda vida, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Se continuarmos a perseguir essa ideia de Yorck, tornar-se-á ainda mais nítida a persistência dos motivos idealistas. O que o conde Yorck expõe aqui é a correspondência estrutural de vida e autoconsciência, que Hegel já desenvolvera na sua Fenomenologia. Já nos últimos anos de Hegel em Frankfurt, nos restos de manuscritos conservados, pode ser mostrada a importância central que possui o conceito da vida para a sua filosofia. Na sua Fenomenologia é o fenômeno da vida o que encaminha a decisiva transição de consciência à autoconsciência — e esse não é certamente um nexo artificial. Pois vida e autoconsciência têm realmente uma certa analogia. A vida se [257] determina pelo fato de que o ser vivo se diferencia a si mesmo do mundo em que vive e ao qual permanece unido, e se mantém nessa sua auto-diferenciação. A auto-conservação do ser vivo se nutre do que lhe é estranho. O fato fundamental de estar vivo é a assimilação. Por consequência, a diferenciação é ao mesmo tempo uma não-diferenciação. O estranho é apropriado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa estrutura do ser vivo, como já mostrou Hegel e confirmou Yorck, tem seu correlato na essência da autoconsciência. Seu ser consiste no fato de saber converter tudo e cada coisa em objeto de seu saber e, no entanto, em tudo e em cada coisa que saber, sabe-se a si mesmo. É, portanto, enquanto saber, um diferenciar-se-de-si-mesmo e, enquanto autoconsciência, é ao mesmo tempo um transcender (Übergreifen), alcançando sua unidade consigo mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Evidentemente, trata-se de algo mais do que uma mera correspondência estrutural de vida e autoconsciência. Hegel tem toda razão quando deriva dialeticamente a autoconsciência a partir da vida. O que está vivo não é, de fato, nunca verdadeiramente conhecível para a consciência objetiva, para o esforço do entendimento que busca penetrar na lei dos fenômenos. O vivo não é algo a que se possa alcançar de fora e contemplá-lo na sua vitalidade. A única maneira pela qual se pode conceber a vitalidade é dar-se conta (Innewerden) dela. Hegel faz alusão à história da imagem oculta de Sais, quando descreve a auto-objetivação interna da vida e da autoconsciência: aqui, o interior vê o interior. Experiencia-se a vida nessa forma de sentir-se a si mesmo, nesse dar-se conta da própria vitalidade. Hegel mostra como essa experiência se acende e se apaga sob a forma de desejo e satisfação do desejo. Esse auto-sentimento da vitalidade, no qual esta se torna consciente de si mesma, é, digamos, uma forma falsa prévia, uma forma ínfima da autoconsciência, na medida em que esse tornar-se consciente de si mesmo no desejo se anula na satisfação do desejo. Todavia, por mais falsa que seja essa forma prévia, esse sentimento vital, frente à verdade objetiva, frente à consciência de algo estranho, é ainda a primeira verdade da autoconsciência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Esse é, na minha opinião, o ponto onde a investigação de Yorck engata de maneira particularmente fecunda. Da correspondência de vida e autoconsciência a investigação obtém uma diretriz metódica a partir da qual determina a essência e a tarefa da filosofia. Projeção e abstração são os seus conceitos-guia [258]. Projeção e abstração perfazem o comportamento vital primário. Mas valem também para o comportamento histórico recorrente. E a reflexão filosófica somente alcança a sua própria legitimação, na medida em que também ela corresponde a essa estrutura da vitalidade e só na medida em que faz isso. Sua tarefa é compreender os resultados da consciência a partir da sua origem, compreendendo-os como resultado, isto é, como projeção da vitalidade originária e de sua cisão originária. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl, mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey. O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Bem outra questão representa o fato de que mesmo o ser das crianças e dos animais — em oposição àquele ideal da “inocência” — continua sendo um problema ontológico. Em todo caso, seu modo de ser não é “existência” e historicidade no mesmo sentido que Heidegger reivindica para a pre-sença humana. Caberia indagar também o que significa que a existência humana encontre sustentação, por sua vez, em algo extra-histórico [268], natural. Se se quer romper o cerco da especulação idealista, não se pode evidentemente pensar o modo de ser da “vida” a partir da autoconsciência. Quando Heidegger empreendeu a revisão de sua autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo, o problema da vida teria de chamar-lhe a atenção novamente e de modo consequente. Assim, na Carta sobre o humanismo, fala do abismo que se abre entre o homem e o animal. Não há dúvida de que a fundamentação transcendental da ontologia fundamental realizada por Heidegger na analítica da pre-sença ainda não permitia o desenvolvimento positivo do modo de ser da vida. Aqui ficaram questões abertas. Todavia, tudo isso não muda nada no fato de que se perde completamente o sentido do que Heidegger chama “existencial”, quando se crê poder opor ao existencial da “cura” um determinado ideal de existência, seja qual for. Quem faz isso perde a dimensão do questionamento que Ser e tempo abre desde o princípio. Face a essas polêmicas míopes, Heidegger podia apelar com razão à sua intenção transcendental, no mesmo sentido em que era transcendental o questionamento kantiano. O seu questionamento estava, desde os seus primórdios, acima de toda diferenciação empírica e, por consequência, também de toda diferenciação de um ideal de conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada [304] pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Quando nossa consciência histórica se desloca rumo a horizontes históricos, isso não quer dizer que se translade a mundos estranhos, nos quais nada se vincula com o nosso; pelo contrário, todos eles juntos formam esse grande horizonte que se move a partir de dentro e que rodeia a profundidade histórica de nossa autoconsciência para além das fronteiras do presente. Na realidade, trata-se de um único horizonte, que rodeia tudo quanto contém em si mesma a consciência histórica. O passado próprio e estranho, ao qual se volta a consciência histórica [310], forma parte do horizonte móvel a partir do qual vive a vida humana e que a determina como sua origem e como sua tradição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na velha tradição da hermenêutica, que se perdeu completamente na autoconsciência histórica da teoria pós-romântica da ciência, este problema ainda ocupava um lugar sistemático. O problema hermenêutico se dividia como segue: distingue-se uma subtilitas intelligendi, compreensão, de uma subtilitas explicandi, a interpretação, e, durante o pietismo, se acrescentou como terceiro componente a subtilitas applicandi, a aplicação (por exemplo, em J.J. Rambach). Esses três momentos