Daí procede a muito marcante consciência que possui a filosofia dos nossos dias. Mas há uma outra pergunta, bem diferente: até que ponto a reivindicação da verdade de tais formas de conhecimento, situadas fora do âmbito da ciência, podem ser filosoficamente legitimadas? A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, ao meu ver, no fato de que apenas um aprofundamento no fenômeno da compreensão pode trazer uma tal legitimação. Não foi apenas em última instância que essa convicção veio a se fortalecer em mim, devido à importância que a história da filosofia possui no trabalho filosófico da atualidade. Diante da tradição histórica da filosofia, a compreensão se nos depara como uma experiência meditada, que nos deixa distinguir facilmente o que há de aparente no método histórico que paira sobre a pesquisa filosófica e a histórica. Faz parte da elementar experiência do filosofar, que os clássicos do pensamento filosófico, sempre que procuramos entendê-los, façam valer, de si mesmos, uma reivindicação de verdade que não pode ser rejeitada nem sobrepujada pela consciência contemporânea. A ingênua consciência da dignidade própria da atualidade até pode se rebelar contra o fato de que a consciência filosófica admite que seu próprio ponto de vista filosófico seja o de um Platão ou ARISTÓTELES, de um Leibniz, Kant ou Hegel, em contraposição a de outros de menor categoria. Pode-se considerar uma fraqueza do filosofar atual, que se dedique à interpretação e à compilação de sua tradição clássica, confessando sua própria fraqueza. No entanto, há uma fraqueza bem maior do pensamento filosófico, quando alguém não se submete a uma tal prova e prefere fazer o papel de tolo por conta própria. E preciso que a gente admita que na compreensão dos textos desses grandes pensadores se reconhece a verdade, que não seria acessível por outros meios, ainda que isso contradiga o padrão de pesquisa e de progresso com que a ciência mensura a si própria. VERDADE E MÉTODO Introdução
Assim, como se sabe, esse ideal foi proclamado na antiguidade tanto pelos professores de filosofia como pelos de retórica. A retórica encontrava-se há muito tempo em luta com a filosofia e era sua a reivindicação de transmitir, ao contrário das ociosas especulações dos “sofistas”, a verdadeira sabedoria de vida. Vico, que era ele mesmo professor de retórica, encontra-se, aqui, portanto, em meio a uma tradição humanística procedente da antiguidade. Certamente essa tradição também é de impôftância para o que há de evidente nas ciências do espírito e, especialmente, a positiva ambiguidade do ideal retórico, que não somente surge sob o veredicto de Platão, mas também, da mesma forma, sob o veredicto do metodologismo anti-retórico da modernidade. Desse ponto de vista, muita coisa do que nos irá ocupar já ressoa em Vico. Seu apelo ao sensus communis abrange, porém, além do momento retórico, ainda um outro momento da antiga tradição. É o antagonismo entre o acadêmico e o sábio, sobre o qual ele se apoia; um antagonismo que encontrou a sua primeira configuração na imagem cínica de Sócrates que possui seu fundamento objetivo no antagonismo conceitual entre sophia e de phronesis, que foi elaborado pela primeira vez por ARISTÓTELES, que nos Peripatéticos foi desenvolvido como uma crítica do ideal teórico de vida e que co-determinou, na época helenística, a imagem do sábio, principalmente depois que o ideal de formação grega se tinha fundido com a autoconsciência da liderança política romana. Também a ciência jurídica romana, no seu período tardio, p. ex., instala-se, como se sabe, apoiada no pano de fundo da arte jurídica e da prática jurídica, que se envolve mais com o ideal prático da phronesis do que com o ideal teórico da sophia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essas disposições de Vico mostram-se apologéticas. Reconhecem indiretamente o novo conceito de verdade da ciência, tão-somente ao defender o direito do provável. Como já vimos, Vico está acompanhando com isso a antiga tradição retórica, que recua já a Platão. O que Vico quer dizer vai, porém, além da defesa da peitho retórica. De acordo com a questão em pauta, e como já o dissemos, aqui atua o antigo antagonismo aristotélico do saber prático e do teórico, um antagonismo que não se deixa reduzir ao antagonismo do que é verdadeiro e do que é provável. O saber prático, a phronesis, é uma outra forma de saber. De início, significa o seguinte: encontra-se dirigida à situação concreta. Terá pois de abranger as circunstâncias em sua infinita variedade. É isso também que Vico salienta expressamente. Sem dúvida, o que unicamente lhe chama a atenção é que esse saber se subtrai ao conceito racional do saber. No entanto, e na verdade, não se trata de um mero ideal de resignação. O antagonismo aristotélico significa ainda algo bem diferente do que apenas o antagonismo entre o saber baseado em princípios universais e o saber do concreto. Também não significa a capacidade de subsunção do particular pelo universal, que denominamos “força do juízo”. O que atua aí é, muito mais, um motivo ético, positivo, que também existe na doutrina romano-estoica do sensus communis. A compreensão e o domínio moral da situação concreta exige uma tal subsunção do dado sob o universal, ou seja, o fim que se persegue para que daí resulte o correto. Pressupõe, portanto, um direcionamento da vontade, isto é, um ser moral (hexis). Daí que, segundo ARISTÓTELES, a phronesis é uma “virtude espiritual”. Não vê nela simplesmente uma capacidade (dynamis), mas uma determinação do ser moral, que não pode existir sem o conjunto das “virtudes éticas”, como, ao contrário, estas não podem existir sem aquela. Embora essa virtude, ao ser exercitada, faça que se diferencie o factível do infactível, ela não é simplesmente uma inteligência prática e uma engenhosidade universal. O seu diferenciar entre o factível e o infactível abrange também a diferenciação entre o conveniente e o inconveniente e, assim, pressupõe uma atitude moral, que, por sua vez, aperfeiçoa-o. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É esse motivo que ARISTÓTELES desenvolveu contra a “ideia do bem” de Platão, à qual alude, nessa questão, o apelo de Vico ao sensus communis. Na escolástica, p. ex., para St. Tomás — em desenvolvendo o De anima — o sensus communis é a raiz comum do sentido exterior, ou ainda, a faculdade que combina, a qual julga o dado, uma capacidade que foi concedida a todos os homens. Para Vico, não obstante, o sensus communis é um sentido para a justiça e o bem comum, que vive. em todos os homens, e até, mais do que isso, um sentido que é adquirido através da vida em comum, e determinado pelas ordenações e fins. Esse conceito tem um tom de justiça natural como as koinai ennoiai da Stoa. Mas o sensus communis não é, nesse sentido, um conceito grego e não tem, de forma alguma, o significado de koine dynamis, de que fala ARISTÓTELES no De anima, quando procura ajustar a doutrina dos sentidos específicos (aisthesis idia) com o achado fenomenológico, que mostra toda percepção como uma diferenciação e uma opinião de um universal. Vico recorre, antes, ao antigo conceito romano do sensus communis, como o conhecem em especial os clássicos romanos, que, em contraposição à formação grega, ancoram-se no valor e no sentido de suas próprias tradições da vida civil e social. E pois um tom crítico, um tom contra a especulação teórica dos filósofos que já se pode ouvir no conceito romano de sensus communis e que Vico faz soar, a partir de seu front de batalha, que ele agora modifica e direciona contra a ciência moderna (a crítica). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Também isso foi formulado de modo suficientemente negativo. Nós iremos ver, no entanto, que em todas essas versões, permanece atuante a maneira de ser do saber moral, reconhecida por ARISTÓTELES. A lembrança disso torna-se importante para perceber adequadamente o que há de evidente nas ciencias do espirito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Esse é um componente humanístico e com isso, ao cabo, um componente grego, que se torna atuante no âmbito da filosofía moral, determinado pelo cristianismo. A ética da mesotes, que ARISTÓTELES criou — é, num sentido profundo e abrangente, uma ética do bom gosto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
De fato, fazemos bem em nos lembrar de ARISTÓTELES. Foi quem demonstrou que toda aisthesis se dirige a um universal, mesmo quando acontece que cada sentido tem seu campo específico e que nele o que é dado de imediato não é, enquanto tal, universal. Mas a percepção específica de uma situação dada dos sentidos é, como tal, uma abstração. Na verdade, vemos o que, sensorialmente, nos é dado perceber individualizadamente, sempre em relação a um universal. Reconhecemos, p. ex., um fenômeno branco como um ser humano. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É certo que se pode diferenciar do próprio jogo o comportamento do jogador, que, como tal, se integra com outros modos de comportamento da subjetividade. Assim, por exemplo, pode-se dizer que, para quem joga, o jogo não é uma questão séria, e que é por isso mesmo que se joga. Podemos, a partir disso, procurar determinar o conceito do jogo. O que é mero jogo não é sério. O jogar possui uma relação de ser própria para com o que é sério. Não apenas porque nisso se encontra sua “finalidade”. Joga-se “por uma questão de recreação”, como diz ARISTÓTELES. O que é importante é que se coloque no próprio jogo uma seriedade própria, até mesmo sagrada. E, não obstante, não desaparecem simplesmente no comportamento lúdico todas as relações-fins, que determinam a existência (Dasein) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em suspenso. Aquele que joga sabe, ele mesmo, que o jogo é somente jogo, e que se encontra num mundo que é determinado pela seriedade dos fins. Mas isso não sabe na forma pela qual ele, como jogador, ainda imaginava essa relação com a seriedade. Somente então é que o jogar preenche a finalidade que tem, quando aquele que joga entra no jogo. Não é a relação que, a partir do jogo, de dentro para (108) fora, aponta para a seriedade, mas é apenas a seriedade que há no jogo que permite que o jogo seja inteiramente um jogo. Quem não leva a sério o jogo é um desmancha-prazeres. O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito bem o que é o jogo e que o que está fazendo é “apenas um jogo”, mas não sabe o que ele “sabe” nisso. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O conceito da imitação, porém, só consegue descrever o jogo da arte, se não se perder de vista o sentido do conhecimento, que se encontra na imitação. Aí, encontra-se o que é representado — é a relação mímica originária. Quem imita alguma coisa deixa isso ser aí o que ele conhece e como o conhece. E imitando que a criança começa a brincar, fazendo o que (119) conhece e confirmando assim a si mesma. Também o prazer com que as crianças se fantasiam, a respeito do que já se manifesta ARISTÓTELES, não pretende ser um esconder-se, uma simulação, a fim de que se adivinhe e se reconheça quem está por trás disso, mas, ao contrário, um representar, de tal modo que apenas o representado é. Por nada desse mundo a criança vai querer ser adivinhada por trás de sua fantasia. O que ela representa deve ser, e se há algo que deva ser adivinhado, é exatamente isso. Terá de ser reconhecido o que ali “está”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Dessa ponderação há algo a fixar: O sentido do conhecimento da mimesis é reconhecimento. Mas o que vem a ser reconhecimento? Apenas uma análise mais exata do fenômeno é o que nos tornará bem evidente o sentido do ser da representação, que é o que nos importa. É conhecido o fato de que já ARISTÓTELES destaca que a representação artística faz parecer agradável até mesmo o que é desagradável, e por essa razão, Kant define a arte como a bela representação (Vorstellung) de uma coisa, porque a arte sabe fazer parecer belo também o que é feio. Com isso, é claro, não se está aludindo, por exemplo, à artificialidade e habilidade (Kunstfertigkeit) como tais. Não costumamos admirar, como no caso dos artistas acrobatas do circo, a arte com que se faz alguma coisa. A isso dedicamos apenas um interesse secundário, como diz expressamente ARISTÓTELES. O que propriamente experimentamos numa obra de arte e para onde dirigimos nosso interesse é, antes, quão verdadeira ela é, isto é, em que medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Até se pode dizer mais do que isso: A representação da essência é tampouco uma mera imitação, que é necessariamente demonstrativa. Quem imita tem de deixar algo fora ou realçar algo. Porque ele mostra, queira ou não, terá de exagerar. Tendo isso em vista, existe uma distância de ser intransponível entre o ente que “é assim como” e aquele ao qual ele quer se igualar. Sabe-se que Platão insistiu nesse distanciamento ontológico, no mais ou no menos de desvantagem da cópia em relação ao modelo originário, e a partir daí, relegou à terceira categoria a imitação e a representação no jogo da arte, tidas como uma imitação da imitação. Não obstante, é o reconhecimento que está em obra na representação da arte, o qual possui o caráter de um genuíno conhecimento da essência e é justamente através do fato de que Platão entende todo conhecimento da essência como reconhecimento, que isso está objetivamente fundamentado: ARISTÓTELES pôde denominar a poesia como mais filosófica do que a história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A dependência do ser estético quanto à representação não significa, pois, uma carência ou uma falta de autodeterminidade autônoma. É parte integrante de seu ser próprio. O espectador é um momento da essência do próprio espetáculo, que denominamos de estético. Lembramos aqui da famosa definição da tragédia que encontramos na Poética de ARISTÓTELES. Ali, na definição da essência da tragédia, está co-incluída expressamente a disposição do espectador. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que se espelha na reflexão sobre o trágico que se estende de ARISTÓTELES até o presente, certamente não é uma essência imutável. Não há dúvida de que a essência do trágico é representada na tragédia ática de uma forma única — diferentemente para ARISTÓTELES, para quem Eurípedes foi “o mais trágico”, e diferentemente para aquele a quem, por exemplo, Ésquilo revela a verdadeira profundidade do fenômeno trágico — mas sobretudo diferente para quem pensa em Shakespeare ou Hebel. No entanto, uma tal mudança não significa simplesmente que a questão pela essência unitária do trágico tornar-se-ia infundada, mas, ao contrário, que o fenômeno se apresenta no seu aspecto, concentrado numa unidade histórica. O reflexo do trágico-antigo no trágico-moderno, de que fala Kierkegaard, tem estado permanentemente presente em todas as recentes ponderações sobre o trágico. Se começarmos por ARISTÓTELES, vamos ter sob os olhos a totalidade do fenômeno.trágico. Na sua famosa definição da tragédia, ARISTÓTELES deu uma indicação decisiva para o problema da estética, tal qual o começamos a expor; isso porque acolheu o efeito sobre o espectador na determinação da essência da tragédia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Agora experimentamos, através de ARISTÓTELES, que a representação da ação trágica causa um efeito específico no espectador. A representação atua através de eleos e phobos. A tradução tradicional dessas afecções por “compaixão” e “temor” deixa transparecer uma tonalidade demasiadamente subjetiva. Consoante ARISTÓTELES, não se trata, de modo algum, de compaixão e nem mesmo de avaliação da compaixão, feita cada vez diferente durante esses séculos, e muito menos ainda se pode entender o temor como um estado de ânimo da interioridade. Ambas são, antes, ocorrências que surpreendem e arrastam consigo os homens. Eleos é a desolação (Jammer) que advém a alguém em face daquilo que denominamos de desolador. É assim que o destino de Édipo desola alguém (o exemplo que ARISTÓTELES sempre tem diante dos olhos). A palavra alemã Jammer (desolação) vem a ser um bom equivalente, pelo motivo de que não significa uma mera interioridade, mas também, a sua expressão. Correspondentemente, Phobos não é apenas um estado de ânimo, mas, como diz ARISTÓTELES, uma ducha fria, a ponto de deixar congelado o sangue e a pessoa, vítima de um calafrio. Na maneira especial com que aqui, dentro da característica da tragédia, se fala de Phobos em vinculação com Eleos, Phobos significa o espanto de tremor que se apossa de quem estamos vendo ir, às pressas, de encontro à sua ruína, e por esse alguém trememos. A desolação e o tremor são formas de êxtase, do estar-fora-de-si, que atestam o desterro daquilo que se desenrola diante de alguém. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Diz-se dessas afecções de que trata ARISTÓTELES, que é através delas que o espetáculo teatral proporciona a purificação de paixões desse gênero. Como se sabe, essa tradução é discutível e, sobretudo, o sentido do genitivo. Mas a questão a que se refere ARISTÓTELES parece-me inteiramente independente disto, e seu conhecimento tem de, no final, tornar-se compreensível, (136) porque duas concepções gramaticalmente tão diferentes podem contrapor-se tão tenazmente uma à outra. Parece-me claro que ARISTÓTELES se refere à melancolia trágica que se assenhora do espectador à vista de uma tragédia. A melancolia, porém, é uma espécie de alívio e de solução, em que a dor e o prazer estão misturados de uma forma singular. Como é que, então, ARISTÓTELES pode denominar esse estado de purificação? Qual é a impureza que adere às afecções, ou que são elas próprias, e como é que isso é expulso pela comoção? Parece-me que a resposta encontra-se no seguinte: o ser-assolado pela desolação e pelo calafrio representa uma bifurcação dolorosa. Há nisso uma desunião com o que acontece, um não-querer-ter-por-verdadeiro, que se rebela contra o horrendo acontecimento. No entanto, é justamente este o efeito da catástrofe trágica, isto é, que se dissolve a bifurcação com o que é. Deste modo, produz uma libertação universal do peito confrangido. Não somente nos livramos do desterro em que o que é desolador e espantoso desse destino único nos mantém presos, mas também, conciliados com isso, estamos livres de tudo que nos divide daquilo que é. