Gadamer (VM): almas

A fórmula de Droysen para o conhecimento histórico é, pois, “compreender investigando” (§ 8). Nisso se oculta tanto uma mediação infinita como uma imediatez última. O conceito da investigação, que Droysen vincula, aqui numa cunhagem tão significativa, com o do compreender, deve marcar a infinitude da tarefa que separa o historiador tão profundamente das perfeições da criação artística, como da perfeita sintonia que instauram a simpatia e o amor entre o eu e o tu. Somente investigando a tradição até o fim e “sem descanso”, descobrindo sempre novas fontes e reinterpretando-as sem cessar, a investigação vai se aproximando pouco a pouco da “ideia”. Isso soa como um apoiar-se no procedimento das ciências da natureza e como uma antecipação da interpretação neokantiana da “coisa em si”, como “tarefa infinita”. Porém, observando-se mais de perto, descobrir-se-á que nisso há algo mais. A fórmula de Droysen não delimita o fazer do historiador somente face à idealidade total da arte e face à comunhão íntima das almas, mas também, ao que parece, face ao procedimento das ciências da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Entretanto, nos vemos obrigados a indagar se essa é uma maneira adequada de entender o movimento circular da compreensão. Teremos de nos reportar aqui ao resultado de nossa análise hermenêutica de Schleiermacher. O que este desenvolve sob o nome de interpretação subjetiva pode muito bem ser deixado de lado. Quando procuramos entender um texto, não nos deslocamos até a constituição psíquica do autor, mas, se quisermos falar de deslocar-se, o fazemos tendo em vista a perspectiva sob a qual o outro ganhou a sua própria opinião. E isso não quer dizer outra coisa, senão que procuramos fazer valer o direito objetivo do que o outro diz. Quando procuramos entender, fazemos inclusive o possível para reforçar os seus próprios argumentos. Isso acontece já na conversação. Mas onde se torna mais patente é na compreensão do escrito. Aqui nos movemos numa dimensão de sentido que é compreensível em si mesma e que, como tal, não motiva um retrocesso à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica explicar esse milagre da compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das almas, mas uma participação num sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A relação entre alma e corpo, como é pensada nesse tipo de teorias, por exemplo, na filosofia platônico-pitagórica, e a que corresponde a ideia religiosa da transmigração das almas, instaura, antes, a completa alteridade da alma em relação ao corpo. A alma retém em todas as corporalizações seu ser para si, e a liberação do corpo é para ela purificação, isto é, reconstrução de seu ser verdadeiro e autêntico. Também a manifestação do divino na forma humana, que torna tão humana a religião grega, nada tem a ver com a encarnação. Ali, Deus não se torna homem, mas se mostra aos homens em forma humana, mantendo ao mesmo tempo, por inteiro e absolutamente, toda sua divindade supra-humana. Frente a isso, o Deus feito homem, como ensina a religião cristã, implica o sacrifício que assume o crucificado como filho do homem, e implica, com isso, uma relação misteriosamente diferente, cuja interpretação teológica tem lugar na doutrina da trindade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a ideia do bem e a ideia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a ideia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de Aristóteles sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A questão que fica, porém, é se assim o movimento circular da compreensão foi compreendido adequadamente. Pode-se deixar de lado aquilo que Schleiermacher desenvolveu como interpretação subjetiva. Quando procuramos compreender um texto, não nos transferimos para a estrutura espiritual do autor, mas desde que se possa falar de transferência, transferimo-nos para seu pensamento. Isso significa, porém, que procuramos deixar e fazer valer o direito objetivo daquilo que o outro diz. Se quisermos compreender, buscaremos reforçar ainda mais seus argumentos. Na conversação e ainda mais na compreensão do escrito movemo-nos numa dimensão de sentido compreensível em si mesmo que como tal não motiva nenhum retorno à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A função que o diálogo exerce entre os homens é, porém, muito diversificada. Certa vez, pude observar uma delegação militar de oficiais finlandeses sentados ao redor de uma grande mesa redonda num hotel de Berlim, silenciosos e concentrados. Parecia que entre cada um deles e seu vizinho estendia-se a vasta tundra da paisagem de suas almas como se representasse uma distância insuperável. Qual o viajante dos países nórdicos que não se mostra admirado do constante rebuliço sonoro das conversas travadas nos mercados e praças dos países meridionais, por exemplo, Espanha ou Itália?! Mas quem sabe não devêssemos considerar o primeiro exemplo como falta de disposição para o diálogo e o segundo como uma capacitação para tal. Pois pode ser que o diálogo seja algo [208] bem diferente do que o tipo estilo de intercâmbio travado nos sons ruidosos da vida social. Na queixa de incapacidade para o diálogo não é isso que está em questão. O diálogo precisa ser compreendido em sentido bem mais ambicioso. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.