deviam perfazer o modo de realização da compreensão. É significativo que os três recebam o nome de subtilitas, ou seja, que se compreendam menos como um método sobre o qual se dispõe, do que como um fazer, que requer uma particular finura de espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Mas, se reconhecemos isso, então a melhor maneira de [344] levar a filologia à sua verdadeira dignidade e a uma adequada compreensão de si mesma seria libertando-a da historiografia. Só que isso me parece só meia verdade. Temos de nos questionar, antes, se também a imagem do comportamento histórico, que foi orientadora aqui, não: estaria deformada. Talvez não somente o filólogo, mas também o historiador, deva orientar seu comportamento, menos segundo o ideal metodológico das ciências da natureza, que segundo o modelo que nos oferecem a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica. Pode ser certo que o tratamento que o historiador confere aos textos seja especificamente diverso da vinculação original do filólogo com seus textos. Pode ser certo também que o historiador procure ir até atrás de seus textos com o fim de obrigá-los a uma conclusão que eles não querem dar e que por si mesmos tampouco poderiam fazê-lo. Se se mede segundo o padrão que apresenta um só texto, as coisas parecem ser efetivamente assim. O historiador se comporta com os seus textos como o juiz de instrução no interrogatório das testemunhas. Entretanto, a mera constatação de fatos que este consegue extrair a partir das atitudes preconcebidas de uma testemunha não esgota a tarefa do historiador; esta só chega ao seu final quando se compreendeu o significado dessas constatações. Com os testemunhos históricos ocorre algo parecido ao que se passa com as declarações das testemunhas num julgamento. O fato de que se use o mesmo não é uma casualidade. Em ambos os casos o testemunho é um meio para estabelecer fatos. Todavia, tampouco estes são o verdadeiro objeto, mas unicamente o material para a verdadeira tarefa: no juiz, encontrar o direito; no historiador, determinar o significado histórico de um acontecimento no conjunto de sua autoconsciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A conhecida polêmica de Hegel contra “a coisa em si” kantiana pode tornar isto mais claro. A delimitação crítica da razão, por Kant, tinha restringido a aplicação das categorias aos objetos da experiência possível, declarando incognoscível, por princípio, a coisa em si, que subjaz aos fenômenos. A argumentação dialética de Hegel argúi contra isso que a razão, ao pôr este limite e distinguir o fenômeno da coisa em si, manifesta na realidade esta diferença como sua própria. Com isso, não chega a um limite de si mesma, porém, na medida em que estabelece este limite, continua permanecendo por inteiro dentro de si. Pois isso significa que já o superou. O que faz um limite ser tal implica sempre simultaneamente aquilo em relação ao qual se delimita o que foi delimitado pelo dito limite. A dialética do limite se caracteriza por ser somente enquanto se supera. Da mesma maneira, o ser em si que caracteriza a coisa em si, em diferenciação à sua manifestação, somente é em si para nós. O que na dialética do limite aparece em sua generalidade lógica, se especifica para a consciência na experiência de que o ser em si, diferenciado dela, é o outro de si mesma, e que somente é conhecido na sua verdade, quando é conhecido como si-mesmo, ou seja, quando sabe a si mesmo na perfeita autoconsciência absoluta. Mais tarde examinaremos a razão e os limites dessa argumentação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Contra esta filosofia da razão absoluta, os críticos de Hegel apresentaram suas objeções, a partir das mais diversas posições. Sua crítica não consegue, no entanto, afirmar-se ante a coerência da automediação dialética total, tal como Hegel a descreve sobretudo na sua Fenomenologia, a ciência do saber fenomenal. O argumento de que o outro não tem de ser experimentado como o outro de mim mesmo, abrangido por minha pura autoconsciência, mas como o outro, como tu — tal é a objeção prototípica contra a infinitude da dialética hegeliana — não atinge seriamente a posição de Hegel. Talvez não haja nada tão decisivo e determinante do processo dialético da Fenomenologia do espírito como o problema do reconhecimento do tu. Para mencionar apenas algumas das etapas dessa história: Segundo Hegel, a autoconsciência própria somente alcança a verdade de sua autoconsciência, na medida em que luta por obter seu reconhecimento no outro. A relação imediata do homem e da mulher é o conhecimento natural do reconhecimento do mútuo. Além disso, a consciência moral representa o elemento espiritual do ser reconhecido, e o reconhecimento mútuo, no qual o espírito é absoluto, somente é alcançado através da confissão e do perdão. Não há dúvida de que nessas formas do espírito descritas por Hegel já está pensado o que deveria ser o conteúdo das objeções de Feuerbach e Kierkegaard. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Evidentemente que para Hegel o caminho da experiência da consciência tem que conduzir necessariamente a um saber-se a si mesmo que já não tem nada diferente nem estranho fora de si. Para ele a consumação da experiência é a “ciência”, a certeza de si mesmo no saber. O padrão a partir do qual pensa a experiência é, portanto, o do saber-se. Por isso a dialética da experiência tem de culminar na superação de toda experiência, que se alcança no saber absoluto, isto é, na consumada identidade de consciência e objeto. A partir daí poderemos compreender por que não faz justiça à consciência hermenêutica a aplicação que Hegel faz à história, quando considera que esta é concebida na autoconsciência absoluta da filosofia. A essência da experiência é pensada aqui, desde o princípio, a partir de algo no qual a experiência já está superada. Pois a própria experiência jamais pode ser ciência. Está em uma oposição insuperável com o saber e com aquele ensinamento que flui de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém sempre a referência a novas experiências. Nesse sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências. A consumação de sua experiência, o ser pleno daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que já conhece tudo, e que de tudo sabe mais que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e aprendido graças a tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e delas aprender. A dialética da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude. Nela, o poder fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora encontra seu limite. Mostra-se como pura ficção a ideia de que se pode dar marcha-a-ré a tudo, de que sempre há tempo para tudo e de que, de um modo ou de outro, tudo retorna. Quem está e atua na história faz constantemente a experiência de que nada retorna. Reconhecer o que é não quer dizer aqui conhecer o que há num momento, mas perceber os limites dentro dos quais ainda há possibilidade de