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Mas qual é o objeto propriamente dito dessa afirmação? O que é que ai se está afirmando? Não, certamente, a justiça de uma ordem ética mundial. A mal-afamada teoria trágica da culpa, que para ARISTÓTELES quase não desempenha papel algum, não é um esclarecimento adequado nem mesmo para a tragédia moderna. Pois a tragédia não ocorre onde a culpa e o pecado correspondam uma à outra como que numa medição justa, onde surge uma conta ética de débito, sem nenhum resto. Mesmo na tragédia moderna, não pode nem deve haver completa subjetivação da culpa e do destino. Antes, o excesso de consequências trágicas é algo característico para a natureza do trágico. Apesar de toda a subjetividade do endividamento, continua atuante, mesmo na tragédia moderna, um momento daquela antiga supremacia do destino, tida como igual para todos. Parece que somente Hebel se encontra na fronteira daquilo que ainda podemos chamar de tragédia, tal qual a exatidão com que o ser culpado subjetivo está adequado ao desenvolvimento do acontecimento trágico. Por essa mesma razão, também o pensamento de uma tragédia cristã tem sua própria questionabilidade, já que, à luz da história da salvação divina, as dimensões de felicidade e infelicidade, constitutivas para a ocorrência trágica, não determinam mais o destino humano. Mesmo a engenhosa confrontação que Kierkegaard fez do sofrimento na antiguidade, que é consequente de uma maldição que paira sobre uma estirpe, em contraste com a dor, que despedaça a consciência, desunida consigo mesma e posta em conflito, toca de leve a fronteira do trágico como tal. Sua reformulação do Antígona já não seria mais uma tragédia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Desta análise do trágico não extraímos apenas o fato de que aqui se trata de um conceito fundamental da estética, na medida em que o distanciamento do ser do espectador pertence à essência do trágico — mais importante é que o distanciamento do ser do espectador, que determina o modo de ser do estético, não contém algo como a “diferenciação estética”, que tínhamos reconhecido como o traço essencial da consciência estética. O espectador não se comporta no distanciamento da consciência, que usufrui da arte da representação, mas sim na comunhão do tomar parte (Dabeisein). O genuíno centro de gravidade do fenômeno trágico reside, ao cabo, naquilo que está sendo representado e reconhecido e no qual, obviamente, a participação não pode ser aleatória. Por mais que o espetáculo teatral trágico, que é encenado solenemente no teatro, represente uma situação de exceção na vida de cada um, não é, certamente, como uma vivência aventuresca e não produz uma embriaguez de perplexidade, da qual redespertamos para o nosso verdadeiro ser, más a elevação e a comoção que se (138) apossam do espectador aprofundam, na verdade, sua continuidade consigo mesmo. A nostalgia trágica provém do autoconhecimento com que é contemplado o espectador. Reencontra-se a si mesmo na situação trágica, porque é seu próprio mundo, conhecido a partir da tradição religiosa ou histórica, que assim vem ao seu encontro, e ainda que para uma tomada de consciência posterior — certamente já a de ARISTÓTELES, mais ainda a de Sêneca ou de Corneille — essa tradição já não possua mais caráter obrigatório, na atuação subsequente de tais obras e temas trágicos, encontra-se mais do que a manutenção da validade de um modelo literário. Não pressupõe apenas que o espectador ainda esteja familiarizado com a saga, inclui também o fato de que sua linguagem ainda o alcance realmente. Somente assim o encontro com tais temas e com tais obras trágicas poderá se tornar um auto-encontro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que me parece característico, porém, é que são sobretudo as determinações conceituais clássicas do belo, que o teórico do “quadro” mobiliza aqui. Que o belo é de tal modo, que nada se pode tirar e nem acrescentar, sem que com isso venha a ser imediatamente destruído, enquanto tal é uma coisa que ARISTÓTELES já sabia, para quem certamente não existia o quadro, no sentido que lhe empresta Alberti. Isso indica que o conceito do “quadro” pode ter realmente um sentido universal, que não se limita apenas a uma determinada fase da história do quadro. Mesmo a miniatura otônica ou o ícone bizantino é, num sentido mais amplo, um quadro, ainda que, nesses casos, a configuração do quadro siga princípios bem diferentes, podendo ser caracterizada pelo conceito de “signo pictorial” (Bildzeinchen). No mesmo sentido, o conceito estético de quadro terá de co-abranger sempre também a escultura, contada entre as artes plásticas. Isso não é nenhuma generalização arbitrária, mas corresponde a uma problemática da estética filosófica, tornada histórica, que retrocede ao cabo, ao papel do quadro (imagem) no platonismo e que se sedimenta no uso linguístico da palavra quadro (imagem). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A própria formulação de Ranke ganha com isso um perfil histórico universal, um perfil dentro da história universal do pensamento e da filosofia. Nesse mesmo contexto, o próprio Platão já havia enfocado, pela primeira vez, a estrutura reflexiva (210) da dynamis, tornando possível a sua transposição à essência da alma, que ARISTÓTELES empreendeu da teoria das dynameis, as potências da alma. A força é, segundo sua essência ontológica, “interioridade”. Nesse sentido é absolutamente correto que Ranke escreva: “A liberdade se associa à força”. Pois a força, que é mais que a sua exteriorização, já é sempre liberdade. Sabe que tudo poderia ter sido diferente, que cada indivíduo que atua teria podido também atuar de outra maneira. A força que faz história não é um momento mecânico. Para evitar isso, Ranke fala expressamente de “uma força original”, e da “fonte primeira e comum de todo fazer e deixar de fazer humano” — e isto é para Ranke a liberdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Para nos aproximarmos deste problema procuraremos agora desenvolver, numa forma positiva, a teoria acima apresentada dos preconceitos que o Aufklärung elaborou a partir de um propósito crítico. No que se refere imediatamente à divisão dos preconceitos em preconceitos de autoridade e por precipitação, é claro que na base dessa distinção encontra-se a premissa fundamental do Aufklärung, segundo a qual um uso metódico e disciplinado da razão é suficiente para nos proteger de qualquer erro. Esta é a ideia cartesiana do método. A precipitação é a verdadeira fonte de equívocos que induz ao erro no uso da própria razão. A autoridade, pelo contrário, é a culpada de que nós não façamos uso da própria razão. A distinção se baseia, portanto, numa oposição excludente de autoridade e razão. O que é digno de se combater é a falsa e prévia aceitação do antigo, das autoridades. O Aufklärung considera, por exemplo, que o grande feito reformador de Lutero consiste em que “o preconceito do respeito humano, especialmente o filosófico (referindo-se a ARISTÓTELES) e o respeito ao papado romano, ficou profundamente debilitado…” A reforma proporciona, assim, o florescimento da hermenêutica que deve ensinar a usar corretamente a razão na compreensão da tradição. Nem a autoridade do magistério papal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda imposição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como ARISTÓTELES mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada (304) pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
2.2.2. A atualidade hermenêutica de ARISTÓTELES (317) VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Nesse ponto de nossa investigação impõe-se um contexto problemático que já apontamos em mais de uma ocasião. Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida cada vez de uma maneira diferente, então — visto sob o ponto de vista lógico — trata-se da relação entre o geral e o particular. Compreender é então um caso especial da aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade que ARISTÓTELES não aborda o problema hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética. Mas é precisamente isto que nos interessa aqui, que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser. Através de sua limitação do intelectualismo socrático-platônico na questão do bem, ARISTÓTELES funda, como se sabe, a ética como disciplina autônoma frente à metafísica. Criticando como uma generalidade vazia a ideia platônica do bem, contrapõe-lhe a questão pelo humanamente bom, aquilo que é bom para o ser humano . Na linha dessa crítica, torna-se exagerado equiparar virtude e saber, arete e logos, como ocorria na teoria socrático-platônica das virtudes. ARISTÓTELES recoloca-os na sua verdadeira medida, mostrando que o elemento que sustenta o saber ético do homem é a orexis, a “ambição”, e sua elaboração em uma atitude firme (hexis). O conceito da ética carrega já no seu nome a relação com essa fundamentação aristotélica da arete, no exercício e no ethos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O conjunto da ética humana se distingue essencialmente da natureza através do fato de que nela não atuam simplesmente capacidades ou forças, mas pelo fato de que o homem vem a ser tal como veio a ser, somente através do que faz e de como (318) se comporta, isto significa, porém: sendo assim, se comporta de uma maneira. ARISTÓTELES opõe o ethos à physis, como sendo um âmbito, no qual não é que não seja comandado por regras, mas que não conhece as leis da natureza, a não ser a mutabilidade e regularidade limitada das posturas humanas e de suas formas de comportamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O atual problema é o de saber como pode se dar um saber filosófico sobre o ser moral do homem. Se o que é bom só aparece na concreção da situação prática em que ele se encontra, então o saber ético deve oferecer, para se haver com a situação concreta, o que é que esta exige dele ou, dito de outro modo, aquele que atua deve ver a situação concreta à luz do que se exige dele em geral. Negativamente isto significa que um saber geral que não saiba aplicar-se à situação concreta permanece sem sentido, e até ameaça obscurecer as exigências concretas que emanam de uma determinada situação. Esta conjuntura, que expressa a própria essência da reflexão ética, não somente converte uma ética filosófica em um problema metódico difícil, mas ao mesmo tempo dá relevância moral ao problema do método. Face à ideia do bem, determinada pela teoria platônica das ideias, ARISTÓTELES enfatiza o fato de que, no terreno do problema ético não se pode falar de uma exatidão, de nível máximo, como a que fornece o matemático. Esse requisito de exatidão, na verdade, estaria fora de lugar. Aqui se trata tão-somente de tornar visível o perfil das coisas e ajudar, de certo modo, a consciência moral com este esboço do mero perfil. Mas o problema de como deve ser possível esta ajuda já é um problema moral. Pois faz parte dos traços essenciais do fenômeno ético, que aquele que atua deve saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada. Portanto, o que não pretenda intrometer-se no lugar da consciência moral, nem tampouco ser um conhecimento moral a esclarecer-se a si mesma graças a esse esclarecimento do perfil dos diversos fenômenos. Naquele que há de receber essa ajuda — o ouvinte da lição aristotélica — isto supõe um montão de coisas. Tem de possuir tanta maturidade existencial, que possa não esperar da indicação que se lhe oferece mais do que esta pode e deve dar. Ou, formulado positivamente: por educação e exercício ele já deve ter desenvolvido uma determinada atitude em si mesmo, e seu empenho constante deve ser mantê-lo ao largo das situações concretas de sua vida e conservá-la (319) através de um comportamento correto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Como vemos, o problema do método está inteiramente determinado pelo objeto — o que constitui um postulado aristotélico geral e fundamental — e, relacionado ao nosso interesse, valerá a pena considerar a relação especial entre ser ético e consciência ética tal como ARISTÓTELES a desenvolve na sua ética. ARISTÓTELES se mantém socrático na medida em que retém o conhecimento como momento essencial do ser ético, e o que nos interessa é justamente o equilíbrio entre a herança socrático-platônica e este momento do ethos a que ele mesmo deu validez. Pois também o problema hermenêutico se aparta evidentemente de um saber puro, separado do ser. Falamos antes da pertença do intérprete com a tradição com a qual se confronta, e víamos na própria compreensão um momento do acontecer. O enorme alheamento que caracteriza a hermenêutica e a historiografia do século XIX, em razão do método objetivador da ciência moderna, nos havia sido apresentado como consequência de uma falsa objetivação. O exemplo da ética aristotélica foi citado para tornar patente e evitar essa objetivação, pois o saber objetivo, isto é, aquele que sabe não está frente a uma constelação de fatos, que ele se limitasse a constatar, pois o que conhece o afeta imediatamente. É algo que ele tem de fazer. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É claro que este não é o saber da ciência. Nesse sentido a limitação de ARISTÓTELES entre o saber ético da phronesis e o saber teórico da episteme é bem simples, sobretudo se se leva em conta que, para os gregos, a ciência, representada pelo paradigma da matemática, é um saber do inalterável, que repousa sobre a demonstração e que, por conseguinte, qualquer um pode aprender. É certo que uma hermenêutica espiritual-científica não poderia aprender nada dessa limitação do saber ético face a um saber como a matemática. Pelo contrário, face a essa ciência “teórica”, as ciências do espírito fazem parte, estritamente, do saber ético. São “ciências morais”. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Este, porém, se sabe a si mesmo como ser que atua, e o saber que, deste modo, tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. Aquele que atua lida, antes, com coisas que nem sempre são como são, pois que (320) podem também ser diferentes. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua situação. Seu saber deve orientar seu fazer. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Aqui está o verdadeiro problema do saber ético de que se ocupa ARISTÓTELES na sua ética. Pois o direcionamento do fazer pelo saber aparece sobretudo, e de maneira exemplar, aí onde os gregos falam de techne. Esta é a habilidade, é o saber do artesão que sabe produzir coisas determinadas. A questão é se saber se o saber moral é também um saber desse tipo. Isto significaria que seria um saber sobre como cada um deve produzir a si mesmo. Deve o homem aprender a tornar-se para si próprio o que deve ser, tal como o artesão aprende a fazer o que, segundo seu plano e vontade, deve ser? Projeta-se o homem a si mesmo sobre o seu próprio eidos, tal como o artesão traz em si o eidos do que quer fabricar e sabe reproduzi-lo no material? Sabe-se que Sócrates e Platão aplicaram de fato o conceito da techne ao conceito do ser humano, e não se pode negar que com isso descobriram algo de verdadeiro. O modelo da techne, pelo menos no âmbito político, tem uma função iminentemente crítica, na medida em que revela a insustentabilidade do que se costuma chamar a arte da política, na qual toda pessoa que faz política, todo cidadão, já se considera experiente. E significativo que o saber do artesão seja o único que Sócrates, na famosa descrição da experiência que faz ante seus concidadãos, reconhece que é um saber real, em seu âmbito. Mas, naturalmente, também os artesãos o decepcionam. O seu saber não é o verdadeiro saber que constitui o homem e o cidadão como tais. Entretanto, é saber real. É uma arte e habilidade real, não somente uma grande acumulação de experiência. E isso coincide evidentemente com o verdadeiro saber ético que Sócrates procura. Ambos são um saber prévio e pretendem determinar e guiar um agir. Têm que conter em si mesmos a aplicação do saber a cada tarefa concreta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Este é o ponto em que se pode relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das modernas ciências do espírito. É verdade que na consciência hermenêutica não se trata de um saber técnico nem ético, porém, essas duas formas do saber contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a techne que se ensina e aquela que se adquire por experiência (321). O saber prévio que alguém possui quando aprendeu um ofício não é necessariamente superior, na praxis, ao que possui um iletrado no assunto, mas muito experimentado. No entanto, ainda que isso seja assim, nem por isso se chamará “teórico” o saber prévio da techne, menos ainda se se leva em conta que a aquisição de experiência aparece por si só no uso desse saber. Pois, como saber, já intenciona sempre à praxis, e ainda que a matéria bruta nem sempre obedeça ao que aprendeu seu ofício, ARISTÓTELES pode citar com razão as palavras do poeta: techne ama tykne, e tykne ama techne. Isso quer dizer que, em geral, o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. O que se adquire adiantadamente na techne é uma autêntica superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber ético. Pois também para este é claro que a experiência nunca pode bastar para uma decisão eticamente correta. Também aqui se exige que a atuação seja guiada previamente pela consciência moral. Nem sequer será possível contentar-se com a relação insegura que há no caso da techne entre o saber prévio e o correspondente êxito final. Pode-se dizer que há uma correspondência real entre a perfeição da consciência ética e a de saber produzir, a da techne, mas, obviamente, não são a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Antes, as diferenças expõem-se de modo franco. É completamente evidente que o homem não dispõe de si mesmo como o artesão dispõe da matéria com a qual trabalha. Não pode produzir-se a si mesmo da mesma forma que pode produzir outras coisas. Por conseguinte, o saber que tenha de si mesmo, em seu ser ético, será diferente e se destacará claramente do saber que guia um determinado produzir. ARISTÓTELES formula essa diferença de um modo audaz e único, chamando a esse saber de saber-se, isto é, um saber para si. Com isso, o saber-se da consciência ética se destaca do saber teórico de um modo que para nós se torna particularmente elucidativo. Nisso está também a delimitação face ao saber técnico, e se ARISTÓTELES arrisca a expressão peculiar do “saber-se”, é com o fim de formular de algum modo essa dupla delimitação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A delimitação face ao saber técnico é a mais difícil se, de acordo com ARISTÓTELES, se determina ontologicamente o “objeto” desse saber, não como algo geral que sempre é como é, mas como algo único que também pode ser de outra maneira. Pois à primeira vista, parece tratar-se de uma tarefa análoga. Aquele (322) que sabe produzir algo, sabe algo bom, e o sabe “para si” de modo que, sempre que se deem as possibilidades correspondentes, ele poderá produzi-lo de fato. Lançará mão do material adequado e elegerá os meios corretos para a realização. Deve saber aplicar à situação concreta o que aprendeu em geral. E o mesmo não vale também no caso da consciência moral? Aquele que deve tomar decisões morais é alguém que já sempre aprendeu algo. Por educação e procedência está determinado, de modo que em geral sabe o que é correto. A tarefa da decisão ética é encontrar o que é adequado na situação concreta, isto é, ver concretamente o que nela é correto e lançar-se a ela. Também ele tem de lançar mão e eleger os meios adequados, e seu agir tem de estar orientado tão sopesado como o do artesão. Como é possível, então, que seja um saber completamente diferente? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Da análise aristotélica da phronesis podemos extrair toda uma série de momentos que oferecem resposta a essa pergunta. Pois a genialidade de ARISTÓTELES está precisamente na quantidade de aspectos que leva em conta ao descrever cada fenômeno. “O empírico, concebido na sua síntese, é o conceito especulativo” (Hegel). Nesse ponto nos contentaremos com alguns aspectos que são significativos para o contexto em que nos encontramos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