A primeira história da retórica foi escrita por Aristóteles. Restaram-nos apenas fragmentos. Aristóteles fez suas formulações, porém, seguindo um esquema projetado primeiramente por Platão. Por trás de todas as pseudo-reivindicações que faziam os retóricos de seu tempo, Platão descobriu uma tarefa autêntica, que apenas o filósofo, o dialético está em condições de resolver, a saber, dominar de tal modo o discurso que deve produzir evidências efetivas que os argumentos adequados a cada caso devem se aproximar daqueles que a alma é especificamente capaz de receber. Isso representa uma tarefa teoricamente esclarecedora, que implica, no entanto, dois pressupostos platônicos: o primeiro que só poderá encontrar [235] com segurança o pseudos “verossímil” do argumento retórico aquele que conhece a verdade, isto é, as ideias; e o segundo é que precisa conhecer na mesma proporção também as almas que deve influenciar. A retórica aristotélica é primeiramente uma elaboração do último tema. Nela realiza-se a teoria da adequação do discurso à alma, formulada por Platão no Fedro, na forma de uma fundamentação antropológica da arte do discurso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Em sua argumentação, Flacius reservou prudentemente a leitura da Bíblia aos periti. Trata-se sem dúvida de um hábito herdado do humanismo. Mas isso não impede que o postulado da Reforma, que busca possibilitar a todos a leitura da Bíblia, tenha sido o mesmo que estava na base do desenvolvimento da hermenêutica (a hermenêutica jurídica, por outro lado, nunca passou de uma disciplina profissional). É precisamente isso o que coloca em destaque sua afinidade com a retórica. Também a retórica é mais do que um assunto reservado aos especialistas. Embora se utilize de recursos técnicos especiais, passíveis de serem aprendidos, no fundo a arte de falar não deixa de ser uma capacidade natural do ser humano, assim como a arte de compreender. O uso da palavra “hermenêutica” que se faz na linguagem, como no caso da retórica, é uma confirmação disso. No século XVIII e inclusive no século XIX dizia-se que quem é capaz de compreender e abordar os outros — o pastor de almas, por exemplo — , domina a “hermenêutica”, quer dizer, a arte de compreender as outras pessoas e de se fazer compreender por elas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Decerto, a ideia aristotélica de uma filosofia prática não sobreviveu em sua globalidade, mas apenas em seu aspecto político. A filosofia prática política foi se aproximando do conceito de uma técnica ao pretender oferecer uma espécie de competência de base filosófica ao serviço da razão legisladora. Esse esquema pôde integrar-se ainda, durante um período, no pensamento científico da época moderna. A filosofia moral grega, ao contrário, marcou a posteridade e sobretudo a Idade Moderna não tanto em sua forma aristotélica mas em sua versão estóica. Mesmo assim, a retórica de Aristóteles exerceu pouca influência na tradição da retórica antiga. Para os mestres da retórica e como guia para uma oratória perfeita era demasiado filosófica. Mas justamente em virtude de seu “caráter filosófico”, que a associava, como disse Aristóteles, à dialética e à ética (peri ta ethe pragmateia, Thet. 1356 a26), encontrou seu novo momento na época do humanismo e da Reforma. Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores e sobretudo Melanchton fizeram da retórica aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui confluíram duas correntes: A nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da imprensa, e a virada teológica da Reforma frente à tradição e na direção do princípio bíblico. O lugar central da Sagrada Escritura para o anúncio do Evangelho determinou sua tradução para as línguas vernáculas, e também a doutrina do sacerdócio geral suscitou um uso da Escritura que precisava de uma nova direção. Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem dispunham de preleções discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de almas, nem na do literato. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

É claro que não basta distinguir entre a fundamentação teórica da interpretação e uma dimensão de sua aplicação prática. A hermenêutica como “arte” pertence ao âmbito da scientia practica, e a questão é saber se scientia practica significa a mera aplicação da ciência à praxis, como pressupõe Husserl quando refuta a tradução das leis lógicas a normas artificiais do reto pensar, mostrando seu sentido teórico fundamental. Tanto a ciência que busca o ente perene e o ente que é a partir de si mesmo quanto a arte cujo saber trata do elemento produtivo e criador têm o caráter específico do saber que é decisivo para a scientia practica e seus representantes modernos, a “razão prática”, e cujo caráter normativo não é de natureza teórica nem técnica. Isso fica claro no plano da hermenêutica jurídica, onde a busca da sentença justa não é uma mera subsunção do caso particular no caso geral (as cláusulas da lei). A busca das “cláusulas” corretas repousa, antes, numa decisão própria criativa, complementaria ou aperfeiçoadora do direito. Algo parecido pode-se dizer da missão querigmática do pastor de almas: a bagagem teológica não lhe basta para exercer o ministério. Seria um erro, no entanto, crer que essas decisões, que a ciência teórica não pode arrebatar ao juiz ou ao pastor de almas, estejam à mercê de determinações irracionais. É preciso definir mais exatamente o que significa a razão em tais decisões. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.