futuro para as expectativas e os planos: ou, mais fundamentalmente, que toda expectativa e toda planificação dos seres finitos é, por sua vez, finita e limitada. A verdadeira experiência é assim experiência da própria historicidade. Com isso a discussão do conceito de experiência alcança um resultado que será particularmente fecundo para a nossa pergunta acerca do modo de ser da consciência da história efeitual. Como autêntica forma de experiência terá que refletir a estrutura geral da experiência. Assim, teremos de buscar na experiência hermenêutica os momentos que antes tínhamos distinguido na análise da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A experiência do tu, que assim se adquire, é objetivamente mais adequada que o conhecimento das pessoas, que só procura calcular sobre eles. É uma pura ilusão ver no outro um instrumento completamente dominável e manejável. Inclusive no servo há uma vontade de poder que se volta contra o senhor, como acertadamente o expressou Nietzsche. Todavia, esta dialética da reciprocidade que domina toda a relação-eu-tu permanece necessariamente oculta para a consciência do indivíduo. O servo que tiraniza o senhor com a sua própria servidão não crê, de modo algum, que nisto se busca a si mesmo. E mais, a própria autoconsciência consiste justamente em subtrair-se [366] à dialética desta reciprocidade, retirar-se reflexivamente desta relação com o outro e tornar-se assim inacessível para ele. Quando se compreende o outro e se pretende conhecê-lo, se lhe subtrai, na realidade, toda a legitimação de suas próprias pretensões. Em particular isto é válido para a dialética da assistência social, na medida em que penetra todas as relações inter-humanas como uma forma reflexiva de impulso para o domínio. A pretensão de compreender o outro, antecipando-se-lhe, cumpre a função de manter, na realidade, a distância a pretensão do outro. Isto é bem conhecido, por exemplo, na relação educadora, uma forma autoritária da assistência social. A dialética da relação-eu-tu se torna mais aguda nessas formas reflexivas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E esse é o ponto no qual a proximidade de nossa própria colocação com respeito à dialética especulativa de Platão e de Hegel tropeça numa barreira fundamental. A superação da diferença entre especulativo e dialético que encontramos na ciência especulativa do conceito em Hegel mostra até que ponto este se entende a si mesmo como aquele que verdadeiramente consuma a filosofia grega do logos. O que ele chama de dialética, como o que Platão chamava de dialética, repousa objetivamente na submissão da linguagem a seu “enunciado”. O conceito do enunciado, o aguçamento dialético até a contradição, acha-se, todavia, na mais radical oposição à essência da experiência hermenêutica e à linguisticidade da experiência humana do mundo. É verdade que também a dialética de Hegel se guia de fato pelo espírito especulativo da linguagem. Mas se atendemos à maneira como Hegel se entende a si mesmo, ele só pretende extrair da linguagem o jogo reflexivo de sua determinação do pensamento, e elevá-lo pelo caminho da mediação dialética, dentro da totalidade do saber sabido, até a autoconsciência do conceito. Com isso a linguagem fica na dimensão do enunciado e não alcança a dimensão da expressão linguística do mundo. Assim, deve-se mostrar com alguns traços, como se apresenta a essência dialética da linguagem para os problemas hermenêuticos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ser uma e a mesma coisa e, ao mesmo tempo, ser distinto, esse paradoxo aplicável a todo conteúdo da tradição põe a descoberto que toda a tradição é, na realidade, especulativa. Por isso, a hermenêutica tem que deixar o olhar atravessar o dogmatismo de todo “sentido em si”, tal como o fez a filosofia crítica com relação ao dogmatismo da experiência. Isso não quer dizer que cada intérprete seja especulativo para sua própria consciência, isto é, possua consciência do dogmatismo implicado na sua própria intenção interpretadora. Ao contrário, trata-se de que toda interpretação é especulativa em sua própria realização efetiva e acima de sua autoconsciência metodológica; isso é o que emerge da linguisticidade da interpretação. Pois a palavra interpretadora é a palavra do intérprete, não a linguagem nem o vocabulário do texto interpretado. Nisso se torna patente que a apropriação não é mera reprodução ou mero relato posterior do texto interpretado, mas é como uma nova criação do compreender. Quando se destacou, com toda a razão, a referência de todo sentido ao eu, essa referência significa, para o fenômeno hermenêutico, que todo sentido da tradição alcança aquela concreção em que é compreendido, na relação com o eu que a compreende, e não, por exemplo, na reconstrução de um eu, pertencente à intenção de sentido originária. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Em um empreendimento como este é questão de ordem levar-se em conta a ressonância que o projeto pessoal encontrou junto à crítica. Também nesse caso, não podemos negligenciar que o fato de a história efeitual pertencer à coisa ela mesma é uma verdade hermenêutica. Nesse sentido há que se remeter para o prefácio à 2a edição e o posfácio à 3a e 4a edições. Olhando retrospectivamente, hoje, parece-me que não se alcançou plenamente a consistência de caráter teorético desejada, pelo menos num ponto. Não fica suficientemente claro como se harmonizam os dois projetos fundamentais que contrapõem o conceito de jogo ao princípio subjetivista que determina o pensamento da modernidade. Por um lado, encontra-se a orientação no jogo da arte, e ademais, a fundamentação da linguagem no diálogo, que trata do jogo da linguagem. Com isso coloca-se a questão mais ampla e decisiva: até que ponto consegui tornar visível a dimensão hermenêutica como um além da autoconsciência, e isto quer dizer, não suspender mas conservar a alteridade do outro na compreensão? Tive, assim, que recuperar o conceito de jogo em minha perspectiva ontológica, ampliada ao caráter universal da linguagem. Tratava-se de vincular estreitamente o jogo da linguagem com o jogo da arte, no qual havia vislumbrado como o caso hermenêutico por excelência. Era natural agora pensar a nossa experiência de mundo em seu aspecto da linguagem, que é universal, sob o modelo do jogo. Já no prefácio à 2 — edição de meu livro assim como nas páginas conclusivas de minha contribuição “Die phänomenologische Bewegung” (O movimento fenomenológico) mostrei a convergência das minhas ideias concebidas nos anos trinta com o conceito de jogo do Wittgenstein tardio. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Essas considerações ampliam sem dúvida o significado da experiência da distância. No entanto, permanecem sempre ainda no contexto argumentativo de uma teoria das ciências do espírito. A verdadeira motivação de minha filosofia hermenêutica foi, ao contrário, uma outra. Estava familiarizado com a crise do idealismo subjetivo, que irrompeu na minha juventude com a retomada da crítica de Kierkegaard a Hegel. Essa imprimiu uma direção totalmente diversa ao sentido do que é compreender. Ali está o outro que rompe com a centralidade do meu eu, à medida que me dá a entender algo. Esta motivação orientou-me desde o princípio. Aflorou plenamente no meu trabalho de 1943, que apresento de novo neste volume. Quando Heidegger tomou conhecimento desse meu pequeno trabalho, mostrou-se logo favorável, embora o tenha imediatamente questionado: “E o que houve com o estar-lançado (Ge-worfenheit)?” O sentido da réplica de Heidegger foi certamente o fato de que no conceito reunitivo “estar-lançado” se estabelece uma instância contraposta ao ideal de uma posse de si e de uma autoconsciência plenas. Tinha em mente, no entanto, o fenômeno específico do outro e buscava consequentemente no diálogo a fundamentação de nossa orientação no mundo pelo elemento da linguagem. Com isso abriu-se para mim um âmbito de questões que já eram do meu interesse desde os primórdios, desde Kierkegaard, Gogarten, Theodor Haecker, Friedrich Ebner, Franz Rosenzweig, Martin Buber e Viktor von Weizsäcker. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Meu período de aprendizagem junto a Heidegger encerrou-se com o seu retorno de Marburgo para Friburgo e com o começo de minha própria atividade acadêmica em Marburgo. Foi quando surgiram as três conferências de Frankfurt, hoje conhecidas como “Origem da obra de arte”. Escutei-as em 1936. Ali encontrava-se o conceito de “terra”, com o qual Heidegger supera de modo dramático o vocabulário da filosofia moderna, vocabulário que ele renovara a partir do espírito da língua alemã e revitalizado em suas preleções. Como isso veio de encontro às minhas próprias perguntas e à minha própria experiência da proximidade entre arte e filosofia, despertou em mim uma ressonância imediata. Minha hermenêutica filosófica procura manter-se na direção de questionamento do Heidegger tardio e torná-la acessível de uma nova maneira. Considerei que para esse fim deveria manter o conceito de consciência, [11] contra cuja função fundamentadora havia se voltado a crítica ontológica de Heidegger. Procurei, no entanto, delimitar esse conceito nele próprio. Heidegger viu aqui, sem dúvida, uma recaída na dimensão de pensamento que ele havia superado — mesmo que tenha percebido que minha intenção voltava-se na direção de seu próprio pensamento. Creio que não compete a mim decidir se o caminho que segui pode pretender alcançar de certo modo os desafios de pensamento de Heidegger. Uma coisa, porém, precisa ser dita hoje. Trata-se de um trecho de caminho, a partir do qual podem-se demonstrar alguns dos intentos do Heidegger tardio, e dizer alguma coisa àquele que não consegue acompanhar a orientação de pensamento do próprio Heidegger. De qualquer modo, deve-se ler corretamente o meu capítulo sobre a consciência histórico-efeitual em Verdade e método. Ali, não se deve ver uma modificação da autoconsciência, algo como uma consciência da história efeitual ou um método hermenêutico nele fundamentado. Antes, precisamos reconhecer aqui a delimitação da consciência pela história efeitual, na qual todos nos encontramos. Trata-se de algo que não conseguimos penetrar completamente. A consciência histórico-efeitual, como foi dito naquele ponto, “é mais ser do que consciência”. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Não é por acaso que Dilthey trabalha com o exemplo da compreensão estética. O que sustenta toda a sua doutrina do ser histórico e de sua atuação pela força e pelo significado é, pois, a pressuposição de que há uma distância real da compreensão e de que é possível haver soberania da razão histórica. Assim como a compreensão estética se realiza na distância compreensiva, também a compreensão da história fundamenta-se nessa distância. E justamente isto que Dilthey concebe como o movimento da própria vida, que a reflexão surge a partir dela. Dito negativamente, isto significa que a vida precisa libertar-se do conhecimento por conceitos, a fim de formar suas próprias objetivações. Será que existe essa liberdade da compreensão? Essa crença na liberação pelo esclarecimento histórico fundamenta-se de forma decisiva num momento estrutural da autoconsciência histórica: o fato de a autoconsciência ser concebida num processo infinito e irreversível. Já Kant e o idealismo haviam partido desse ponto: todo saber sobre si próprio, passível de se alcançar, pode tornar-se objeto de um novo saber. Se eu sei, posso também sempre saber que sei. Esse movimento da reflexão é infinito. Para a autoconsciência histórica, essa estrutura significa que, na própria busca de sua autoconsciência, o espírito transforma constantemente seu ser. Ao conceber a si mesmo, já se transformou num outro, diferente do que era. Esclareçamos isto num exemplo: Quando alguém se torna consciente da raiva que o assalta, essa autoconsciência já é sempre uma transformação, quando não, uma superação dessa raiva. Hegel descreveu esse movimento da autoconsciência em direção a si mesma, na Fenomenologia do espírito. Enquanto Hegel considerava a autoconsciência filosófica como o fim absoluto desse movimento, Dilthey refutou essa reivindicação metafísica considerando-a dogmática. Com isto, abrem-se-lhe as portas ao horizonte ilimitado da razão histórica. A compreensão histórica significa um constante crescimento da autoconsciência, uma constante ampliação do horizonte da vida. Esse processo não pode ser brecado nem poderá retroceder. A universalidade de Dilthey como historiador do espírito repousa justamente nessa ampliaição infinita da vida na compreensão. Dilthey é o pensador do» Iluminismo histórico. A consciência histórica representa o fim cLa metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

[33] Será que existe realmente essa liberdade da compreensão? Será que nele se revela o nexo infinito do acontecimento como a essência da história? Será que não perguntamos exatamente pela essência da história quando perguntamos pelos limites da autoconsciência histórica? Nietzsche nos precedeu nesse questionamento. Na segunda Consideração intempestiva, ele se pergunta pela utilidade e desvantagem da história para a vida. Esboça aqui uma imagem aterradora da doença histórica que se abateu sobre sua época. Mostra como todos os instintos promotores da vida estão profundamente deteriorados por camsa dessa doença; como todos os padrões e valores vinculantes se perderam, pelo fato de aprendermos a medir com padrões estranhos e arbitrários, pautando-nos sempre em novas tábuas de valores. Mas a crítica de Nietzsche tem também seu lado positivo. Proclama um padrão de medida da vida, que mede o quanto de história uma cultura pode suportar sem sofrer danos. A autoconsciência histórica pode apresentar-se de diversos modos: conservadora, modelar ou pressentindo a decadência. A força plástica, a única capaz de dar vida a uma cultura, deve ser obtida no justo equilíbrio entre estes diversos modos de se fazer