1. Uma techne se aprende, e pode-se esquecer. Por outro lado, o saber ético não pode ser aprendido e nem esquecido. Não nos confrontamos com ele de maneira que dele possamos nos apropriar ou não nos apropriar, da mesma forma que se pode eleger um saber objetivo, uma techne. Pelo contrário, encontramo-nos sempre na situação de quem tem de atuar (caso desconsideremos a fase da menoridade, na qual a obediência ao educador substitui as nossas próprias decisões) e, por conseguinte, temos de já sempre possuir e aplicar o saber ético. Por isso o conceito da aplicação é tão problemático, pois só se pode aplicar o que já se possui previamente. Porém não possuímos o saber ético para nós mesmos de forma que a gente já o tenha e a seguir a gente o aplique à situação concreta. As imagens que o homem forma, sobre o que ele deve ser, como p. ex., seus conceitos de justo e injusto, de decência, coragem, dignidade, solidariedade etc. (todos conceitos que têm seu correlato no catálogo das virtudes de ARISTÓTELES) são, de certo modo, imagens diretrizes, pelas quais se guia. Mas há uma diferença fundamental entre elas e a imagem diretriz que representa, por exemplo, para um artesão o desenho do objeto que ele deve fabricar. Por exemplo, o que é justo não pode ser determinado por inteiro, independentemente da situação que me pareça de justiça, enquanto que o eidos daquilo que um (323) artesão quer fabricar está inteiramente determinado, e quiçá determinado pelo uso para o qual está determinado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É evidente que o justo também parece estar determinado num sentido absoluto, pois está formulado nas leis e contido nas regras gerais de comportamento da ética, que apesar de não estarem codificadas, mesmo assim têm uma determinação precisa e uma vinculação geral. O próprio cultivo da justiça é uma tarefa própria que requer saber e poder. Não é ela, então, techne? Não consiste, também ela, na aplicação das leis e das regras a um caso concreto? Não falamos da “arte” do juiz? Por que será que o que ARISTÓTELES designa como a forma jurídica da phronesis (dikastike phronesis), não é uma techne! VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Pelo contrário, todo aquele que “aplica” o direito se encontra em uma posição bem diferente. Na situação concreta ver-se-á obrigado, seguramente, a fazer concessões com respeito à lei num sentido estrito, mas não porque não seja justo. Fazendo concessões em face da lei não faz reduções à justiça, mas, pelo contrário, encontra um direito melhor. Em sua análise da epieikeia, a “equidade”, ARISTÓTELES dá a isso uma expressão muito precisa: epieikeia é a correção da lei. ARISTÓTELES mostra que toda lei se encontra numa tensão necessária com respeito à correção do atuar, porque é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção. Já assinalamos essa problemática no princípio, a propósito da análise do juízo. É claro que o problema da hermenêutica jurídica encontra aqui seu verdadeiro lugar. A lei é sempre deficiente, não porque o seja por si mesma, mas porque frente ao ordenamento a que intencionam as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essas considerações permitem compreender até que ponto é sutil a posição de ARISTÓTELES frente ao problema do direito natural, da mesma forma que não se pode identificá-la com a tradição juro-naturalista dos tempos posteriores. Iremos nos contentar aqui com um pequeno esboço que permita pôr em primeiro plano a relação que existe entre a ideia do direito natural e o problema hermenêutico. Que ARISTÓTELES não se limita a rechaçar a questão do direito natural é o que se pode concluir do que acabamos de ver. No direito positivo ele não reconhece o direito verdadeiro absoluto, mas ao menos na chamada ponderação da equidade, vê uma tarefa complementar do direito. Volta-se assim contra o convencionalismo extremado ou o positivismo jurídico, e distingue claramente entre direito natural e direito positivo. Mas a diferença que ele leva em conta não é simplesmente a da inalterabilidade do direito natural e da alterabilidade do direito positivo. É verdade que, em geral, temos entendido ARISTÓTELES nesse sentido, mas com isso se passa por alto a verdadeira profundidade de sua concepção. ARISTÓTELES conhece efetivamente a ideia de um direito inalterável, mas a limita expressamente aos deuses e declara que entre os homens não só é alterável o direito positivo mas também o natural. Essa alterabilidade é, segundo ARISTÓTELES, perfeitamente compatível com o caráter “natural” desse direito. O sentido dessa afirmação me parece ser o seguinte: existem efetivamente leis jurídicas que são, inteiramente, coisa da conveniência (por exemplo, as normas de trânsito, como a de conduzir pela direita); mas existem também aquelas que não permitem uma convenção humana qualquer, porque a “natureza das coisas” tende a se impor constantemente. A essa classe de leis pode-se chamar justificadamente de “direito natural”. Na medida em que a natureza das coisas deixa uma certa margem de mobilidade para a afirmação, esse direito natural pode mudar. Os exemplos que ARISTÓTELES apresenta, tirados de outros âmbitos, são muito elucidativos. A mão direita é, por natureza (325), a mais forte, mas nada impede que se treine a esquerda até igualá-la em força com a direita (ARISTÓTELES apresenta evidentemente esse exemplo porque era uma das ideias preferidas de Platão). Ainda mais esclarecedor é um segundo exemplo, tomado da esfera jurídica: usa-se sempre uma e a mesma medida, mais abundante quando se compra vinho do que quando se vende. ARISTÓTELES não quer dizer com isso que no comércio do vinho se procura normalmente enganar a outra parte, mas que essa conduta corresponde ao espaço de jogo do que é justo dentro dos limites impostos. E claramente opõe a isso que o melhor estado “é por toda parte um e o mesmo”, mas não é da mesma maneira “que o fogo arde igual em todas as partes, tanto na Grécia como na Pérsia”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A teoria posterior do direito natural se reporta a essa passagem, apesar da clara intenção de ARISTÓTELES, interpretando-a como se ele comparasse aqui a imobilidade do direito com a das leis naturais. Mas o certo é exatamente o contrário. Com essa contraposição mostra-se precisamente, que a ideia do direito natural em ARISTÓTELES só tem uma função crítica. Não pode ser empregada numa forma dogmática, isto é, não é lícito outorgar a dignidade e a invulnerabilidade do direito natural a determinados conteúdos jurídicos como tais. Também para ARISTÓTELES a ideia do direito natural é completamente imprescindível, frente à necessária deficiência de toda lei vigente, e se torna particularmente atual onde se trata da ponderação da equidade, que é a única que realmente encontra o direito. Mas a sua é uma função crítica, na medida que legitima o apelo ao direito natural somente onde surge uma discrepância entre os direitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa questão especial do direito natural, desenvolvida in extenso por ARISTÓTELES, não nos interessa aqui tanto por si mesmo, mas por sua significação fundamental. O que ARISTÓTELES demonstra aqui vale para todos os conceitos que o homem tem com respeito ao que ele deve ser, e não somente para o problema do direito. Todos esses conceitos não constituem um ideal arbitrário, condicionado por convenção, mas em meio à grande variedade dos conceitos morais dos diversos tempos e populações, também aqui existe algo como uma natureza das coisas. Isso não quer dizer que essa natureza das coisas, por exemplo, o ideal da valentia, seja um padrão fixo que se pudesse conhecer e aplicar por si mesmo. ARISTÓTELES reconhece que também o professor de ética — e em sua opinião isso vale para todo homem como tal — encontra-se sempre em uma determinada vinculação moral e política, a partir da qual ele adquire a imagem das coisas. Nas imagens diretrizes que descreve tampouco ele vê um saber que se possa ensinar. Essas só têm a pretensão de valer como esquemas. Elas se concretizam sempre só na situação particular do que atua. Não são portanto normas escritas nas estrelas ou que tivessem seu lugar inalterável nalgum mundo ético natural, como se estivessem à disposição da percepção. Mas, por outro lado, tampouco são meras convenções, já que reproduzem realmente a natureza das coisas; só que esta, por sua vez, somente se determina através da aplicação que a consciência moral faz dela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa é, pois, uma relação verdadeiramente fundamental. Não é assim que, com a expansão do saber técnico suprimir-se-ia, de uma vez por todas, a necessidade do saber ético, o buscar-conselho-consigo-mesmo. O saber ético não poderá nunca revestir o caráter prévio, próprio dos saberes suscetíveis de aprendizagem. A relação entre meio e fim não aparece aqui nos moldes daquilo que se pode dispor com anterioridade de um conhecimento dos meios idôneos, e isso pela razão de que o saber do fim idôneo não é, por sua vez, mero objeto de um saber. Não existe uma determinação prévia daquilo em que a vida no seu todo está orientada. As determinações aristotélicas da phronesis mostram, nesse sentido, uma oscilação característica pois esse saber se atribui ora mais ao fim ora mais ao meio para o fim. Na realidade, isso significa que o fim, guiados para o qual pautamos o todo de nossa vida, e o seu desenvolvimento nas imagens diretrizes e éticas da atuação, tal como as descreve ARISTÓTELES em sua ética, não pode ser objeto de um saber simplesmente ensinável. Não há um uso dogmático da ética, como tampouco um uso dogmático do direito natural. Antes, a doutrina das virtudes de ARISTÓTELES apresenta formas típicas de justo meio, que convém adotar no ser e no comportamento humano, mas o saber ético que se guia por essas imagens diretrizes é o mesmo saber que deve responder aos estímulos da situação de cada momento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Por outro lado, tampouco se irá servir à consecução dos fins éticos com meras considerações sobre a idoneidade dos meios, já que a ponderação dos meios é, ela mesma, uma ponderação ética, e só através dela se concretiza, por sua vez, a correção ética do fim adequado. O saber-se, de que fala ARISTÓTELES, se determina precisamente pelo fato de conter a aplicação completa e porque aciona seu saber na imediatez da situação dada. O único que pode completar o saber moral é, pois, um saber do que é em cada caso (Jeweiligen) um saber que não é visão sensível. Pois ainda que tenhamos de ver em cada situação o que esta nos está pedindo, esse ver não significa que percebamos o que nessa situação é o visível como tal, mas que aprendemos a vê-la como situação da atuação e, portanto, à luz do que é correto. E tal como na análise geométrica de superfícies “vemos” que o triângulo é a figura plana mais simples e que nele já não se podem fazer mais divisões, pois obriga a nos determos nele como num último passo, na reflexão ética o “ver” o imediatamente exequível também não é um mero ver, mas “nous”. Isso se confirma também a partir do que forma o contrário desse ver. O contrário da visão do correto não é o erro nem o engano, mas a cegueira. Quem está dominado por suas paixões se depara de repente com o fato de que não é capaz de ver numa situação dada o que seria correto. Perdeu o controle de si mesmo e, por consequência, a retidão, ou seja, perdeu o estar corretamente orientado em si mesmo, de modo que, desgovernado em seu interior pela dialética da paixão, parece-lhe correto o que a paixão lhe sugere. O saber (328) ético é verdadeiramente um saber peculiar. Abrange de uma maneira particular os meios e os fins e com isso diferencia-se do saber técnico. Por isso não tem demasiado sentido distinguir aqui entre saber e experiência, o que, de outra parte, convém perfeitamente à techne. O saber ético contém por si mesmo uma certa classe de experiência, inclusive veremos que esta é talvez a forma fundamental da experiência, ante a qual toda outra experiência é desnaturalizada, para não dizer naturalizada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
3. O saber-se da reflexão ética possui, de fato, uma relação para consigo mesmo muito característica. As modificações que ARISTÓTELES apresenta no contexto de sua análise da phronesis são uma boa demonstração disso. Junto à phronesis, pois, a virtude da ponderação reflexiva, aparece o entendimento (Verständnis). O entendimento (Verständnis) é introduzido como uma modificação da virtude do saber ético, na medida em que aqui já não se trata do eu-mesmo, que deve agir. Segundo isso, “synesis” significa, inequivocamente, a capacidade de julgamento ético. Elogia-se, portanto, a compreensão de alguém, quando ele, julgando, consegue deslocar-se completamente para a plena concreção da situação em que o outro tem de atuar. Portanto, também aqui não se trata de um saber em geral, mas de uma concreção momentânea. Esse saber também não é, em nenhum sentido razoável, um saber técnico ou a aplicação do mesmo. O homem muito experimentado, aquele que conhece e tem experiência em toda classe de tramas e práticas e em tudo que existe, somente alcançará uma compreensão adequada daquele que atua, na medida em que satisfaça também a seguinte premissa: que também ele deseje o justo, que se encontre portanto nessa relação de comunidade com o outro. Isso tem sua concreção no fenômeno do conselho em “questões de consciência”. A pessoa que pede conselho, assim como quem o dá, situa-se sob a premissa de que o outro mantém uma relação de amizade com ele. Só um amigo pode aconselhar o outro ou, dito de outra maneira, somente um conselho com intenção de amizade pode ter sentido para o aconselhado. Também aqui se torna claro que o homem compreensivo não sabe nem julga a partir de um simples estar postado frente ao outro de modo que não é afetado, mas a partir de uma pertença específica que o une com o outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isso se torna mais claro nos outros tipos de reflexão ética que ARISTÓTELES apresenta: penetração de espírito e tolerância. Penetração de espírito é pensado aqui como uma propriedade. Nós dizemos que tem boa penetração de espírito (329) aquele que julga reta e equitativamente. A pessoa que possui boa penetração de espírito está disposta a reconhecer o direito da situação concreta do outro e por isso se inclina em geral também à compaixão e ao perdão. É claro que também aqui não se trata de um saber técnico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
ARISTÓTELES ilustra de novo a peculiaridade do saber ético e da virtude, que está em seu poder, com a descrição de uma variedade e uma degeneração desse saber ético. Fala do deinós, como de um homem que dispõe de todas as condições e dotes naturais desse saber ético, que em todas as partes é capaz de perceber sua vantagem e de ganhar a cada situação suas possibilidades com incrível habilidade, e que em cada situação sabe encontrar uma saída. Mas essa contra-imagem natural da fronesis se caracteriza pelo fato de que o deinós exerce sua habilidade sem guiar-se por um ser ético, e, por conseguinte, desenvolve seu poder sem freios e sem orientação que tenha em vista fins éticos. E não pode ser casual, que aquele que é mais hábil nesse sentido seja nomeado com uma palavra que significa também “terrível”. Nada é tão terrível, tão espantoso, e até tão aterrador como o exercício de capacidades geniais para o mal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Esta caracterização corresponde perfeitamente à análise aristotélica da indução no apêndice às Analytica posteriora. (De uma maneira muito semelhante à do primeiro capítulo da Metafísica) ARISTÓTELES descreve aqui como acaba se dando a experiência, a unidade una da experiência, a partir de muitas percepções individuais, através da retenção desses muitos elementos individuais. Que unidade é essa? Evidentemente se trata da unidade de um geral. Porém, a generalidade da experiência ainda não é a generalidade da ciência. ARISTÓTELES adota, antes, uma posição intermediária, surpreendentemente indeterminada, entre as muitas percepções individuais e a generalidade do conceito. Mas em que consiste a generalidade da experiência e como passa à nova generalidade do logosl Quando a experiência nos ensina que um determinado meio curativo tem um determinado efeito, isso significa que a partir de um conjunto de observações detectamos algo comum, e é claro que a verdadeira questão médica, a questão científica, somente se torna possível a partir de uma observação garantida desta maneira: somente assim surge a questão do logos. A ciência sabe o porquê, em virtude de que razão esse meio tem efeito curativo. A experiência não é a própria ciência, mas é um pressuposto necessário para ela. Ela tem de estar já assegurada, isto é, as observações individuais devem mostrar regularmente os mesmos resultados. Só quando já se atinge a generalidade, da qual se trata na experiência, pode-se colocar a pergunta relativa à razão e, por conseguinte, o questionamento que conduz à ciência. Assim, pois, repetimos nossa pergunta: que generalidade é essa? Evidentemente se refere ao comum indiferenciado de muitas observações individuais. Somente retendo estas se torna possível uma certa capacidade de previsão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Salta à vista a escassa clareza que tem, aqui, a relação entre experimentar, reter e a unidade da experiência que produziriam ambas as coisas. Evidentemente ARISTÓTELES se apoia aqui num raciocínio que em seu tempo já possuía uma certa (357) cunhagem clássica. O testemunho mais antigo que nos chegou dele é de Anaxágoras, de quem Plutarco nos transmitiu, que o que caracteriza o homem face aos animais se determinaria por empeiria, mneme, sophia e techne. Um nexo parecido surge quando Esquilo destaca, no Prometeu, o papel da mneme, e ainda que sintamos falta de uma ênfase correspondente no mito platônico de Protágoras, Platão mostra, tal como ARISTÓTELES, que isso já é, naquele momento, uma teoria firmada. A permanência de percepções importantes (mone) é claramente o motivo vinculante, através do qual o saber do geral pode elevar-se acima da experiência do individual. Nisso, encontram-se próximos do homem todos os animais que possuem mneme nesse sentido, ou seja, que têm sentido para o passado e o tempo. Precisaria de uma investigação própria para descobrir até que ponto já poderia ser operante o nexo entre retenção (mneme) e linguagem, nessa teoria primitiva da experiência, cujas pegadas estamos rastreando. Pois é claro que a aprendizagem de nomes e da fala acompanha essa aquisição de conceitos gerais, e Temístio ilustra a análise aristotélica da indução diretamente com o exemplo do aprender a falar e da formação das palavras. Seja como for, o que importa é reter que a generalidade da experiência, de que fala ARISTÓTELES, não é a generalidade do conceito nem da ciência. (O círculo de problemas a que nos remete essa teoria poderia ser a da ideia sofistica da formação, pois em todos os nossos testemunhos se detecta uma conexão entre a caracterização do homem, de que se trata, e a organização geral da natureza. E é precisamente esse motivo da confrontação do homem e do animal o que constitui o ponto de partida natural do ideal da formação sofística.) A experiência somente se dá de maneira atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la numa generalidade precedente. Nisso justamente se estriba a abertura básica da experiência para qualquer nova experiência — isso não somente no sentido geral da correção dos erros, mas ao fato de que a experiência está essencialmente dependente de constante confirmação, e, quando esta falta, ela se converte necessariamente em outra diferente (ubi reperitur instantia contradictoria). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