história. Ela necessita de um horizonte cercado de mitos, necessita pois de uma delimitação frente ao Iluminismo histórico. Haverá porém um voltar atrás? Ou talvez isso não seja necessário? Será que a fé na infinitude da compreensão da razão histórica é uma ilusão, uma auto-interpretação falsa de nosso ser e de nossa consciência históricos? Esta é a pergunta decisiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Ora, o relevante para o pensamento é que na guinada que experimentou o conceito de ciência no começo da modernidade é que mesmo ali o princípio fundamental do pensamento grego sobre o ser acabou se conservando. A física moderna pressupõe a metafísica antiga. Heidegger reconheceu essa cunhagem do pensamento ocidental, de origem remota, e com isso a autoconsciência histórica da atualidade ganhou uma significação específica. Isto porque esse conhecimento veda o caminho a todas as tentativas de restauração romântica dos ideais antigos, sejam eles medievais ou helenístico-humanistas, à medida que torna patente o caráter inevitável da história da civilização ocidental. Também o esquema hegeliano de uma filosofia da história e de uma história da filosofia já não pode ser suficiente, visto que, segundo Hegel, a filosofia grega não [49] é nada mais que um prelúdio especulativo daquilo que encontrou sua realização plena na autoconsciência moderna do espírito. O idealismo especulativo e seu postulado de uma ciência especulativa acabaram convertendo-se numa restauração totalmente impotente. Por mais cerceada que seja, a ciência acaba sendo o alfa e o ômega de nossa civilização. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

O fato de a auto-interpretação ter alcançado em todos esses âmbitos uma primazia, injustificada do ponto de vista objetivo (sachlich), parece-me ser uma consequência do subjetivismo moderno. Na verdade, não se pode outorgar nenhum privilégio a um poeta na explicação de seus versos, tanto quanto não se pode outorgar privilégios ao homem de estado para a explicação histórica dos acontecimentos em que ele próprio participou com sua ação. O autêntico conceito de autocompreensão, o único aplicável em todos estes casos, não deve ser pensado a partir do modelo da autoconsciência plena, mas a partir da experiência religiosa. Essa já sempre inclui que é só pela graça divina que os descaminhos da autocompreensão humana encontram o rumo para um fim verdadeiro, isto é, para a visão de que em todos os caminhos o homem deve ser conduzido para a salvação. Toda autocompreensão humana está determinada em si pela insatisfação. Isso vale também para a obra e a ação. Por isso, a arte e a história recusam-se, segundo seu próprio ser, a serem interpretadas a partir da subjetividade da [76] consciência. Pertencem àquele universo hermenêutico, caracterizado pelo modo de realização e pela realidade da linguagem, que ultrapassa toda consciência individual. Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos. O que nela se interpreta é sempre uma experiência finita, que, apesar disso, jamais se depara com aquela barreira, onde a única coisa que se poderia fazer ainda seria adivinhar algo infinito que se tem em mente, sem poder dizê-lo. Seu progresso não está limitado, e no entanto não é uma aproximação progressiva a um sentido que se tem em mente. O que perfaz seu sentido é lograr estabelecer a obra, e não o que é que se tem em mente com ela. O que concede sentido à sentença é a palavra acertada, e não o que está escondido na subjetividade do que se tem em mente. É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece “por si”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por Aristóteles para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Por fim, um exemplo da filosofia atual poderá mostrar como alguns conceitos consolidados pela tradição podem ingressar na vida da linguagem e promover novas produções conceituais. O conceito de “substância” parece ser um legado único e exclusivo do aristotelismo escolástico e que se determinou a partir dele. Também empregamos a palavra em sentido aristotélico, quando falamos, por exemplo, de substâncias químicas, de que se investigam as propriedades ou reações. Nesse caso, a substância é o prejacente, de onde empreendemos as investigações. Isso, porém, não é tudo. Empregamos a palavra também num outro sentido, de caráter marcadamente axiológico, e dela derivamos os predicados axiológicos “sem substância” e “substancial”; por exemplo, quando achamos que um plano não é suficientemente substancial, ou seja, que é muito vago e incerto. Quando dizemos, por exemplo, de uma pessoa que ela tem substância, isso significa que ela tem algo a mais do que a mera função que exerce. Aqui devemos falar de uma transferência do conceito escolástico-aristotélico de substância para uma dimensão totalmente nova. Nesse novo âmbito de emprego dessa expressão, os antigos momentos conceptuais de substância e função (que se tornaram totalmente inúteis para a ciência moderna), de essência permanente e suas determinações mutáveis ganharam nova vida e tornaram-se termos dificilmente substituíveis. Isso significa que tornaram a viver. A reflexão histórico-conceitual constata negativamente nessa história da palavra “substância” a renúncia ao reconhecimento de substâncias, iniciada na mecânica de Galileu, e positivamente a reformulação produtiva que Hegel fez do conceito de substância, tal como aparece em sua teoria do espírito objetivo. Em geral, conceitos artificiais não se convertem em palavras da linguagem falada. A linguagem costuma resistir a essas formulações artificiais ou a palavras tomadas de línguas estrangeiras, não as incorporando no seu uso geral da linguagem. A linguagem incorporou, porém, essa palavra num sentido novo e Hegel ofereceu-lhe a legitimação filosófica, quando nos ensinou a pensar aquilo que nós somos, não apenas através da autoconsciência, determinada pelo eu singular e pensante, mas também através da realidade do espírito ampliada na sociedade e no Estado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela ideia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como consequência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma ideia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Volta e meia leio e reflito sobre um pequeno texto do poeta Hölderlin que começa assim: “A pátria em ocaso”. É um estudo teórico para o drama da morte de Empédocles, que Hölderlin, em distintas versões e motivações, interpreta ao final o ocaso do herói como um sacrifício que este oferece ao tempo e como o ato de fundação de um futuro. Neste tratado, escrito em forma tão complicada como só se pode fazer em suábio, pode-se ver que na realidade, cada instante é um instante de transição, quer dizer, um subir e baixar de duas realidades, uma realidade que decai e se dissolve e outra que chega e devêm. Hölderlin caracteriza expressamente esta experiência epocal que eu descrevo como a diferença entre o novo e o velho, contrapondo a dissolução “ideal” com o devir “real” do novo. Inspira-se na intuição da totalidade como unidade do vivente. A vida consiste em que a unidade do organismo se mantém na troca constante de suas substâncias e que a dissolução sempre dá origem a algo novo. No curso das transformações da história humana [141] isso se realiza de forma que o elemento de dissolução somente se percebe em sua verdadeira unidade com a experiência do novo. Hölderlin quer nos dizer que o antigo, ou melhor, um modo de afrontar o antigo, forma parte da realidade do advento do novo. Segundo Hölderlin, isso ocorre na grande forma da tragédia, naquela afirmação trágica que diz sim ao ocaso e mediante a reconciliação trágica faz com que a vida se renove; mas podemos deixar de lado essa interpretação, que não pertence ao âmbito da presente reflexão. Prescindiremos também da palavra trágica e, com ela, da forma em que esse devir ideal do antigo desaparece poeticamente ante a realidade do novo. Basta que nos atenhamos a nossa própria experiência histórica. Também ela implica que o conhecer e a autoconsciência não são uma atualização de algo concluído, mas que alcançam sua possibilidade e sua realização como atualização desde a novidade e em vista do hoje. Mas isso significa que toda essa atualização e todo esse saber são por sua vez um acontecimento, são história. A idealidade do significado histórico não se forma somente mediante a adição de um espírito poético que flutua sobre um mundo histórico perecível e que se dissolve. Mas esse mundo é de tal natureza que não esquece a si próprio, possui e obtém sua própria idealidade justamente com isso, e vão se elaborando novas figuras de vida desde a infinitude criativa do possível. A afirmação trágica, a visão ideal do passado, é também o conhecimento de uma verdade ôntica e permanente. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

A fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt não representou, contudo, uma autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma [148] faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade — que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura — um bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermánicos, que devemos às excelentes investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distância de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

A pergunta que se faz, porém, é a seguinte: Será o conhecimento dos conhecimentos, caracterizado por Platão como arte política, algo mais do que uma imagem crítica do empreendimento cego daqueles que, segundo Platão, têm de responsabilizar-se pela decadência de sua pátria? O ideal da tékhne, do saber técnico, capaz de ser ensinado e aprendido, satisfaz a exigência feita à existência política do homem? Aqui não é o lugar para discutirmos o alcance e os limites do pensamento da téknne na filosofia platônica. E nem tampouco para tocar no problema de até que ponto a própria filosofia de Platão segue certos ideais políticos que não podem ser os nossos? Mesmo assim, mencionar Platão nesse contexto pode ajudar a esclarecer o problema que nos atinge hoje. Platão ensina a duvidar de que a intensificação da ciência humana possa apreender e regular a totalidade de sua própria existência social e política. Podemos evocar aqui a oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa, que em todas as possíveis modificações dimensionou corretamente a questão fundamental de toda aplicação da “ciência” à autoconsciência. Só com a aplicação da nova ciência à sociedade — que o Descartes da “moral provisória” tinha em mente apenas como um objetivo distante — é que essa questão alcançou toda sua gravidade. Os discursos de Kant sobre o homem como “cidadão de dois mundos” conferiram-lhe uma expressão adequada. O fato de que, na totalidade de sua existência, o homem possa tornar-se um objeto a ponto de ser considerado produto em todas as relações de sua vida social, que possa ainda existir um especialista que “ele” mesmo não é, para administrar cada “homem” junto com todos os outros e que esse especialista seja ele mesmo administrado por sua própria administração, tudo isso provoca evidentes confusões. Uma delas é que o saber objetivo de [162] Platão não passa de uma caricatura irônica, mesmo que iluminada com todas as cores de uma inspiração, de um conhecimento do divino ou do bem transcendentes. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

A autoconsciência metodológica da ciência moderna opõe-se certamente a isso. Assim, um historiador objetará que tudo isso é muito bonito, essa coisa de tradição histórica, único lugar onde as vozes do passado ganhariam significado e que inspiram os preconceitos que determinam a atualidade. Ele dirá ainda que a coisa muda de figura quando se trata realmente de investigação histórica. Como se pode levar a sério as opiniões de que por exemplo a explicação dos usos fiscais das cidades no século XV ou dos costumes matrimoniais dos esquimós recebam sua significação apenas a partir da consciência do presente e suas antecipações. Segundo ele, essas questões dizem respeito ao conhecimento histórico, e devem ser tratadas independentemente de qualquer relação com atualidade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Não se pode responsabilizar tão globalmente a “hermenêutica recente” pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller em sua célebre caracterização de Goethe. Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse “subjetivismo” quando polemiza com a “hermenêutica construtivista” e com os “atos doadores de sentido” de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

A leitura representou uma dificuldade ímpar para diversas correntes da modernidade. Isso significa que a dificuldade de trazer o escrito à fala foi o que na época moderna elevou a arte de compreender à autoconsciência metodológica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Temos assim, de um lado, a semiótica e a linguística, que criaram novos conhecimentos sobre o modo funcional e a estrutura dos sistemas de linguagem e dos sistemas de signos. E, de outro, a teoria do conhecimento, segundo a qual a linguagem fornece a todos o acesso ao mundo. Ambas as correntes atuam conjuntamente para fazer-nos ver desde uma nova ótica os pontos de partida de uma justificação filosófica de acesso científico ao mundo. Seu pressuposto era de que o sujeito domina a realidade empírica com uma autocerteza metodológica, graças aos recursos da construção racional matemática, expressando-a em forma de enunciados de juízo. Desse modo, realizou sua autêntica tarefa cognitiva, realização que culmina no simbolismo matemático, que serve para conferir uma validez geral à formulação da ciência natural. O mundo intermediário da linguagem fica idealmente em suspenso. Quando a linguagem se torna consciente como tal, então apresenta-se como a mediação primeira para o acesso ao mundo. Assim, se esclarece o caráter insuperável do esquema de mundo formulado na linguagem. O mito da autocerteza, que