ARISTÓTELES encontra uma esplêndida imagem para a lógica desse procedimento. Ele compara a multidão de observações que alguém faz, com um exército em fuga. Também elas são fugidias, não permanecem onde estavam. Mas quando, nessa fuga generalizada, uma determinada observação se confirma em uma experiência repetida, nesse caso ela permanece. Com isso se forma nesse ponto uma primeira estância fixa, dentro da fuga geral. Se a este começam a se acrescentar outros, a final o exército inteiro de fugitivos acaba detendo-se e obedecendo de novo à unidade de comando. O domínio unitário do conjunto é aqui uma imagem do sentido da ciência. A imagem deve mostrar que a ciência, isto é, a verdade geral, pode chegar a se produzir apesar de que não deve depender da casualidade das observações, já que deve ter verdadeira validez geral. Como é possível que isto resulte da casualidade das observações? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A imagem é importante porque ilustra o momento decisivo da essência da experiência. Como toda imagem, ela é manca, mas esse mancar de uma imagem não é uma deficiência, mas a outra face do desempenho abstrativo que leva a cabo. A imagem aristotélica do exército em fuga manca, na medida em que faz uma pressuposição distorcida. Parte de que antes da fuga deve ter havido um estado de repouso. E para o que aqui tem de ganhar imagem, o estabelecer-se do saber, isto não é admissível. Entretanto, precisamente através dessa deficiência, torna-se claro o que é que a metáfora em questão tinha de ilustrar: que a experiência tem lugar como um acontecer de que ninguém é dono, que não está determinada pelo peso próprio de uma ou outra observação, mas que nela tudo se ordena de uma maneira impenetrável. A imagem mantém firme essa peculiar abertura, na qual se adquire a experiência, nisto ou naquilo, de repente, de improviso, e, no entanto, não sem preparação, e vale até que apareça outra experiência nova, determinante não somente para isto ou para aquilo, mas para tudo que seja do mesmo tipo. Esta é a generalidade da experiência, através da qual surge, segundo ARISTÓTELES, a verdadeira generalidade do conceito e a possibilidade da ciência. A imagem ilustra, pois, como a generalidade sem princípios da experiência (o enfileiramento das mesmas) conduz, todavia, à unidade da (ctpxn) (ctpxn. = “comando” e “princípio”). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Entretanto, quando se pensa na essência da experiência somente por referência à ciência, como faz ARISTÓTELES, simplifica-se o processo no qual se produz. É verdade que a imagem descreve precisamente esse processo, mas o faz sob pressupostos simplificadores que não têm validade sob a forma como aparecem aqui. Como se o que é típico da experiência se oferecesse a si mesmo, sem contradições! ARISTÓTELES assume como dado de antemão esse comum que fica em repouso em meio à fuga das observações e se configura como geral; a generalidade do conceito é para ele um prius ontológico. O que interessa a ARISTÓTELES na experiência é unicamente a sua contribuição à formação dos conceitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Para o momento dialético da experiência, uma testemunha importante já não é ARISTÓTELES mas Hegel. Nele é onde o momento da historicidade obtém seu direito. Hegel pensa a experiência como a realização do ceticismo. Já vimos que a experiência que fazemos transforma todo o nosso saber. Em sentido estrito, não é possível “fazer” duas vezes a mesma experiência. É verdade que faz parte da experiência o fato de que ela se confirme continuamente. E também somente se a adquire pela repetição. Mas enquanto uma experiência repetida e confirmada já não se “faz” de novo. Quando se fez uma experiência, isto quer dizer que a possuímos. Desde esse momento, o que era antes inesperado é agora previsto. Uma mesma coisa não pode voltar a converter-se para nós numa experiência nova. Somente um novo fato inesperado pode proporcionar a quem possui experiência uma nova experiência. Desse modo, a consciência que experimenta inverteu-se, ou seja, voltou-se sobre si mesma. Aquele que experimenta se torna consciente de sua experiência, tornou-se um experimentador: ganhou um novo horizonte dentro do qual algo pode converter-se para ele em experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Aplicando ao problema hermenêutico a forma de comportamento com relação ao tu e de compreensão do tu, que representa o conhecimento de pessoas, achamos como correlato dele a fé ingênua no método e na objetividade que este proporciona. Aquele que compreende a tradição dessa maneira a converte em objeto, e isso significa que se confronta com ela livremente, sem ver-se afetado, e que adquire certeza com respeito ao seu conteúdo, desconectando metodicamente todos os momentos subjetivos de sua relação para com ela. Já vimos como, desse modo, ele se liberta da sobrevivência da tradição, na qual ele próprio tem sua realidade histórica. Este é o método das ciências sociais correspondente à metodológica do século XVII e sua formulação pragmática por Hume, na realidade um clichê extraído da metodologia natural-científica. Do (35) procedimento efetivo das ciências do espírito toma-se um aspecto parcial, e este reduzido esquematicamente, na medida em que só se reconhece no comportamento humano o que é típico e regular. A essência da experiência hermenêutica fica assim nivelada da mesma maneira que tivemos ocasião de perceber na interpretação teleológica do conceito da indução, desde ARISTÓTELES. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Conhecemos isto sobretudo da dialética medieval, que não somente levantava os prós e os contras, e a seguir, dava a própria decisão mas que acabava colocando o conjunto dos argumentos no seu lugar. Esta forma da dialética medieval não é uma simples consequência do sistema docente da disputatio, mas, ao inverso, repousa sobre a conexão interna de ciência e dialética, isto é, de resposta e pergunta. Há uma famosa passagem da Metafísica aristotélica, que suscitou muitas discussões e que se explica a partir desse nexo. ARISTÓTELES diz, lá, que a dialética é a capacidade de investigar o contrário, inclusive independentemente do quê, e (de investigar) se para coisas contrárias pode existir uma e a mesma ciência. Nesse ponto parece que uma característica geral da dialética (que corresponde perfeitamente ao que encontramos no Parmênides de Platão), (371) está ligada com um problema “lógico” muito especial, que conhecemos através da Tópica. Parece ser realmente uma pergunta muito especial, saber se é possível uma mesma ciência para coisas opostas. Procurou-se, por isso, descartar esta questão como glosa. Na verdade, o nexo entre as duas perguntas torna-se claro, logo que constatarmos a primazia da pergunta sobre a resposta, que subjaz ao conceito do saber. Saber quer dizer sempre: entrar ao mesmo tempo no contrário. Nisso consiste sua superioridade frente ao deixar-se levar pela opinião, que sabe pensar possibilidades como possibilidades. O saber é fundamentalmente dialético. Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas, mas as perguntas compreendem sempre a oposição do sim e do não, do assim e do diverso. Somente porque o saber é dialético nesse sentido abrangente, pode haver uma “dialética” que tome explicitamente como objeto a oposição do sim e do não. A pergunta aparentemente demasiado especial, pela possibilidade de uma mesma ciência para os opostos contém, portanto, objetivamente a base da possibilidade da dialética em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isso confirma também a origem do conceito do “problema”. Este não pertence ao âmbito daquelas “refutações bem-intencionadas”, nas quais se exige a verdade das coisas, mas sim, ao âmbito da dialética como um instrumento de luta para aturdir ou desconcertar o adversário. Em ARISTÓTELES, “problema” diz respeito ao gênero de perguntas que se mostram como alternativas abertas, porque tudo fala a favor de ambos os lados, e porque não cremos poder resolvê-las com fundamentos, já que são perguntas demasiadamente grandes. Os problemas não são, pois, verdadeiras perguntas que sejam colocadas e que recebam com isso o prelineamento de sua resposta a partir de sua gênese de sentido, já que são alternativas da opinião que não podemos mais que deixar de lado, e que por isso somente admitem um tratamento dialético. Este sentido dialético de “problema” não tem seu lugar na filosofia, mas na retórica. Faz parte de seu conceito que não seja possível uma decisão unívoca fundamental. Esta é a razão pela qual, para Kant, o uso do conceito de problema se restringe à dialética da razão pura. Os problemas são “tarefas que surgem por inteiro do seu seio”, portanto, produtos da própria razão, cuja completa solução, esta não pode esperar. É significativo que no século XIX, com a quebra da tradição imediata do perguntar filosófico e com o surgimento do historicismo, o conceito de problema ascenda a uma validez universal. E um indício de que já não existe uma relação imediata com as perguntas da filosofia, pautadas na coisa. Desse modo, caracteriza-se o desconcerto da consciência filosófica, face ao historicismo, no fato de que buscou refúgio na abstração do conceito de problema e não viu problema algum na questão de saber como os problemas realmente “são”. A história dos problemas, tal qual a cultiva o neokantismo, é um filho bastardo do historicismo. A crítica ao conceito de problema, realizada com os meios de uma lógica de pergunta e resposta, tem que destruir a ilusão de que os problemas estão aí como as estrelas no céu. A reflexão sobre a experiência hermenêutica reconduz os problemas a perguntas que se colocam e que têm seu sentido na sua motivação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Minha impressão é que com isso estamos nos movendo em uma direção que nos afasta da essência da linguagem. A linguisticidade é tão inerente ao pensar das coisas, que se torna uma abstração pensar o sistema das verdades como um sistema prévio de possibilidades de ser, a que deveriam ser subordinados signos que um sujeito emprega quando lança mão deles. A palavra linguística não é um signo de que se lance mão, mas tampouco é um signo que alguém faça ou dê a outro; não é uma coisa ôntica que se recebe e carrega com a idealidade do significar, com o fim de tornar visível, deste modo, outro ente. Isso é falso por ambos os lados. Antes, a idealidade do significado está na própria palavra; ela já é sempre significado. No entanto, isso não quer dizer, de outra parte, que a palavra preceda a toda experiência dos entes e se acrescente, exteriormente, à experiência já feita, submetendo-a a si. A experiência não é principialmente desprovida de palavras e secundariamente tornada objeto de reflexão, em virtude da designação, por exemplo, aos moldes de sua subsunção sob a generalidade da palavra. Antes, pertence à própria experiência o fato de ela buscar e encontrar as palavras que a expressem. Buscamos a palavra adequada, isto é, a palavra que realmente pertença à coisa, de maneira que ela própria venha à fala. Ainda que afirmemos que isso não implica uma simples relação de cópia, continua sendo verdade que a palavra pertence à coisa, tal que não é submetida à coisa, posteriormente, como signo. A análise aristotélica que apresentamos acima, sobre a formação dos conceitos por indução, nos oferece um testemunho indireto disso. É verdade que o próprio ARISTÓTELES não coloca expressamente a formação dos conceitos em relação com o problema da formação das palavras e o aprendizado da linguagem, mas Temístio, em sua paráfrase, não tem dificuldade em exemplificá-la com a aprendizagem da linguagem pelas crianças. Tanto assim, está a linguagem no logos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
A dificuldade particular para tornar fecundo o pensamento escolástico para o nosso questionamento, consiste em que a compreensão cristã da palavra, tal como a encontramos na patrística, em parte como apoio, em parte como transformação de ideias da Antiguidade tardia, volta a se aproximar do conceito do logos da filosofia grega clássica, a partir da recepção da filosofia aristotélica pela alta escolástica. São Tomás, por exemplo, elabora sistematicamente a doutrina cristã, desenvolvida a partir do prólogo do Evangelho de João, mediada com o pensamento de ARISTÓTELES. É significativo que nele mal se fale da multiplicidade das línguas, de que, todavia, Agostinho acaba sempre tratando, ainda que termine por descartá-la em favor da “palavra interior”. Para ele, a doutrina da “palavra interior” é o pressuposto evidente, sob o qual investiga o nexo de forma e verbum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Ao inverso disso, na palavra humana mostra-se a relação dialética da multiplicidade das palavras com a unidade da palavra, sob um nova luz. Já Platão havia reconhecido que a palavra humana possui um caráter de discurso, isto é, expressa a unidade de um pensamento (Meinung) através da integração de uma multiplicidade de palavras, e tinha desenvolvido, em forma dialética, essa estrutura do logos. Mais tarde, ARISTÓTELES demonstrou as estruturas lógicas que constituem a frase, e correpondentemente o juízo, ou o nexo de frases, ou correspondentemente a conclusão. Mas tampouco isso esgota a questão. A unidade da palavra, que se auto-expõe na multiplicidade das palavras, permite compreender também aquilo que não se esgota na estrutura essencial da lógica e que instaura o caráter de acontecer da linguagem: o processo da formação dos conceitos. Quando o pensamento escolástico desenvolve a doutrina do verbo, não se limita a pensar a formação do conceito como cópia de ordenação da essência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Todas as diairesis conceituais de Platão, assim como as definições aristotélicas, confirmam que a formação natural dos conceitos, que acompanha a linguagem, não segue sempre a ordenação da essência, mas realiza muitas vezes a formação das palavras com base em acidentes e relações. Porém, a primazia da ordenação lógica essencial, determinada pelos conceitos de substância e acidente, faz aparecer a formação natural dos conceitos da linguagem somente como uma imperfeição do nosso espírito finito. Somente porque conhecemos acidentes, nos guiamos por eles na conceituação. E, no entanto, ainda que isso seja correto, dessa imperfeição segue-se uma vantagem peculiar — coisa que São Tomás parece ter detectado corretamente — , a liberdade para uma conceituação infinita e uma progressiva penetração no intencionado. Se se pensa o processo do pensamento como um processo de explicação em palavras, torna-se visível um desempenho lógico da linguagem que não poderia ser concebido por inteiro a partir da relação de uma ordem de coisas, tal como o teria presente um espírito infinito. O fato de que a linguagem submeta a conceituação natural à estrutura essencial da lógica, como ensina ARISTÓTELES e, na sua esteira, também Tomás, somente possui pois uma verdade relativa. Em meio da penetração da teologia cristã pela ideia grega da lógica, germina de fato algo novo: o meio da linguagem, no qual chega à sua plena verdade o caráter de mediação, inerente ao acontecer da encarnação. A cristologia se converte em precursora de uma nova antropologia, que mediará, de uma maneira nova, o espírito humano, em sua finitude, para com a infinitude divina. Aqui encontrará seu verdadeiro fundamento o que antes havíamos chamado “experiência hermenêutica”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Se se pensa como Platão que o cosmos das ideias é a verdadeira estrutura do ser, será difícil subtrair-nos a essa consequência. E, efetivamente, Speusipo, o sucessor de Platão na direção da academia, relata que Platão a extraiu de fato. Sabemos dele que cultivou muito particularmente a busca do comum (ouoia), e que isso ultrapassa em muito o que se entende por generalização no sentido da lógica da espécie, pois seu método de investigação era a analogia, isto é, a correspondência proporcional. A capacidade dialética de descobrir características comuns e perceber o múltiplo sob o aspecto do uno está aqui, todavia, muito próxima à livre universalidade da linguagem e aos princípios de sua formação de palavras. O comum da analogia, tal como o buscava por todas as partes Speusipo — correspondências do tipo: “O que para os pássaros são as asas, são para os peixes as nadadeiras” — serve para definir conceitos, porque essas correspondências representam ao mesmo tempo um dos mais importantes princípios formadores na formação linguística das palavras. A transposição de um âmbito ao outro não somente possui uma função lógica, mas corresponde ao metaforismo fundamental da própria linguagem. A conhecida figura estilística da metáfora não é mais do que a aplicação retórica desse princípio geral de formação, que é ao mesmo tempo linguístico e lógico. Assim, ARISTÓTELES poderá dizer: “transpor bem é reconhecer o comum” . Sobremodo a Tópica aristotélica mostra uma ampla gama de confirmações para o caráter indissociável do nexo de conceito e linguagem. A definição, na qual se estabelece o gênero comum, deriva-se aqui, expressamente, da consideração do comum. Desse modo, no começo da lógica do gênero está o desempenho precedente da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Com esse dado concorda também o fato de que ARISTÓTELES confira sempre maior importância ao modo como se torna visível, no falar sobre as coisas, a ordem destas. (As “categorias” — e não somente o que em ARISTÓTELES recebe expressamente esse nome — são formas de enunciação). A conceituação que a linguagem realiza não somente é empregada pelo pensamento filosófico, mas até ampliada por este, em determinadas direções. Já antes nos havíamos reportado ao fato de que a teoria aristotélica da formação dos conceitos, a teoria da epagogé, podia ser ilustrada com o aprendizado do falar pelas crianças. E de fato, embora também para ARISTÓTELES seja fundamental a desmitificação platônica da fala — motivo decisivo de sua própria elaboração da “lógica” — e ainda que ele próprio tivesse o maior empenho em copiar a ordem da essência, lançando mão conscientemente da lógica da definição, e em particular na descrição classificatória da natureza, assim como em livrá-la de todos os acasos linguísticos, ele mesmo fica atado por completo à unidade de linguagem e pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
As poucas passagens em que fala da linguagem como tal estão muito longe de separar a esfera dos significados linguísticos, com respeito ao mundo das coisas que nela são nomeadas. Quando ARISTÓTELES diz que os sons e os signos escritos “designam”, quando se convertem em symbolon, isso significa evidentemente que não são por natureza, mas por convenção (kata suntheken). No entanto, isso não contém, de modo algum, uma teoria instrumental dos signos. A convenção, pela qual os sons da linguagem ou os signos da escrita chegam a significar algo, não é um acordo sobre um meio de entender-se — isso pressuporia, de todos os modos, a existência da linguagem — , mas é o haver chegado ao acordo, sobre o que se fundamenta a comunidade entre os homens e em seu consenso sobre o que é bom e correto. Pois bem, os gregos se inclinaram a considerar o que é bom e correto, a que eles chamavam de nomoi, como instituição e produto de homens divinos. Entretanto, mesmo essa origem do nomos caracteriza, na opinião (436) de ARISTÓTELES, mais a sua validez que a sua verdadeira gênese. Isso não quer dizer que ARISTÓTELES já não mais reconheça a tradição religiosa, mas que, para ele, esta, tal como qualquer outra pergunta sobre a gênese de algo, é um caminho para o conhecimento do ser e do valer. A convenção de que fala ARISTÓTELES em relação à linguagem caracteriza pois o modo de ser da linguagem e não diz nada sobre a sua gênese. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Isso se testemunha também, se nos recordarmos da análise do epagogé. Já vimos que ARISTÓTELES, aqui, deixa aberto, de maneira muito engenhosa, o problema de como chegam a se formar na realidade os conceitos gerais. Agora reconhecemos que, com isso, ele faz justiça ao fato de que a formação natural dos conceitos da linguagem já está sempre em ação. Por isso a conceituação linguística possui também, segundo ARISTÓTELES, uma liberdade inteiramente não dogmática; o que na experiência se destaca como comum entre o que nos vem ao encontro e o que se erige em generalidade, tem o caráter de um mero desempenho precedente que está, obviamente, no começo da ciência, mas que não é ainda ciência. Isso é o que ARISTÓTELES traz ao primeiro plano. Na medida em que a ciência preconiza como ideal o poder coativo da demonstração, está obrigada a ir mais além desse procedimento. Por isso ARISTÓTELES critica, a partir de seu ideal da demonstração, tanto a doutrina comum de Speusipo como a dialética diairética de Platão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Essa elevação sobre o mundo circundante tem, desde o princípio, um sentido humano, e isto quer dizer linguístico. Um animal pode abandonar seu mundo circundante e percorrer toda a terra sem romper com isso sua vinculação ao mundo circundante. Por outro lado, para o homem, elevar-se acima do mundo circundante é elevar-se ao mundo, e não significa abandono do mundo circundante, mas uma posição completamente distinta com respeito a ele. Um comportamento livre e distanciado, cuja realização sempre é linguística. A ideia de uma linguagem dos animais somente se mantém per aequivocationem. Pois a linguagem, em seu uso, é uma possibilidade variável e livre do homem. Para o homem, a linguagem não é somente variável, no sentido de que existam outras línguas que podem ser aprendidas. É variável em si mesma, na medida em que oferece diversas possibilidades de expressar uma mesma coisa. (449) Inclusive em casos de carência, como nos surdos-mudos, a linguagem não é verdadeira linguagem expressiva de gestos, mas uma cópia substitutiva da linguagem fônica articulada, através do uso de gestos igualmente articulados. As possibilidades de entendimento, entre os animais, não conhece esse gênero de variabilidade. Isso quer dizer, ontologicamente, que podem entender-se, mas não sobre conjunturas como tais, cujo conteúdo é o mundo. Isso já o tinha visto com clareza ARISTÓTELES: enquanto que o grito dos animais induz sempre seus companheiros de espécie a uma determinada conduta, o entendimento linguístico através do logos está dirigido para pôr a descoberto o que é como tal. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa é também a razão por que os sistemas de entendimento artificial inventados nunca se tornam linguagens. As linguagens artificiais, p. ex., as linguagens secretas ou os simbolismos matemáticos, não têm em sua base uma comunidade, nem de linguagem nem de vida, já que são introduzidos e aplicados meramente como meios e instrumentos do entendimento. Isso se estriba no fato de que pressupõem sempre um entendimento exercido ao vivo, o qual é linguístico. É sabido que o consenso, pelo qual se introduz uma linguagem artificial, pertence necessariamente a uma outra linguagem. Por outro lado, numa comunidade linguística real não nos pomos primeiro de acordo, mas estamos já sempre de acordo, como o mostrou ARISTÓTELES. É o mundo que se nos apresenta na vida comum, que abrange tudo, e sobre o qual se produz o entendimento. Já os meios linguísticos não constituem por si mesmos o objeto daquele. O entendimento sobre uma língua não é o caso normal do entendimento, mas o caso especial de um acordo com respeito a um instrumento, com respeito a um sistema de signos que não têm seu ser na conversação, mas que serve como meio a objetivos informativos. A linguisticidade da experiência humana do mundo proporciona um horizonte mais amplo à nossa análise da experiência hermenêutica. Aqui se confirma o que já havíamos mostrado no exemplo da tradução e da possibilidade de entender-se além dos limites da própria língua: O mundo linguístico próprio, em que se vive, não é uma barreira que impede todo conhecimento do ser em si, mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se (451) a nossa percepção. É claro que os que se criaram numa determinada tradição linguística e cultural veem o mundo de uma maneira diferente de como o veem os que pertencem a outras tradições. É verdade que os “mundos” históricos, que se dissolvem uns nos outros no curso da história, são diferentes entre si e também diferentes do mundo atual. E, no entanto, o que se representa é sempre um mundo humano, isto é, estruturado linguisticamente, seja lá qual for a sua tradição. Enquanto linguisticamente estruturado, cada mundo está aberto, a partir de si a toda acepção possível e, portanto, a todo gênero de ampliações; pela mesma razão, acessível a outros. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Não obstante, há estritas coincidências. Num e noutro caso dá-se a superação do interesse prático e pragmático, que vê tudo o que encontra, à luz de suas próprias intenções e objetivos. ARISTÓTELES disse que a atitude teórica na vida somente pôde emergir quando já dispunha de todo o necessário para satisfazer as necessidades da vida. Tampouco a atitude teórica da ciência moderna dirige suas perguntas à natureza com vistas a determinados fins práticos. É verdade que já sua maneira de perguntar e investigar está orientada para o domínio doente, pelo que tem de ser considerada prática em si mesma. No entanto, para a consciência de cada investigador a aplicação de seus conhecimentos é secundária, no sentido de que, ainda que proceda deles, vem tão-somente mais tarde, de maneira que aquele que conhece não necessita saber para que, e se vai ser aplicado o que conhece. Não obstante, e apesar de todas as correspondências, a diferença torna-se patente no significado das palavras “teoria” e “teórico”. No uso linguístico moderno, o conceito do teórico é quase somente um conceito privativo. Algo só é considerado teórico, quando não possui a vinculatividade, sempre determinante, dos objetivos da ação. Inversamente, as teorias que são esboçadas aqui são julgadas segundo a possibilidade de aplicação, isto é, pensa-se o próprio conhecimento teórico, a partir da dominação voluntária do ente, e não como fim, mas como meio. No sentido antigo, teoria é, por outro lado, algo completamente diferente. Nela não somente se contemplam as ordenações vigentes, mas além disso, a teoria significa a própria participação no todo das ordenações. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa diferença entre a teoria grega e a ciência moderna (459) tem seu verdadeiro fundamento, na minha opinião, na diferença de sua relação com a experiência linguística do mundo. O saber grego, como já o destacamos antes, estava tão dentro dela, encontrava-se tão exposto pela sedução da linguagem, que sua luta contra a dynamis ton onomaton não o levou nunca a desenvolver o ideal de uma linguagem de puros signos, capaz de superar por inteiro o poder da linguagem, tal como se faz na ciência moderna e na sua orientação relativa ao domínio do ente. Tanto o simbolismo de letras, com o qual ARISTÓTELES tanto trabalha na lógica, como sua descrição proporcional e relativa dos processos do movimento, com a qual opera na física, são evidentemente algo muito diferente do modo como se aplica a matemática no século XVII. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Com isso viemos parar, como era de se supor, num âmbito de questões com as quais a filosofia está familiarizada desde antigamente. Na metafísica, pertença quer dizer a relação transcendental entre o ser e a verdade, que pensa o conhecimento como um momento do próprio ser, não primariamente como um comportamento do sujeito. Essa inclusão do conhecimento no ser é pressuposto do pensamento antigo e medieval. O que é, é verdadeiro por sua essência, isto é, está presente na atualidade de um espírito infinito, e somente por isso, torna-se possível ao pensamento humano e finito conhecer o ente. Por conseguinte, aqui não se parte do conceito de um sujeito que fosse por si e convertesse tudo o mais em objeto. Ao contrário, em Platão, o ser da “alma” se determina por sua participação no ser verdadeiro, isto é, porque pertence à mesma esfera da essência a que pertence a ideia. E ARISTÓTELES dirá que a alma é, de um certo modo, todo ente. Nesse pensamento, não se faz menção de nenhum espírito sem mundo, com certeza de si mesmo e que tivesse de achar o caminho rumo ao ser (463) do mundo, mas que ambas as coisas vão originariamente juntas. O primário é a relação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Se quisermos determinar corretamente o conceito de pertença, de que se trata aqui, será conveniente que observemos a dialética peculiar, contida no ouvir. Não se trata somente de que aquele que ouve é de algum modo interpelado. Antes, nisso está o fato de que quem é interpelado tem de ouvir, queira ou não. Não pode apartar seus ouvidos, tal como se aparte a vista de outra coisa, olhando numa determinada direção. Essa diferença entre ver e ouvir é para nós importante, porque ao fenômeno hermenêutico subjaz uma verdadeira primazia do ouvir, como ARISTÓTELES já reconhece. Não há nada que não seja acessível ao ouvido através da linguagem. Enquanto nenhum dos demais sentidos participa diretamente na universalidade da experiência linguística do mundo, já que cada um deles abarca tão-somente o seu campo específico, o ouvir é um caminho rumo ao todo, porque está capacitado para escutar o logos. À luz da nossa colocação hermenêutica, esse velho conhecimento da primazia do ouvir sobre o ver alcança um peso novo. A linguagem, na qual o ouvir participa, não é somente universal no sentido de que nela tudo pode vir à fala. O sentido da experiência hermenêutica reside, antes, no fato de que, face a todas as formas de experiência no mundo, a linguagem põe a descoberto uma dimensão completamente nova, uma dimensão de profundidade, a partir da qual a tradição alcança os que (467) vivem no presente. Tal é a verdadeira essência do ouvir, já desde tempos remotos, e inclusive antes da escrita: O ouvinte está capacitado a ouvir a lenda, o mito, a verdade dos antepassados. A transmissão literária da tradição, como a conhecemos, não significa, face a isso, nada de novo, apenas altera a forma e dificulta a tarefa do verdadeiro ouvir. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa incomum inibição que o pensamento experimenta quando, por seu conteúdo, a frase obriga a suspender o comportamento usual do saber, é o que constitui de fato a essência especulativa de toda filosofía. A grandiosa historia da filosofía de Hegel mostra até que ponto a filosofía é, desde seus primordios, especulação nesse sentido. Quando se expressa sob a forma da predicação, isto é, quando trabalha com representações fixas de Deus, da alma e do mundo, mal-interpreta sua própria essência e cultiva uma atividade unilateral, a de “olhar com os olhos do entendimento o que é objeto da razão”. Para Hegel, é esta a essência da metafísica dogmática pré-kantiana, e o que caracteriza em geral “os novos tempos da não-filosofia. Seja qual for o caso, Platão não é um metafísico desses, e ARISTÓTELES muito menos, ainda que em certas ocasiões acredite-se ser o contrário”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a ideia do bem e a ideia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a ideia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de ARISTÓTELES sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A base da estreita relação da ideia do belo com a da ordenação teleológica do ser está constituída pelo conceito pitagórico-platônico da medida. Platão determina o belo com os conceitos de medida, adequação e proporcionalidade. ARISTÓTELES enumera como momentos (eidé) do belo, a ordem (taxis), a correta proporcionalidade (symmetria) e a (483) determinação (horismenon), e encontra esses momentos representados exemplarmente na matemática. A estreita relação entre a ordem essencial matemática do belo e a ordem celeste significa, ademais, que o cosmo, o modelo de toda ordenação sensível correta, é ao mesmo tempo o mais elevado exemplo de beleza visível. Adequação à medida e simetria são as condições decisivas de todo ser belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O belo não aparece somente no que tem uma existência visível sensivelmente, mas o faz de maneira que somente em virtude disso existe na realidade, ou seja, se destaca de tudo o mais como uno. O belo é, realmente por si mesmo, “o mais reluzente” (to ekphanestaton). O fino limite entre o que é belo e o que não participa da beleza é, ademais, também um achado fenomenologicamente seguro. ARISTÓTELES já dizia das “obras (486) bem feitas”, que a elas não se pode nem acrescentar nem tirar nada: este meio sensível, esta precisão das relações de medida, forma parte da essência mais antiga do belo. Basta pensar na sensibilidade das harmonias dos tons, com as quais se compõe a música. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
É evidente que repousa na constituição reflexiva, que perfaz o seu ser, o fato de que a luz reúna o ver e o visível, de modo que sem ela não exista nem um nem outro. Essa constatação tão trivial torna-se frutuosa se pensarmos a relação da luz com o belo e o alcance semântico do conceito do belo. Pois de fato é a luz a que articula as coisas visíveis como formas, que são ao mesmo tempo “belas” e “boas”. Todavia, o belo não se restringe ao âmbito do visível, mas é, como já vimos, o modo de aparecimento do bom em geral, do ente, tal como deve ser. A luz, na qual se articula não somente o âmbito visível, mas também o inteligível, não é a luz do sol, mas a do espírito, o nous. A isso alude aquela profunda analogia platônica, a partir da qual ARISTÓTELES desenvolveria a doutrina do nous, e na sua esteira, o pensamento cristão medieval, a doutrina do intellectus agens. O espírito, que desenvolve de si mesmo a multiplicidade do pensado, torna-se presente a si mesmo justamente nisso. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo (12) sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em ARISTÓTELES, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por ARISTÓTELES. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a ideia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio ARISTÓTELES era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que ARISTÓTELES extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de ARISTÓTELES possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela “famosa analogia”. É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger frequentemente a expressão “co-originariedade” — uma ressonância da “analogia” e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à ideia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de ARISTÓTELES, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis, muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates, compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno, ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Finalmente, a mesma problemática obrigou-me a elaborar de modo mais agudo o teor teórico-científico de uma hermenêutica filosófica, na qual a compreensão, a interpretação e o procedimento das ciências hermenêuticas devem encontrar sua legitimação. Isto levou-me a tratar de um problema, com que eu me havia ocupado intensamente desde meus primeiros trabalhos: O que é a filosofia prática? Como podem a teoria e a reflexão dirigir-se para o âmbito da praxis, visto que esta não tolera nenhum distanciamento, mas, pelo contrário, exige o engajamento. Essa questão tocou-me desde cedo através do pathos existencial de Kierkegaard. Ademais, orientei-me pelo modelo da filosofia prática de ARISTÓTELES. Procurei evitar o modelo distorcido de teoria e sua aplicação, que, partindo do conceito moderno de ciência, determinou de modo unilateral também o conceito de práxis. Foi nesse ponto que Kant introduziu a autocrítica da modernidade. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant acreditei e acredito encontrar uma verdade, quiçá parcial, reduzida ao imperativo, que é no entanto inabalável dentro de seus limites: Os impulsos do Iluminismo não podem prender-se a um utilitarismo social, se é que devem sobreviver à crítica de Rousseau, que segundo o próprio Kant, foi decisiva para ele. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos sobre Platão e ARISTÓTELES. Os primeiros textos de minha formação intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no volume V dessa edição alemã, sob o título Praktisches Wissen (Saber prático) (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco, estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição aristotélica da filosofia prática foi retomada e abordada sob diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa filosofia prática permanece sendo, para o conceito científico do conjunto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode ser ignorada. Há que se aprender com ARISTÓTELES que o conceito grego de ciência, episteme, significa conhecimento racional. Isso significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, (23) episteme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de techne. Em todo caso, o saber prático e político têm fundamentalmente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didático e de sua aplicação. O saber prático (Können), na verdade, é aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fundamentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento socrático pelo bem, mantido por Platão e ARISTÓTELES. Quem acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e responsabilizar-se pela utilização do mesmo. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Que tipo de experiência é esta que coloca a verdade exclusivamente na demonstração discursiva? A verdade é desocultação. O sentido do discurso é deixar e fazer com que o desocultado se apresente, se revele. Alguém apresenta algo, que desse modo está ali comunicado ao outro, do mesmo modo que está para este primeiro. Assim fala ARISTÓTELES: Um juízo é verdadeiro quando deixa e propõe uma reunião daquilo que está reunido na coisa; um juízo é falso quando deixa e propõe uma reunião no discurso daquilo que não está reunido na coisa. A verdade do discurso, portanto, determina-se como adequação do discurso à coisa, isto é, como adequação do deixar e propor, pelo discurso, a coisa proposta. Daqui surge aquela definição de verdade amplamente atribuída à lógica: ventas est adaequatio intellectus ad rem. Com isto se pressupõe inquestionavelmente como evidente que o discurso, isto é, o intellectus, que se expressa no discurso, tem a possibilidade de adequar-se de tal forma que naquilo que alguém diz só vem à fala aquilo que está ali, que ele mostra as coisas como elas realmente são. Na filosofia, é o que se chama de verdade do enunciado, tendo em mente que há outras possibilidades de verdade do discurso. O lugar da verdade é o juízo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.
Isso pode ser uma afirmação unilateral, que não encontra um respaldo inequívoco em ARISTÓTELES. Ela desenvolveu-se, todavia, a partir da doutrina grega do logos e sustenta sua evolução até o conceito moderno de ciência. De imediato, a ciência criada pelos gregos é completamente diferente do nosso conceito de ciência. A ciência verdadeira é a matemática. Não é a ciência da natureza, e muito menos a história. O seu objeto é um ser puramente racional, e visto que pode ser apresentada num conjunto fechado de deduções, ela é como tal um modelo para toda ciência. O que caracteriza a ciência moderna, ao contrário, é o fato de a matemática se constituir em modelo, não pelo ser de seus objetos, mas como o modo mais perfeito de conhecimento. A configuração da ciência moderna estabelece uma ruptura decisiva em relação às configurações do saber do Ocidente grego e cristão. O que predomina agora é a ideia do método. Em sentido moderno, o método, apesar de toda a variedade apresentada nas diversas ciências, é um conceito unitário. O ideal de conhecimento pautado pelo conceito de método consiste em se poder trilhar um caminho cognitivo de maneira tão consciente que se torna possível refazê-lo sempre. Methodos significa “caminho de seguimento”. Metódico é poder-seguir sempre de novo o caminho já trilhado e é isto o que caracteriza o proceder da ciência. Justamente por isso faz-se necessário estabelecer logo uma restrição daquilo que pode resultar desta pretensão à verdade. Se a verdade (veritas) só se dá pela possibilidade de verificação — seja como for — , então o parâmetro que mede o conhecimento não é mais sua verdade, mas sua certeza. Por isso, desde a formulação clássica dos princípios de certeza de Descartes, o verdadeiro ethos da ciência moderna passou a ser o fato de que ela só admite como condição satisfatória de verdade aquilo que satisfaz o ideal de certeza. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.
Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na ideia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua (74) autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a ideia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa ideia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, ARISTÓTELES já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
Ao excluir toda e qualquer fundação e gênesis do conceito de syntheke, ARISTÓTELES indicou a direção daquela correspondência entre alma e mundo, que aflora no fenômeno da linguagem, independentemente da extrapolação forçada de um espírito infinito, pela qual a metafísica deu uma fundamentação teológica a essa correspondência. O estar de acordo sobre as coisas, que se dá como tal na linguagem, não significa uma prioridade das coisas nem uma prioridade do espírito humano, que se utilizaria do entendimento como um meio de linguagem. Antes, o absolutamente prioritário é a correspondência como tal, que encontra sua concreção na experiência de mundo que se dá na linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
Somente a tradição filosófica do Ocidente pode conter uma resposta histórica para essa questão. Só a ela podemos interrogar. As enigmáticas formas enunciativas sobre profundidade e sabedoria, desenvolvidas em outras culturas, sobretudo no distante Oriente, mantêm, no fundo, uma relação não verificável frente ao que se chama de filosofia ocidental, especialmente porque a ciência, em nome da qual questionamos, é ela mesma uma descoberta ocidental. Se é assim que a filosofia não tem nenhum objeto próprio em que possa se medir, e no qual possa adequar-se com seus recursos conceptuais e de linguagem, então o objeto da filosofia não seria o próprio conceito? O conceito, assim como costumamos usar essa palavra, é o verdadeiro ser. Dizemos, por exemplo: “isto sim é o conceito de amigo”, quando queremos elogiar alguém pela sua capacidade de ser amigo. Será que isso significa que, enquanto o (78) objeto da filosofia e no modo como se relaciona com o que é, esclarecendo e conhecendo, o conceito é, por assim dizer, o autodesenvolvimento do pensamento? De certo, essa é a resposta da tradição desde ARISTÓTELES até Hegel. No livro Gamma (O da Metafísica, ARISTÓTELES distinguiu a filosofia e sobretudo a metafísica, a filosofia primeira, como conhecimento em geral, afirmando que todas as outras ciências têm um âmbito positivo e assim um objeto específico. Como ciência, a filosofia que buscamos aqui não tem um objeto assim delimitado. Tem em mente o ser como tal e a essa pergunta pelo ser como tal liga-se a consideração de modos de ser distintos entre si: o eterno e o divino imutáveis, o que está em constante movimento, a natureza, o ethos e sua vinculação, o homem. É assim que se nos apresenta a tradição da metafísica, com seus temas principais, até a configuração que Kant deu à metafísica da natureza e à metafísica dos costumes, na qual o saber sobre Deus estabeleceu uma ligação específica com a filosofia moral. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
O problema da liberdade parece ser um dos que preenchem perfeitamente a condição prévia de ser um problema filosófico idêntico. A condição prévia de ser um problema filosófico consiste na verdade em ser insolúvel. O problema deve ser de tal modo abrangente e fundamental que volta a se instaurar sempre de novo, uma vez que parece não haver nenhuma “solução” capaz de resolvê-lo totalmente. Já ARISTÓTELES descreveu a essência do problema dialético, afirmando que são as questões grandes e insolúveis que se devem lançar ao adversário numa disputa verbal. A pergunta, porém, é: haverá “o” problema da liberdade? A questão da liberdade será realmente sempre a mesma em todos os tempos? O que dizer daquele mito profundo da República de Platão, segundo o qual a própria alma escolhe, num estado anterior ao nascimento, a sorte para sua vida, de tal modo que se queixa das consequências de sua escolha recebe como resposta: “aitia helemenou, Tens culpa na tua escolha”? Terá o mesmo sentido que o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a filosofia moral estoica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por ARISTÓTELES para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Um outro exemplo muito simples é o conceito aristotélico de hylé, a matéria. Quando falamos de matéria já nos encontramos muito distantes da compreensão aristotélica do conceito de matéria. Isto porque ARISTÓTELES compreendeu hylé, que originariamente significa madeira para construção, empregada para com ela se fazer algo, como um princípio ontológico. Expressa o espírito técnico dos gregos, que colocam essa palavra num lugar central na filosofia. Aquilo que é a forma, aparece como o resultado de um esforço e produção técnicos, que conformam algo que não tinha forma. Seria, no entanto, subestimar ARISTÓTELES, acreditar que o conceito aristotélico de hylé equivaleria ao conceito tosco de um material que é por si e que depois o artesão espiritual toma e lhe imprime “forma”. Com esse conceito tosco tirado do universo do artesão, ARISTÓTELES quis descrever sobretudo uma relação ontológica, um momento estrutural do ser que exerce sua função em todo pensamento e conhecimento dos entes, não apenas naquilo que nos rodeia como natureza, mas também no âmbito da matemática (noété hylé). Quis mostrar que, ao conhecermos e determinarmos algo como algo, esse é sempre pensado como algo ainda indeterminado, que só distinguimos de todo o resto por uma determinação adicional. É nesse sentido que afirma que a hylé exerce a função de gênero. A isso corresponde a teoria clássica da definição de ARISTÓTELES, segundo a qual a definição contém o gênero próximo e a diferença específica. No pensamento aristotélico, portanto, a hylé assumiu função ontológica. . VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Se o que caracteriza a conceitualidade filosófica é o fato de o pensamento estar sempre na necessidade de buscar uma expressão realmente adequada àquilo que ele quer propriamente dizer, então toda filosofia incorre no perigo de o pensamento sempre se colocar aquém de si mesmo e sofrer uma inadequação de seus recursos conceptuais trazidos da linguagem. Isso é fácil de se ver nos exemplos acima mencionados. Zenão, o seguidor mais próximo de Parmênides, coloca a seguinte questão: Onde está propriamente o ser? Que lugar é este em que ele está? Se estiver em algo, então esse algo em que está deve, por seu turno, estar em algo outro. E certo que Zenão, tão astuto em suas perguntas, já não pôde manter o sentido filosófico da teoria do ser, e identificou o “ser” como o “todo”. Não cremos, porém, que seja correto imputar somente aos seguidores a decadência do pensamento. A carência de linguagem própria do pensamento filosófico é a carência do próprio pensador. Onde a linguagem fracassa, ele já não consegue manter com segurança a orientação de sentido de seu pensamento. Não só Zenão, mas já o próprio Parmênides fala, como se aludiu acima, do ser como se fosse uma bola bem redonda. — Assim também em (88) ARISTÓTELES, e não apenas na sua “escola”, a função ontológica do conceito de matéria não foi pensada adequadamente e nem explicitada conceptualmente, de tal modo que a escola aristotélica já não pôde sustentar a intenção do pensamento original. Por isso, também para os intérpretes modernos, só poderá seguir sua verdadeira intenção a elucidação histórico-conceitual que se transfere igualmente para o actus do pensamento em busca de sua linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Os exemplos aqui discutidos mostram a estreita relação existente entre o uso da linguagem e a formação conceitual. A história do conceito deve seguir um movimento de pensamento (99) que força a ultrapassar sempre o uso ordinário da linguagem e liberar a orientação semântica das palavras de seu emprego originário, ampliando ou restringindo, comparando ou distinguindo, como procedeu de modo sistemático ARISTÓTELES no catálogo de conceitos do livro A da Metafísica. Também a formação de conceitos pode ter efeitos na vida da linguagem, como por exemplo o amplo uso da palavra substância para designar o espiritual, uso justificado por Hegel. Via de regra, porém, acontece o contrário, a amplitude do uso vivo da linguagem resiste à fixação terminológica dos filósofos. Em todo caso, há uma relação extremamente oscilante entre a cunhagem conceitual e o uso de linguagem. Mesmo aquele que fez as propostas terminológicas, no uso de fato da linguagem, acaba não as mantendo. Como já ressaltei certa vez, em seu próprio uso da linguagem, ARISTÓTELES acaba não seguindo a diferenciação de phronesis e sophia, por ele encontrada na Ética a Nicômaco. Mesmo a famosa distinção kantiana de transcendente e transcendental não conseguiu direito de cidadania na vida da linguagem. Só a hybris de um Beckmesser conseguiu criticar, no meu tempo de juventude, na época do neokantianismo, uma expressão como “a música transcendental de Beethoven”, afirmando com escárnio: “O escritor nem sequer sabe a diferença entre transcendente e transcendental”. É claro que quem quiser compreender a filosofia kantiana deverá estar familiarizado com essa diferença. O uso da linguagem é no entanto soberano e não permite que lhe sejam dados esses preceitos artificiais. A soberania do uso da linguagem não exclui distinção entre o bom e o mau alemão (ou português) e até que se possa falar dos abusos da língua. Nesses casos, porém, a soberania do uso da linguagem mostra-se precisamente no fato de que, a nossos olhos, a crítica reprobativa feita muitas vezes na escola com relação ao uso errado da língua em suas regras gramaticais contém algo de inoperante. Mais do que qualquer outro, o ensino da língua costuma ser operante pelo exemplo e não através de correções pedantes. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.
Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “techne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambiguidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas frequentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o (93) caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando ARISTÓTELES trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
À luz dessa questão, a venerada tradição da hermenêutica jurídica ganha nova vida. No seio da dogmática jurídica moderna, esse questionamento exerceu um papel insignificante, mesmo que uma dogmática só possa aperfeiçoar-se a si mesma quando conta com inevitáveis manchas vergonhosas. De qualquer modo, não se pode negar que a hermenêutica seja uma disciplina normativa e que exerça a função dogmática de complemento jurídico. Como tal, desempenha uma função indispensável, visto que precisa superar o hiato insuperável entre a generalidade do direito estabelecido e a concreção do caso individual. Nesse sentido, ARISTÓTELES havia delimitado, na Ética a Nicômaco, o espaço hermenêutico relativo à teoria do direito, ao discutir o problema do direito natural e do conceito da epieikeia. Mesmo a reflexão sobre a história da hermenêutica jurídica mostra que o problema da interpretação compreensiva está indissoluvelmente ligado ao problema da aplicação. Essa era a dupla tarefa da ciência jurídica, sobretudo desde a recepção do direito romano. A questão não era apenas compreender os juristas romanos, mas também aplicar a dogmática do direito romano ao universo cultural moderno. Com isso, uma ligação tão estreita como a que se impôs na teologia, surgiu também entre a tarefa hermenêutica e a tarefa dogmática. Uma teoria da interpretação do direito romano não poderia abandonar-se a uma alienação histórica, pelo menos enquanto o direito romano detivesse sua vigência legal. Isso explica por que a interpretação do direito romano considera óbvio que a teoria da interpretação empreendida por Thibaut (1806) não possa se apoiar apenas na intenção do legislador, tendo que elevar o “fundamento da lei” ao nível de um verdadeiro cânon hermenêutico. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das “formas simbólicas” (Cassirer), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas “fato”, mas “princípio”. É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho e Tomás de Aquino, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um “sentido”, e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel (112) expressou-o na sua teoria do “espírito objetivo”. Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por ARISTÓTELES e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a ARISTÓTELES, ilustrou este capítulo correspondente de ARISTÓTELES (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando “do lado de fora” os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de “experiência” a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
É de ARISTÓTELES a definição clássica do homem como o ser vivo que possui logos. Na tradição do Ocidente, essa definição foi canonizada com a forma: o homem é o animal racional, o ser vivo racional, o ser que se distingue de todos os outros animais pela capacidade de pensar. A palavra grega logos foi traduzida no sentido de razão ou pensar. Na verdade, a palavra significa também e sobretudo: linguagem. Em certa passagem, ARISTÓTELES estabeleceu a diferença entre homem e animal do seguinte modo: os animais têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que lhe causa dor, a fim de evitá-lo. Aos animais a natureza só lhes permitiu chegar até esse ponto. Apenas aos homens foi dado ainda o logos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. Uma frase de sentido muito profundo. O útil e o prejudicial são o que não é desejável em si mesmo, e sim em vista de algo outro que ainda não está dado, mas motiva a sua busca. Isso expõe como característica do homem um sobrepor-se ao atual, um sentido para o futuro. E ARISTÓTELES acrescenta depois que, com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto… e tudo isso porque o homem é o único ser que possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo que pensa. E mais: E somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas ideias consiste em buscar suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em ARISTÓTELES que se encontra a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala. A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória, que nos capacita reconhecer algo como o mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento do comum. ARISTÓTELES pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? ARISTÓTELES apresenta uma imagem ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a deter-se, uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos. Realmente o homem é o ser que possui linguagem, segundo a afirmação de ARISTÓTELES. Tudo que é humano deve poder ser dito entre nós. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.
Tudo isso já aconteceu no passado. Quem conhece os diálogos platônicos sabe que à época do iluminismo sofista a ideia de um saber objetivo desempenhou uma função universal parecida. Os gregos chamavam-na de techne, o saber a respeito do que é passível de ser produzido e feito, capaz de alcançar sua própria perfeição. O modo e a aparência do objeto a ser confeccionado conformam a perspectiva de todo processo. A escolha dos recursos corretos e do material apropriado, a sucessão artesanalmente correta das diversas fases do trabalho podem ser elevadas a um grau de perfeição ideal que fica contestada a frase citada por ARISTÓTELES: “A techne ama a tychne e a tychne ama a techne”. “A arte ama a sorte e a sorte ama a arte.” Quem domina sua arte não precisa de sorte? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que ARISTÓTELES desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das consequências, consoante à ideia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. ARISTÓTELES refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Dessas reflexões resulta que a ideia tradicional do fazer e do produzir representa um modelo falso de conhecimento. A tensão entre o saber para todos, ligado ao conceito da ciência ensinável (técnica), e o saber sobre o que, no nível prático, é melhor para cada um, é como tal já muito antiga, embora não seja um acaso que a sua real antinomia só tenha se exposto com o surgimento da ciência moderna. Em ARISTÓTELES, por exemplo, a relação entre a arte (165) política e o sentido político (téknne e phronesis) parece não representar nenhum problema real. Onde existe um saber que pode ser aprendido devemos aprendê-lo. Mas esses sempre compõem apenas áreas parciais do saber e do saber-fazer prático que nunca poderão cobrir toda a esfera da ação moral e política. O saber global, onde se inserem todas as formas de saber humano, serve de parâmetro também para a téknne. Em sentido fundamental, essa continua preenchendo as lacunas que a natureza legou como tarefa para o trabalho humano, e dessa forma torna-se um complemento constante do nosso saber. Hoje, ao contrário, a extraordinária abstração com que o ideal do método da ciência moderna separa e delimita seu objeto expõe de forma acirrada a diferença qualitativa tanto entre o saber da ciência, em constante auto-superação, e o caráter definitivo e irrevogável de toda decisão real quanto aquela diferença entre o especialista e o político. Em todo caso, parece faltar um modelo racional do que constitui o saber do político. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Pode ser que aqui, além do fazer — isto é, da produção baseada num projeto — e do governar — isto é, do restabelecimento do equilíbrio e da fixação de uma direção sob condições constantemente novas — , torne-se importante um modo de comportar-se que leve em conta os limites de toda a vontade de dispor. Esse modo de comportar-se foi, com toda razão, considerado por ARISTÓTELES como um modo distinto da técnica. Trata-se da deliberação-consigo-próprio, feita pelo indivíduo (ou também pelo grupo) diante da situação que exige uma decisão. Aqui não cabe o saber do especialista, que vai ao encontro dos outros como quem já sabe, e sim de um saber de que se precisa e que nenhuma ciência pode fornecer. Encontramo-nos diante de diversas possibilidades que se nos apresentam e ponderamos demoradamente sobre qual pode ser a correta. Não dispomos de um saber que pudesse reivindicar uma validade universal. Precisa-se de deliberação que implica um caráter comum bem diferente do que a validade universal. A deliberação dá a palavra ao outro e confronta-se com ele. Assim, não pode coisificar-se cabalmente como acontece com a ciência. Pois não se trata somente de encontrar os meios adequados para um objetivo preestabelecido, mas sobretudo de conceber o que deve e o que não deve ser, o que é correto e o que não é. É isso que na deliberação sobre o factível se constitui tacitamente em algo realmente comum. Ao termo dessa deliberação não se encontra apenas a realização de uma obra ou a produção de um estado desejado, mas uma solidariedade que une a todos. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Os gregos tinham uma bela palavra para expressar o que paralisa nossa compreensão. Diziam atopon, que significa o não-lugar, aquilo que não se encaixa no esquematismo de nossa expectativa de compreensão e que por isso nos deixa desconcertados, estupefatos. A famosa teoria platônica, segundo a qual o filosofar começa com a admiração, refere-se a esse ficar desconcertado, a esse não poder avançar com as expectativas pré-esquematizadas de nossa orientação no mundo. É essa perplexidade que nos provoca a pensar. ARISTÓTELES descreveu esse começo espetacularmente quando disse que o que esperamos depende do grau de conhecimento que temos de um contexto. O exemplo de ARISTÓTELES é o seguinte: ao descobrir que a raiz de dois é irracional, portanto, que a relação entre a diagonal e o comprimento dos lados de um quadrado não pode ser expressa racionalmente, percebemos que não se é (186) matemático. Um matemático haveria de admirar-se se alguém afirmasse que essa relação é racional. Como essa perplexidade é relativa, como está referida ao saber e à penetração mais profunda nas coisas! E claro que esse desconcerto e admiração, esse não poder mais avançar, visa sempre um avanço, um conhecimento mais profundo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
Nessa tentativa de contrapor, assim, “palavra” e “enunciado”, torna-se claro também o sentido de enunciado. Costumamos falar (193) de “enunciados” na constringência da lógica, do cálculo das proposições e da moderna formalização matemática da lógica. Esse modo de expressar-se, que nos parece natural, remonta em última instância a uma das opções mais decisivas de nossa cultura ocidental, isto é, a construção da lógica a partir do enunciado. ARISTÓTELES, o fundador dessa parte da lógica, o magistral analítico desse processo escolástica do pensamento lógico, produziu-a pela formalização de frases enunciativas e de seus nexos conclusivos. Todos conhecem o famoso exemplo do silogismo usado doutrinalmente: Todos os homens são mortais. Pedro é homem, logo Pedro é mortal. Que tipo de abstração se produziu aqui? A abstração pela qual a única coisa que conta aqui é o que foi enunciado. Todas as outras formas de linguagem e todos os outros modos de dizer não são objeto de análise; somente o enunciado. A palavra grega é apophansis. Logos apophantikos significa o discurso, a proposição cujo único sentido é realizar o apophainesthai, o mostrar-se do que foi dito. E uma proposição teórica no sentido de que ela abstrai de tudo que não diz expressamente. O que constitui o objeto de análise e o fundamento da conclusão lógica é apenas o que ela própria revela pelo seu dizer. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
Pergunto agora: Haverá tais frases enunciativas puras, quando e onde? Em todo caso o enunciado não é a única forma existente de discurso. E o que deixa claro ARISTÓTELES no contexto de sua teoria do enunciado, quando se refere à prece e à súplica, à maldição e à ordem. Resta ainda considerar um dos fenômenos intermediários mais enigmáticos que é a pergunta. Em sua essência peculiar, a pergunta implica uma proximidade tão grande do enunciado como nenhum outro fenômeno da linguagem. Mesmo assim não admite nenhuma lógica, no sentido da lógica proposicional. Pode ser que também haja uma lógica da pergunta. Essa poderia implicar que a resposta a uma pergunta desperte sempre novas perguntas. Talvez haja também uma lógica da súplica, onde, por exemplo, a primeira súplica nunca é a última. Mas, se podemos chamar a isso de “lógica” ou se a lógica refere-se apenas ao contexto dos enunciados puros, isso já é uma outra questão. Como se define, então, um enunciado? Será possível separar um enunciado do contexto de sua motivação? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
Esse caminho de toda experiência para o conceito e o universal já foi descrito magistralmente por ARISTÓTELES numa esplêndida imagem. Ele descreve como a partir de muitas percepções forma-se a unidade de uma experiência e como a partir da multiplicidade das experiências lentamente acaba formando-se algo como a consciência do universal que se conserva nesse fluxo de aspectos cambiantes da vida da experiência. Para tanto, ARISTÓTELES encontrou uma bela comparação. Ele pergunta: Como se chega ao saber do universal? Pelo acúmulo de experiências, pelo fato de fazermos sempre de novo as mesmas experiências e reconhecê-las como tais? Certamente. Mas exatamente ali está o problema. O que significa reconhecê-las “como tais”? Quando se estabelece a unidade desse universal? A imagem dada por ARISTÓTELES é a de um exército em fuga. Num determinado momento, um soldado olha para trás e começa a ver quão distante encontra-se o inimigo, dando-se conta que este já não está tão próximo. Arrisca-se então a parar um instante. Um segundo soldado também pára. O primeiro, o segundo, o terceiro ainda não representam o todo… e por fim acaba que todo o exército se detém. O mesmo ocorre com o aprendizado da fala. Não existe uma primeira palavra; e no entanto, aprendendo, crescemos na linguagem e no mundo. Não concluímos dali que tudo depende de como assimilamos e crescemos nas esquematizações prévias de nossa futura orientação no mundo mediante o aprendizado da linguagem e de tudo que aprendemos pela via do diálogo? Trata-se do processo que hoje chamamos de “socialização”: a maturação na conduta social. É necessariamente também uma assimilação de convenções, de uma vida social ordenada por convenções, estando sempre submetida à suspeita de ideologia. Assim como o aprendizado da fala no fundo é um constante exercício de expressões e de argumentos, também o conjunto que forma nossas convicções e opiniões é um caminho para movimentar-nos numa estrutura preformada de articulações significativas. O que há de verdade nisso? Como se chega a fluidificar por completo esse material pré-formado de expressões e formulações, de modo a alcançar aquela perfeição em que experimentamos a rara sensação de realmente ter dito o que tínhamos em mente? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15.