em sua forma apodíctica passou a ser a origem e a justificação de toda validez, e o ideal de fundamentação última, disputado pelo apriorismo e o empirismo, perdem sua credibilidade ante a prioridade e ineludibilidade do sistema da linguagem que articula toda consciência e todo saber. Nietzsche nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência. Freud nos fez conhecer as admiráveis descobertas científicas que levaram a sério esta dúvida. E, da [339] crítica radical de Heidegger ao conceito de consciência, aprendemos a ver os pressupostos conceituais que procedem da filosofia grega do logos e que na guinada moderna elevaram o conceito de sujeito ao primeiro plano. Tudo isso confere a primazia à “estrutura da linguagem” própria de nossa experiência de mundo. Frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do real, do dado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloquente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano “ou isso ou aquilo” exerceu sobre o lema “tanto isso quanto aquilo”, próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de [363] “cura” da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche. Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental? Heidegger extraiu as últimas consequências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a ideia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis, foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro, em Heráclito, em Parmênides e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da [364] mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit) e velamento (Verbergung). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse “ser” não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Como mostra Senft, seguindo essa mesma direção, o próprio F.Ch. Baur, por mais que tome o processo histórico como objeto de suas reflexões, pouco contribuiu para o progresso da questão da hermenêutica, uma vez que afirma a autonomia da autoconsciência como base irrestrita. Em sua hermenêutica, Hofmann parece ter levado a sério a historicidade da revelação também do ponto de vista hermenêutico — o que transparece claramente na apresentação de Senft. O conjunto dos ensinamentos que desenvolve é “a explicação da fé cristã, que tem a sua pressuposição no que está ‘fora e além de nós’. Não ‘fora e além’, considerados do ponto de vista legal, mas inseridos em sua própria história e ‘passíveis de experiência’”. Esse ponto oferece garantias de que também “a Bíblia é o livro da revelação como memorial de uma história, ou seja, ela representa uma determinada conjuntura de acontecimentos e não um manual de doutrinas gerais”. No conjunto, pode-se dizer que a crítica bíblica que a ciência histórica faz ao cânon suscitou a tarefa teológica de reconhecer a historia bíblica como historia, na medida em que tornou sumamente problemática a unidade dogmática da Bíblia, dissolvendo as pressuposições dogmático-racionalistas de uma “doutrina” bíblica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Esse conceito distingue-se do conceito de autoconhecimento, não somente no sentido psicologista de que no autoconhecimento conhece-se algo dado de antemão, mas também no sentido especulativo mais profundo, que determina o conceito de espírito do idealismo alemão, segundo o qual a autoconsciência perfeita conhece a si mesma no ser outro. Não há dúvidas de que o desenvolvimento dessa autoconsciência na Fenomenologia do Espírito de Hegel só se tornou possível em grande parte pelo reconhecimento do outro. O vir-a-ser do espírito autoconsciente é uma luta por reconhecimento. Ele é o que veio a ser. Por outro lado, no conceito da autocompreensão que diz respeito ao teólogo está em questão algo bem diferente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Entre as críticas feitas à crença na história da modernidade, parece-me muito mais radical a crítica de Leo Strauss, apresentada em uma série de esplêndidos livros sobre a filosofia política. Foi professor de filosofia política em Chicago, e o fato de que um crítico tão radical do pensamento político da modernidade atue ali representa um dos impulsos mais estimulantes de nosso mundo atual — esse mundo que diminui sempre mais o espaço de jogo para a liberdade. E bem conhecida aquela querelle des anciens et des modernes que tirou o fôlego do público literário do século XVII e XVIII, na França. Mesmo que isso não tenha passado de uma mera disputa literária, a tensão dessa luta acabou levando necessariamente a uma solução definitiva no sentido de uma consciência histórica. Essa luta mostrou a rivalidade existente entre os defensores da superioridade intocável dos poetas clássicos da Grécia e de Roma e a autoconsciência literária dos escritores contemporâneos, que por aquela época fizeram surgir um novo período clássico da literatura na corte do Rei Sol. Tratava-se de pôr limites ao caráter absolutamente paradigmático da [415] Antiguidade. Aquela querela foi a última forma de confrontação a-histórica entre a tradição e a época moderna. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Não é por acaso que já um dos primeiros trabalhos de Leo Strauss, que trata da crítica da religião spinoziana (Die Religionskritik Spinozas — 1930), se ocupa dessa querela. Toda a imponente obra de sua vida de erudito está consagrada à tarefa de desdobrar novamente essa querela em um sentido novo e mais radical, isto é, contrapor a justeza luminosa da filosofia clássica à autoconsciência histórica moderna. O questionamento de Platão a respeito do Estado optimal, e mesmo a ampla empiria política de Aristóteles que sustenta a primazia dessa questão, têm muito pouco a ver com o conceito de política que domina o pensamento moderno desde Machiavell. Em seu livro agora também acessível em tradução alemã, Naturrecht und Geschichte (Direito natural e história), Strauss parece remontar à figura oposta da moderna concepção histórica de mundo, ou seja, ao direito natural. Mas o verdadeiro sentido de seu livro também é esclarecer que os clássicos gregos da filosofia, Platão e Aristóteles, são os verdadeiros fundadores do direito natural e não deixar que se sustente a validade filosófica do direito natural estoico nem do medieval, sem falar do da época do Iluminismo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Há, porém, um último aspecto que pode servir inclusive para as sciences “verdadeiras”. Muito embora tenhamos que fazer algumas distinções ali. Quando na microfísica moderna não se pode eliminar o observador dos resultados de suas medições e assim ele próprio deve aparecer nos enunciados da mesma, isto tem um sentido muito preciso e que pode ser formulado em expressões matemáticas. Na investigação moderna sobre o comportamento, quando o investigador descobre estruturas que determinam também o seu próprio comportamento a partir da determinação do que herdou historicamente de seus predecessores, isso fará com que [451] aprenda algo também sobre si mesmo. O que só acontece porque