A capacidade para o diálogo é um atributo natural do homem. ARISTÓTELES definiu o homem como o ser que possui linguagem e linguagem apenas se dá no diálogo. Mesmo que a linguagem possa ser codificada e encontrar uma relativa fixação no dicionário, na gramática, na literatura, sua vitalidade própria, seu amadurecimento e renovação, sua deterioração e depuramento até as elevadas formas estilísticas da arte literária, tudo isso vive do intercâmbio vivo entre os seus interlocutores. A linguagem apenas se dá no diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.
A consciência da história dos efeitos realiza-se no elemento da linguagem. Podemos aprender dos pesquisadores pensantes que a linguagem, em sua vida e acontecer, não pode ser concebida como um mero fenômeno em transformação. O que atua nela é uma teleología como fator interno. Isso significa que as palavras que se formam, os recursos de expressão que figuram numa língua para se poder dizer determinadas coisas, não se fixam ao acaso, pelo simples fato de não desaparecerem. Significa, antes, que assim se constrói uma determinada articulação de mundo, um processo que atua como se fosse dirigido e que podemos sempre de novo observar na criança que está aprendendo a falar. Para isso, reporto-me a uma passagem de ARISTÓTELES que gostaria de explicitar mais detalhadamente, uma vez que ela descreve de modo genial o ato da formação da linguagem, a partir de certa perspectiva. Trata-se do que ARISTÓTELES chama de Epagoge, isto é, a formação do universal. Como se estabelece o universal? Na filosofia diz-se: “Ao conceito universal”; mas nesse sentido também as palavras são evidentemente o universal. Como se dá que elas sejam “palavras”, isto é, que tenham um significado universal? Encontramos ali a primeira (229) apercepção de um ser dotado de sentidos, mergulhado num mar de estímulos flutuantes, e um dia finalmente começa a conhecer algo. É claro que isso não significa dizer que antes estivesse cego. Quando dizemos “conhecer”, referimo-nos ao ato de “reconhecer”, e isso significa distinguir alguma coisa como a mesma na torrente de imagens passageiras. Isso que se distingue é fixado. Mas como? Quando é que uma criança conhece sua mãe pela primeira vez? Quando a vê pela primeira vez? Não. Quando então? Como se dá isso? Podemos afirmar que isso é um acontecimento único, onde se dá um primeiro conhecimento que arranca a criança das trevas da ignorância? Parece-me que não é exatamente assim. ARISTÓTELES descreveu esse processo de maneira maravilhosa. Ele afirma que esse fenômeno é o mesmo que ocorre com um exército em fuga, tomado pela angústia do pânico. Nessa situação, por fim, um soldado começa a deter-se e sondar se o inimigo está realmente tão próximo. O exército não se detém pelo fato de um soldado se deter. Então detém-se um segundo soldado. O exército não se detém pelo fato de dois soldados se deterem. Mas quando se detém realmente um exército? De repente, ele se detém. De repente, volta a obedecer ao comando. No modo de ARISTÓTELES descrever essa cena, encontramos um fino chiste de linguagem. Comando, em grego, significa arche, isto é, principium. Quando é que o princípio se dá como princípio? Por que poder? Essa é na realidade a questão pelo estabelecimento do universal. VERDADE E METODO II OUTROS 17.
A primeira história da retórica foi escrita por ARISTÓTELES. Restaram-nos apenas fragmentos. ARISTÓTELES fez suas formulações, porém, seguindo um esquema projetado primeiramente por Platão. Por trás de todas as pseudo-reivindicações que faziam os retóricos de seu tempo, Platão descobriu uma tarefa autêntica, que apenas o filósofo, o dialético está em condições de resolver, a saber, dominar de tal modo o discurso que deve produzir evidências efetivas que os argumentos adequados a cada caso devem se aproximar daqueles que a alma é especificamente capaz de receber. Isso representa uma tarefa teoricamente esclarecedora, que implica, no entanto, dois pressupostos platônicos: o primeiro que só poderá encontrar (235) com segurança o pseudos “verossímil” do argumento retórico aquele que conhece a verdade, isto é, as ideias; e o segundo é que precisa conhecer na mesma proporção também as almas que deve influenciar. A retórica aristotélica é primeiramente uma elaboração do último tema. Nela realiza-se a teoria da adequação do discurso à alma, formulada por Platão no Fedro, na forma de uma fundamentação antropológica da arte do discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
É inadmissível, porém, a suposição de que eu estaria afirmando não haver perda de autoridade e crítica emancipatória. Se a perda de autoridade é resultado da crítica emancipatória exercida pela reflexão ou se essa perda se manifesta na crítica e na emancipação, é algo que não interessa abordarmos aqui, e talvez nem se trate de uma verdadeira alternativa. A questão a ser debatida é simplesmente se a reflexão sempre dissolve as relações substanciais ou se pode também assumi-las na consciência. É estranho que Habermas conceba de modo unilateral o processo de aprendizagem e educação que emprego (na perspectiva da ética de ARISTÓTELES). A afirmação de que a tradição deveria ser e continuar sendo a única base para justificar preconceitos, como me atribui Habermas, contradiz minha tese de que a autoridade repousa no reconhecimento. Quem alcançou a maioridade pode — mas não é obrigado a — acatar, pelo saber, o que aceitava pela obediência. A tradição não representa nenhuma garantia, não, pelo menos, onde a reflexão exige uma garantia. Mas essa é a questão: Onde é que o exige? Em tudo? A isso contraponho a finitude da existência humana e o particularismo essencial da reflexão. Trata-se de saber se devemos estabelecer a função da reflexão do lado da conscientização, que confronta o vigente com outras possibilidades, rechaçando o estabelecido em favor dessas outras possibilidades, mas podendo também assumir conscientemente o que oferece de fato a tradição, ou se a conscientização sempre e somente dissolve o vigente. Quando Habermas (245) afirma (176) que se pode “retirar da autoridade aquilo que nela era mera dominação (interpreto: o que não era autoridade), podendo ser dissolvido de forma não violenta pelo saber e pela decisão racional”, já não sei por que estamos ainda discutindo. Sobretudo para saber se as ciências sociais (em virtude de que progressos?!) podem ou não ditar a “decisão racional” a alguém. Mas sobre isso falarei mais adiante. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
E mesmo onde se elaborou uma explicação fundamental sobre a diferença entre um saber produtivo (techne) e um saber prático (Phronesis), na Ética de ARISTÓTELES, em muitos pontos não fica claro como se relaciona o saber político do homem de estado e do agente político com o saber técnico do especialista. E verdade que parece haver uma clara hierarquia entre eles, à medida que o general, sob o qual estão a serviço todas as outras “artes”, está ele próprio a serviço da paz, enquanto que o homem de estado atua em vista da felicidade de todos tanto na paz quanto na guerra. Mas a questão básica é esta: Quem é homem de estado? Será aquele especialista que alcança o topo da escala dos cargos políticos, ou o cidadão que como membro do verdadeiro soberano expressa sua decisão pelo voto (e que ao lado disso exerce ainda sua profissão “cidadã”)? No Cármides, Platão levou ao absurdo o ideal técnico de uma ciência política, que seria a ciência da ciência. E claro que não é viável compreender-se o saber em que se baseiam as decisões prático-políticas segundo o modelo do saber produtivo, considerando o saber sobre a produção da felicidade humana como o mais elevado saber técnico. Isso não pode ser ensinado, como já Platão gostava de demonstrar aos filhos dos grandes homens de Atenas, e como ARISTÓTELES, que ensinava em Atenas, mesmo não sendo ateniense, qualificando como sofistas (e não como politólogos) e rechaçando os especialistas em fundações ideais do Estado e no estabelecimento de constituições, que vinham a Atenas. Na verdade, esses especialistas eram tudo, menos homens de estado, isto é, (253) cidadãos líderes em sua própria polis. Mas mesmo que isso tenha sido muito claro para ARISTÓTELES e ele tenha elaborado magistralmente a própria estrutura do saber prático frente à estrutura do saber técnico, ficou em aberto ainda uma questão: Que tipo de saber é esse pelo qual ARISTÓTELES chegou a essas distinções e as ensinava? E que tipo de saber é a ciência prática (e política)? VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Esse saber não é simplesmente um exercício superior daquele saber prático que ARISTÓTELES descreveu e analisou como phronesis. Quem sabe a “filosofia prática” se distinga da “ciência teórica” em ARISTÓTELES exatamente pelo fato de que o “objeto” dessa ciência não é o permanente e os princípios e axiomas supremos, mas a práxis humana sujeita à constante mudança. Mas em certo sentido ela mesma é teórica, já que não ensina um saber sobre a ação real que esclarece e decide uma situação concreta da práxis, mas transmite conhecimentos “gerais” sobre o comportamento humano e as formas de sua existência “política”. Dessa forma, na tradição da história ocidental da ciência, como uma forma própria de ciência, persiste a scientia practica, a filosofia prática, que não é ciência teórica nem é caracterizada suficientemente por sua “referência com a práxis”. Enquanto teoria, não é um saber sobre a ação. Mas não será nada mais que techne ou “doutrina da arte”? Não pode ser comparada com a gramática ou a retórica que dispõem de uma consciência de regras técnicas para uma competência técnica — discursar ou escrever — que possibilita o controle da práxis e também da teoria. Essas teorias da arte, apesar de sua superioridade sobre a mera experiência, parecem reconhecer uma validez última ao exercício do falar ou escrever, como todas as outras technai, todo saber manual está submisso ao uso que se faz do produto criado. Assim, a filosofia prática não é um saber regulador da práxis humana e social do mesmo modo que a gramática e a retórica são doutrinas da arte. E antes a reflexão sobre essa práxis e portanto, em última instância, “geral” e “teórica”. Por outro lado, a teoria e o discurso encontram-se aqui sob condições especiais, à medida que todo saber moral-filosófico e correspondentemente toda teoria geral do estado estão relacionados às condições empíricas especiais do aprendiz. ARISTÓTELES reconhece que esses “discursos gerais” sobre o que seja a mais própria práxis concreta de cada um só se justificam se se estiver tratando com alunos maduros o bastante para empregar esses discursos gerais em circunstâncias concretas de (254) sua experiência vital com responsabilidade autônoma. A ciência prática é, portanto, um saber “geral”, mas certamente um saber que se pode chamar menos de saber produtivo que de crítica. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Com o discurso sobre emancipação, a coisa não é diferente. O conceito de reflexão usado nesse contexto não me parece livre de dogmatismos. Não expressa a conscientização própria da práxis, mas repousa, como formulou certa vez Habermas, num “consenso contrafáctico”. Isso implica a pretensão de saber antecipadamente — antes da confrontação prática — com que não se está de acordo. Mas o sentido da práxis hermenêutica não consiste em partir desse consenso contrafáctico, mas de possibilitá-lo e realizá-lo, o que (272) significa convencer por meio de uma crítica concreta. O caráter dogmático do conceito de reflexão, pressuposto por Habermas, aparece expressamente no seguinte exemplo: exige “desprender-se do grau de reflexão de uma racionalidade tecnologicamente limitada”, mediante uma crítica justificada à superstição dos especialistas da sociedade. Isso implica uma ideia de graus que me parece falsa. Mesmo face à “nova função da ciência” dentro da sociedade vale lembrar que a racionalidade da capacidade de fazer — o que ARISTÓTELES chamou de techne — é diferente e não uma espécie de reflexão inferior daquela que se dá no consenso racional dos cidadãos. A reflexão hermenêutica, porém, dedica-se à sua elucidação. Na verdade, não pode ser obtida sem um constante jogo recíproco de argumentos críticos; mas argumentos que reflitam as convicções concretas dos interlocutores. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
O conceito de manipulação torna-se ambíguo nesse contexto. Toda influência emocional produzida pelo discurso representa esse tipo de manipulação. E no entanto isso que, sob a designação de retórica, constitui um momento integral da vida social desde antigamente não é uma mera técnica social. O próprio ARISTÓTELES já chamava a retórica de dynamis e não techne, tal a sua pertença ao zoon logon echon. Mesmo as formas tecnifiçadas da formação de opinião desenvolvidas por nossa sociedade industrial implicam sempre um determinado momento de consentimento, seja por parte do consumidor, que pode também negar seu consentimento, seja no fato de — e isso é o decisivo — que nossos meios de comunicação não representam apenas o prolongamento de uma vontade política unitária, mas tornam-se palco de debates políticos que em parte refletem, em parte determinam os acontecimentos políticos na sociedade. Uma teoria da hermenêutica profunda, ao contrário, deve justificar uma reflexão emancipatória baseada na crítica social. Ela deve esperar que uma teoria geral da linguagem natural permita “derivar o princípio do discurso racional como o regulador necessário de todo discurso real, por mais distorcido que este seja”. Essa teoria da hermenêutica implica, contra sua vontade — sobretudo face à organização do estado social moderno e de seus modos de formação de opinião — , a função do engenheiro social que empreende sem espaço para a liberdade. Este, enquanto possuidor dos meios publicitários e da verdade por ele pretendida, deveria estar investido do poder de um monopólio da opinião pública. Não é uma hipótese fictícia. A retórica não pode ser relegada, como se não precisássemos dela ou se nada dependesse dela. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já ARISTÓTELES tinha em mente em sua crítica à ideia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto ideia geral, essa ideia da vida justa é uma ideia “vazia”. Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da vida social sejam uma mera comunidade de diálogo, de modo a sentir-nos dependentes de um diálogo livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de jogo. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O jogo das forças complementa-se com o jogo das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do diálogo, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Dentro do âmbito de conferências da Jungius-Geselschaft, é difícil escolher um tema com um caráter tão acentuado de parecer um contra-tema como o tema retórica e hermenêutica. Isso porque o que caracteriza Jungius, e não apenas aos olhos de um Leibniz, tornando-o um dos grandes pioneiros da nova ciência do século XVII é justamente seu claro afastamento do modo de proceder dialético e hermenêutico e sua aproximação com a empiria e com uma lógica demonstrativa (em todo caso, purificada do endeusamento servil de ARISTÓTELES). Além de ter sido criado na cultura da escola humanista, baseada na dialética e na retórica, mais tarde ele atribuiu a esta escola um valor propedêutico, ressaltando a importância, sobretudo para a teologia da controvérsia, do fortalecimento da “capacidade dialética e hermenêutica” (carta a Jac Lagus, 1638). Encontramos isso registrado numa de suas cartas e possui um cunho muito mais pedagógico-propedêutico do que uma real valoração, uma vez que Jungius, na verdade, tenta incutir em seu antigo aluno o interesse pela metodologia e pela lógica da ciência. Mas mesmo assim, essa postura flexível denota a presença geral da formação retórica, que era óbvia para um homem de ciência de então. É só a partir desse pano de fundo que se pode avaliar o mérito próprio de homens como Jungius, o pioneiro de uma nova reflexão científica. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Assim, a revitalização humanista da retórica, que apelava mais a Cícero e Quintiliano do que a ARISTÓTELES, desviou-se rapidamente das origens e entrou em novos campos de forças que transformam sua figura e sua influência. De certo, a figura teórica da retórica pode ser concebida como uma lógica da verossimilhança, formando uma unidade indissolúvel com a dialética. Com isso, ele acabou provocando a liberação da escola do formalismo lógico e de uma dogmática teológica apoiada nas autoridades. Mas a lógica da verossimilhança está demasiadamente subordinada à lógica para poder, com o tempo, arrebatar a primazia à lógica da necessidade exposta por ARISTÓTELES em sua Analítica. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Analisando primeiramente Melanchton, vemos que o princípio bíblico da teologia luterana constitui um pressuposto óbvio no contexto de seu curso de retórica, determinando igualmente seu conteúdo. Isso não detém, porém, o ductus da argumentação, que se mantém totalmente dentro do espírito pedagógico peripatético. Melanchton procura justificar o sentido e o valor da retórica num nível geral na nova virada rumo à leitura, como descrevemos acima. “Isso porque nada é capaz de compreender espiritualmente longas exposições e debates complexos, se não for auxiliado por uma espécie de arte que lhe facilite o ordenamento, a articulação das partes e a intenção dos oradores, e lhe ensine um método para interpretar e aclarar as coisas que são obscuras”. E claro que tem presente também as controvérsias teológicas, mas ao relacionar estreitamente a retórica com a dialética, Melanchton segue a ARISTÓTELES e à tradição medieval e humanista, o que significa, sem atribuir-lhe nenhum âmbito especial, mas sublinhando sua aplicabilidade e utilidade geral. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Numa análise mais precisa, vemos que aqui se esgrimem as metáforas conceituais clássicas da retórica contra a submissão dogmática da Escritura sob a autoridade magisterial da Igreja. Flacius apresenta o scopus como a cabeça ou o rosto do texto que se (287) manifesta às vezes já no título, mas que aflora sobretudo nas linhas-mestras da exposição do pensamento. Desse modo assume e elabora a antiga perspectiva retórica da dispositio. Há que se olhar com cuidado onde, para usar essa imagem, está a cabeça, o peito, as mãos ou os pés, e como os distintos membros e partes se conjugam com o todo. Flacius chega a falar de uma “anatomia” do texto. Aqui está o Platão mais autêntico. Em lugar da mera justaposição de palavras e frases, cada discurso deve organizar-se como um ser vivo, deve ter seu próprio corpo, de modo que não lhes faltem a cabeça nem os pés, mas que os membros centrais e as extremidades se relacionem entre si em boa harmonia e remetam à totalidade. É isso o que diz o Fedro (264 c). Também ARISTÓTELES segue esse esquema conceitual retórico quando em sua Poética descreve a construção de uma tragédia: hosper zoon hen holon. A expressão “isso não tem pés nem cabeça” pertence a essa mesma tradição. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Uma das teses do Platão mais autêntico (tese que ARISTÓTELES comentou e buscou fundamentar) também é que a essência da retórica não se esgota nessas artes que se podem formular como regras técnicas. Aquilo que fazem os mestres de retórica, criticados por Platão no Fedro, é algo que está “aquém” da verdadeira arte. Pois a autêntica arte da retórica é inseparável do conhecimento da verdade e do conhecimento da “alma”. Platão refere-se ao estado anímico do ouvinte, cujos afetos e paixões o discurso deve despertar para poder persuadir. Esse é o ensinamento do Fedro, e toda a retórica segue assim o princípio do argumentum ad hominem no trato cotidiano com as pessoas até os nossos dias. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