está vendo a si mesmo de modo diferente do que via por sua “praxis” e sua autoconsciência, e na medida em que isso não o subjuga a um pathos de glorificação nem de humilhação do homem. Ao contrário, quando, em todos os seus conhecimentos e avaliações, o historiador mantém presente seu próprio ponto de vista, isso não representa uma objeção contra sua cientificidade. Com isso ainda não se decidiu se o historiador, em virtude dessa vinculação com o seu ponto de vista, se enganou ou compreendeu e avaliou mal a tradição, ou se conseguiu trazer à luz o que até então não havia sido observado, justamente porque seu ponto de vista lhe permitiu observar algo análogo na experiência imediata e histórico-tempo-ral. Encontramo-nos aqui em meio a uma problemática hermenêutica. Mas isso ainda não significa que não são meios metodológicos da ciência que servem de referência a alguém para decidir sobre o que é falso ou verdadeiro, para isolar o erro e alcançar o conhecimento. Nas ciências “morais” isso não faz nenhuma diferença em relação às sciences “verdadeiras”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O acirramento da tensão entre verdade e método guiava-se em meus trabalhos por um sentido polêmico. Como reconhece o próprio Descartes, isso acaba fazendo parte de um processo especial de endireitar uma coisa que estava torta, a qual deve ser dobrada na direção contrária. E a coisa estava realmente torta, não tanto a metodologia das ciências, mas sua autoconsciência reflexiva. Parece-me que a historiografia e a hermenêutica pós-hegelianas que tematizei demonstram isso suficientemente. Quando, segundo as pressuposições de E. Betti, se teme que a minha reflexão hermenêutica pudesse representar um desvio da objetividade científica, isso não passa de um mal-entendido ingênuo. Nessa questão tanto [454] Apel, quanto Habermas e os representantes da “racionalidade crítica” parecem acometidos da mesma cegueira. Todos eles desconhecem a intenção reflexiva de minhas análises e consequentemente o sentido da aplicação, que tentei apresentar como um momento estrutural de todo compreender. Eles estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação. Não percebem que a reflexão sobre a práxis não é técnica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Há que se dizer que o fato de apelar à verdade da arte contra as dúvidas do relativismo histórico, que questionavam radicalmente a pretensão da filosofia de buscar a verdade pela via conceitual não representava nenhuma saída satisfatória. Por um lado, esse testemunho é muito forte. Porque ninguém pretende estender a fé no progresso, própria da ciência, aos cumes da arte e ver, por exemplo, em Shakespeare um progresso sobre Sófocles, ou em Miquelângelo um progresso sobre Fídias. Mas, por outro lado, o testemunho da arte é também muito frágil, uma vez que a obra de arte subtrai ao conceito a verdade que ela materializa. Em todo caso, a formação que proporcionava a consciência estética era tão insegura como a da consciência histórica e seu pensamento sobre as “concepções de mundo”. Mas isso não significa que a arte, assim como o confronto com as tradições do pensamento histórico, perdera seu fascínio. Ao contrário, a enunciação da arte como a enunciação dos grandes filósofos denotava ainda mais uma aspiração à verdade, confusa e inevitável, que não se podia neutralizar com nenhuma “história do problema” nem se deixava submeter às leis da rígida cientificidade e do progresso metodológico. Esse sentimento foi caracterizado então na Alemanha como “existencial”, sob a influência de uma reapropriação de Kierkegaard. Interessava uma verdade que não fosse devida tanto a alguns enunciados ou conhecimentos gerais, mas à imediatez das próprias vivências e à intransferibilidade da própria existência. Pensávamos que Dostoievski podia nos ensinar muito sobre isso. Os volumes de suas novelas, encadernados em vermelho, na edição de Piper, brilhavam em todas as escrivaninhas. As cartas de Van Gogh e Ou isto ou aquilo de Kierkegaard, que ele contrapunha a Hegel, nos fascinavam e por trás de todas as audácias e os riscos de nosso compromisso existencial aparecia — como uma ameaça ainda apenas visível ao tradicionalismo romântico de nossa cultura educativa — a figura gigante de Friedrich Nietzsche com sua crítica extática a tudo, também a todas as ilusões da autoconsciência. Onde estava o pensador cuja força filosófica poderia fazer frente a esses desafios? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp, se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica “fenomenologia”. Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela “historia dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Um dos estudiosos alemães de Platão mais relevantes de então era Julius Stenzel, cujos trabalhos apontavam na mesma direção; frente às aporias da autoconsciência em que se viam implicados tanto o idealismo como seus críticos, ele percebia nos gregos a “contenção da subjetividade”. Mesmo antes que Heidegger começasse a ensinar-me, pareceu-me também que a enigmática superioridade dos gregos consistia em entregar-se ao movimento do pensar em uma total inocência e esquecendo de si mesmos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências “da compreensão” como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da “compreensão”, formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de “hermenêutica da facticidade”, a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à “guinada” do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis [496] metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Parece-me evidente que o retorno à dialógica originária do homem com o mundo é inevitável. É isso que se dá também quando se exige uma explicação última ou uma “fundamentação última” ou quando se ensina uma “auto-realização do espírito”. Assim, foi preciso retomar o caminho do pensamento hegeliano. Heidegger descortinou o pano de fundo da tradição da metafísica e na dissolução dialética dos conceitos tradicionais de Hegel em sua Ciência da lógica viu o mais radical seguimento aos gregos. Mas a sua “destruição” da metafísica não despojou o sentido dessa ciência da lógica. Invocou-se especialmente a sutil superação especulativa da subjetividade do espírito subjetivo por parte de Hegel, e isso aparece como uma via própria de solução frente ao subjetivismo moderno. Não havia aqui a mesma intenção presente no afastamento de Heidegger com relação à autoconcepção transcendental, afastamento empreendido pela ideia da “guinada”? Não foi também intenção de Hegel deixar de orientar-se pela autoconsciência, superando assim a divisão sujeito-objeto própria da filosofia da consciência? Ou será que existem outras diferenças? A orientação na universalidade da linguagem, o assentamento no caráter de linguagem de nosso acesso ao mundo, que compartilhamos com Heidegger, significariam um passo além de Hegel, um passo por detrás de Hegel? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.