É verdade, porém, que na época da nova ciência e do racionalismo, desenvolvido durante os séculos XVII e XVIII, o vínculo entre retórica e hermenêutica se afrouxa. H. Jaeger chamou a atenção ultimamente para o papel que desempenhou Dannhauer com sua ideia do boni interpretis. Esse autor parece ter sido o primeiro a utilizar a palavra “hermenêutica” em sentido terminológico, em estreita conexão com o escrito correspondente do Organon de ARISTÓTELES. Isso mostra que a intenção de Dannhauer é continuar e acabar o que ARISTÓTELES havia iniciado com seu escrito Peri hermeneias. Como ele mesmo afirmou: “os limites do Organon de ARISTÓTELES se ampliam com a anexação de uma nova cidade”. A sua orientação é, pois, a lógica, à qual ele quer justapor como uma parte a mais, (288) como outra ciência filosófica, a ciência da interpretação, e isto de um modo tão universal que ela preceda a hermenêutica teológica e a hermenêutica jurídica, como a lógica e a gramática precedem toda aplicação específica. Dannhauer deixa de lado o que ele chama de exposição retórica, ou seja, o uso e a utilidade que se busca com um texto e que se costuma chamar de accomodatio textus, para tentar alcançar pela sua hermenêutica uma infalibilidade humana e racional equiparável à lógica, na compreensão geral dos textos. É essa tendência a uma espécie de nova lógica o que a leva a um paralelismo com a lógica analítica e a uma distinção explícita desta. Ambas as partes da lógica, a analítica e a hermenêutica, se relacionam com a verdade e ambas ensinam a refutar o erro. Mas diferem no fato de que a hermenêutica ensina a investigar o verdadeiro sentido de uma frase errônea, enquanto que a analítica deriva a verdade da conclusão de princípios verdadeiros. Aquela se refere, pois, unicamente ao “sentido” das frases, não à retidão objetiva. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Parece-me um erro considerar essa orientação lógica da hermenêutica como a verdadeira realização da ideia de hermenêutica, como faz H. Haeger. O próprio Dannhauer, um teólogo de Estrasburgo dos inícios do século XVII, professa-se seguidor do Organon de ARISTÓTELES, que o teria libertado das confusões da dialética de sua época. Mas, desconsiderando essa orientação teórico-científica e examinando o conteúdo, vemos que compartilha quase plenamente com a hermenêutica protestante. E, se esquece sua relação com a retórica, ele o faz por referência imediata a Flacius, que teria dedicado suficiente atenção a esse aspecto. Mas, enquanto teólogo protestante, compartilha expressamente do reconhecimento da relevância da retórica. Em sua Hermenêutica sacrae scripturae cita largamente Agostinho para demonstrar que na Sagrada Escritura não existe uma mera ausência de arte (como poderia parecer desde o ideal ciceroniano da retórica), mas um gênero especial de eloquência próprio (289) a homens de autoridade suprema e a homens quase divinos. Vê-se como o cânon estilístico da retórica humanista continuava vigente no século XVII, uma vez que o teólogo cristão só podia precaver-se apelando para o fato de que ele, com Agostinho, defendia o aspecto retórico da Bíblia. A novidade de sua reorientação racionalista em relação à proposta metodológica da hermenêutica, quanto ao conteúdo, não atinge a substância desta, tal como havia sido inaugurado pelo princípio bíblico da Reforma. O próprio Dannhauer refere-se constantemente às questões teológicas controversas e insiste, como todos os outros luteranos, que a capacidade hermenêutica e a possibilidade de compreender a Sagrada Escritura é comum a todos os homens. Ele também considera a formação hermenêutica um bom instrumento para rebater os papistas. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Seja como for, se desenvolvermos ou não a autoconcepção metodológica na orientação da lógica ou da retórica, ou, correspondentemente, da dialética, o certo é que a “arte” da hermenêutica possui uma universalidade que transcende todas as formas de aplicação: aplicação à Bíblia, aos clássicos, aos textos legais. Isso pode ser constatado em ambas as orientações e fundamenta-se na problemática peculiar entranhada no conceito de “teoria da arte” que tem sua origem na formulação de conceitos introduzida por ARISTÓTELES. Frente aos casos “puros” da techne ou da teoria da arte, a retórica e a hermenêutica representam casos especiais. Ambas têm a ver com a universalidade do caráter de linguagem e não com esferas concretas do produzir humano. Com isso, ambas avançam numa transição mais ou menos fluida desde a faculdade da fala e da compreensão, comum a todos os homens, até o uso consciente de normas artificiais da linguagem e da compreensão. Mas isso apresenta um outro aspecto importante que não se pode perceber corretamente a partir do conceito moderno de ciência nem a partir do conceito antigo de techne. Em ambos os casos, a “arte pura” só pode desligar-se até certo ponto das condições naturais e sociais da praxis cotidiana. No caso da retórica, isso significa que o mero conhecimento das regras e seu aprendizado, à margem da disposição natural e do exercício natural, não ajudam à eloquência. Significa também, por outro lado, que a mera habilidade do discurso, se não possuir um conteúdo adequado, torna-se sofística vazia. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a filosofia prática em ARISTÓTELES. Chama-se “philosophia” e isso implica um interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua ARISTÓTELES em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois (291) bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que ARISTÓTELES, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “techne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “technai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da ideia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a ideia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma consequência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa consequência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
A apresentação de Dannhauer feita por Jaeger (47-59) permite compreender tanto seu conceito de teoría da ciência como a denominação de “hermenêutica”. Redescobriu por si mesmo o Organon de ARISTÓTELES e essa descoberta representou para ele o inicio de toda sua existência espiritual. É evidente que o retorno ao verdadeiro ARISTÓTELES o imuniza contra a lógica ramista (60) e permite-lhe encontrar uma confirmação no aristotelismo de Altorfer. Junto à lógica do enunciado, desenvolvida no escrito Peri hermeneias de ARISTÓTELES, Dannhauer coloca a hermenêutica generalis como uma “nova cidade” (50). A temática do Organon aristotélico estende-se assim à interpretação das palavras e escritos de outros. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Jaeger afirma que Dannhauer adere desse modo à teoria mais recente sobre a Analítica que dominava o aristotelismo da época e que se conhece como methodus resolutiva (51s). Sobre isso, teremos algo mais para aprender quando apresentar sua anunciada obra maior. Pelo que me parece, esse método é uma continuação livre do sincretismo da Antiguidade tardia da lógica aristotélica e da dialética platônica sobre a qual ARISTÓTELES apresenta apenas algumas amostras escassas: ARISTÓTELES refere-se sempre ao conceito geométrico de analyein, tanto ao transformar o procedimento dedutivo e demonstrativo num tema da lógica como ao aplicá-lo à estrutura da reflexão prática (busca dos meios para o fim). Isso não deveria ser obscurecido pela referência de Jaeger ao uso neoplatônico da Analítica como via de acesso aos princípios (52). O recurso a essa analítica torna-se determinante para o programa hermenêutico de Dannhauer. Na verdade, esse considerou o escrito aristotélico Peri hermeneias como um procedimento de síntese (reunião das partes do discurso). A essa lógica sintética do enunciado justapõe a hermenêutica como um trabalho analítico. Pois bem, essa ampliação da analítica aristotélica tem uma importante consequência. Como a doutrina do raciocínio formal garante unicamente a dedução imanente e não a retidão objetiva, também a hermenêutica, em Dannhauer, pretende descobrir o reto sentido de um enunciado e não o sentido de um enunciado correto. Não busca uma derivação do enunciado partindo de princípios. Dannhauer é muito radical nisso, e Jaeger mostra que desse modo segue uma antiga doutrina medieval sobre a distinção entre sensus e sententia (56). Outros, ao contrário, reconheceram na hermenêutica um caminho próprio, embora indireto e subordinado, para o conhecimento da verdade. Tal foi ainda a concepção de Kerckermann (1614), que (294) fala por isso de uma clavis intelligentiae (71s). VERDADE E METODO II OUTROS 21.
A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da filosofia prática desde ARISTÓTELES, defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da “interpretação” e a “compreensão”. São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse “também”. Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Ora, há pelo menos um paradigma nos moldes da teoria da ciência que poderia dar uma certa legitimidade a essa reorientação da reflexão metodológica das ciências do espírito, e essa é a “filosofia prática” fundada por ARISTÓTELES. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Frente à dialética platônica, entendida como um saber teórico, ARISTÓTELES reivindicou para a filosofia prática uma autonomia peculiar e iniciou uma tradição que exerceria sua influência até o século XIX a dentro, e acabaria sendo dissolvida no século XX pela “ciência política” ou “politologia”. Mas, apesar de toda determinação com que ARISTÓTELES apresenta a ideia da filosofia prática contra a ciência unitária da dialética de Platão, o aspecto teórico-científico da chamada “filosofia prática” permaneceu na penumbra. Algumas iniciativas que se estendem até os nossos dias buscam ver no “método” da ética aristotélica, introduzida por ele como “filosofia prática” e na qual a virtude da racionalidade prática, a phrone-sis, ocupa um lugar central, nada mais que um exercício de racionalidade prática. (O fato de toda ação humana, e portanto também a exposição dos pensamentos aristotélicos sobre a filosofia prática, estar sujeita aos critérios da racionalidade prática nada diz sobre o que seja o método da filosofia prática.) A discussão sobre esses pontos não deve causar muita surpresa, uma vez que os enunciados gerais aristotélicos sobre a metodologia e a sistemática das ciências são bastante escassos e contemplam menos a natureza metodológica das mesmas do que a diversidade de âmbitos de seus objetos. Isso vale sobretudo para o primeiro capítulo da Metafísica E e sua duplicação em K 7. Decerto, nela destaca-se a física (e em última instância a “filosofia primeira”), como ciência teórica, frente à ciência prática e poiética. Mas se examinarmos o modo de fundamentar a distinção entre as ciências teóricas e as não teóricas, veremos que se fala unicamente da diversidade dos objetos desse saber. Ora, isso corresponde sem dúvida ao princípio geral metodológico de ARISTÓTELES, segundo o qual o método deve reger-se sempre por seu objeto, e o tema aparece claro no que se refere aos objetos. No caso da física, seu objeto caracteriza-se pelo automovimento. O objeto do saber produtivo, ao contrário, a obra a ser criada, tem sua origem no fabricante e em seu saber e poder. Igualmente o que orienta o sujeito na ação prática política é determinado a partir do próprio sujeito e de seu próprio saber. Poderia parecer que ARISTÓTELES está falando aqui do saber técnico (o do médico, por exemplo) e do saber prático daquele que toma uma decisão racional (prohairesis), como se esse saber, ele mesmo, constituísse a ciência poiética ou prática que corresponde à física. É claro que não é o caso. As ciências que se distinguem aqui (junto com a distinção teórica entre física, matemática e teologia) aparecem como ciências que buscam conhecer os archai e as aitiai. Trata-se de uma investigação da arche, ou seja, não do saber aplicado do médico, do artesão ou do político, mas do que se pode dizer e ensinar em geral. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
É importante observar que aqui ARISTÓTELES não reflete sobre essa distinção. Para ele é óbvio que nesses âmbitos o saber em geral não exige nenhuma autonomia própria, mas supõe sempre sua realização na aplicação concreta. Mas nossa reflexão mostra que é necessário distinguir claramente entre as ciências filosóficas, que estudam a realização prática ou poiética do fazer ou do fabricar (304) (com inclusão do poetizar e do “fazer” discursos), enquanto investigação dessas realizações, e a realização, ela mesma. A filosofia prática não é a virtude da racionalidade prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Há, certamente, uma resistência em aplicar o conceito moderno de teoria à filosofia prática, que já pretende ser prática por sua própria autodeterminação. Por isso, estabelecer condições especiais de cientificidade, que sejam válidas para essas esferas, sobretudo quando ARISTÓTELES as caracterizava com a vaga indicação de que são ciências menos exatas, é um problema extremamente árduo. No caso da filosofia prática, a situação é muito mais complexa e exigiu de ARISTÓTELES uma certa reflexão metodológica. A filosofia prática necessita de uma legitimação de caráter próprio. O problema decisivo é, evidentemente, que essa ciência prática está relacionada com o problema global do bem na vida humana, que não se restringe, como as technai, a uma esfera determinada. Apesar disso, a expressão “filosofia prática” significa que para os problemas práticos não convém fazer-se um uso determinado de argumentos de tipo cosmológico, ontológico e metafísico. Se aqui for preciso limitar-se ao que for relevante para o ser humano, ao bem prático, o método que aborda essas questões do fazer prático é sem dúvida radicalmente diferente da razão prática. Já no aparente pleonasmo de uma “filosofia teórica” e principalmente na autodesignação “filosofia prática”, podemos encontrar algo que acompanha, até hoje, a reflexão dos filósofos: o fato de que a filosofia não pode renunciar completamente à pretensão de não somente saber, mas também de ter influência prática, isto é, à pretensão de promover, enquanto “ciência do bem no âmbito da vida humana”, esse mesmo bem. Para nós, isso é algo óbvio também nas ciências poiéticas, as chamadas technai. Essas “artes”, nas quais o uso é o decisivo. No caso da ética política, a coisa é diferente e, sem dúvida, é quase impossível renunciar a essa pretensão prática. É por isso que se manteve definitivamente até nossos dias. A ética não se limita a descrever as normas vigentes, mas busca fundamentar sua validez e ou introduzir normas mais justas. Esse passou a ser um verdadeiro problema, ao menos desde a crítica de Rousseau ao orgulho racional do Iluminismo. Como a “ciência filosófica das coisas morais” pode legitimar seu direito à existência se a incorruptibilidade da consciência moral natural pode na verdade conhecer e escolher o bem e o dever com uma precisão insuperável e com a mais apurada sensibilidade? Aqui certamente não é o lugar para analisar mais amplamente como, frente a esse desafio de Rousseau, Kant fundamentou a tarefa da filosofia moral. Tampouco é possível explicar como ARISTÓTELES (305) coloca e resolve o mesmo problema sublinhando as condições especiais que encontra o aprendiz capaz de receber de modo razoável uma instrução teórica sobre o “bem prático”. A filosofia prática é aqui somente um exemplo de uma tradição desse saber que não se ajusta ao conceito moderno de método. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Ora, é uma opinião amplamente aceita que Platão compreendeu a dialética, quer dizer, a própria filosofia como uma techne e destacou sua peculiaridade frente ao resto das technai unicamente no sentido de que é o saber do supremo, inclusive o saber da coisa suprema que é preciso conhecer: o bem (megiston mathema). Podemos dizer o mesmo, mutatis mutandis, da retórica filosófica postulada por ele e portanto de toda a hermenêutica. Só ARISTÓTELES teria encontrado a importante distinção entre ciência, techne e racionalidade prática (phronesis). VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Sobre esse fundo é preciso ver a distinção entre filosofia teórica, filosofia prática e filosofia poiética, que se inicia em ARISTÓTELES e deve determinar o grau teórico-científico de sua filosofia prática. (308) O destaque dialético que Platão confere à retórica no Filebo é um bom indicador. A retórica é inseparável da dialética; a persuasão, que é um convencer, é inseparável do conhecimento da verdade. Assim mesmo, a compreensão deve ser concebida a partir do saber. E uma capacidade de aprendizagem, e isso o sublinha ainda ARISTÓTELES quando trata da synesis. Pois bem, o verdadeiro orador dialético, tanto quanto o estadista e qualquer um que busque conduzir sua própria vida, persegue “o bem”. Mas o bem não se apresenta como um ergon, produzido pelo fazer, mas como praxis e eupraxia (quer dizer, como energeia). Nessa linha, a política aristotélica não trata a educação como uma filosofia poiética, embora tenha de “fazer” bons cidadãos. Trata-a, antes, como teoria das formas de constituição enquanto filosofia prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Decerto, a ideia aristotélica de uma filosofia prática não sobreviveu em sua globalidade, mas apenas em seu aspecto político. A filosofia prática política foi se aproximando do conceito de uma técnica ao pretender oferecer uma espécie de competência de base filosófica ao serviço da razão legisladora. Esse esquema pôde integrar-se ainda, durante um período, no pensamento científico da época moderna. A filosofia moral grega, ao contrário, marcou a posteridade e sobretudo a Idade Moderna não tanto em sua forma aristotélica mas em sua versão estoica. Mesmo assim, a retórica de ARISTÓTELES exerceu pouca influência na tradição da retórica antiga. Para os mestres da retórica e como guia para uma oratória perfeita era demasiado filosófica. Mas justamente em virtude de seu “caráter filosófico”, que a associava, como disse ARISTÓTELES, à dialética e à ética (peri ta ethe pragmateia, Theet. 1356 a26), encontrou seu novo momento na época do humanismo e da Reforma. Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores e sobretudo Melanchton fizeram da retórica aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui confluíram duas correntes: A nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da imprensa, e a virada teológica da Reforma frente à tradição e na direção do princípio bíblico. O lugar central da Sagrada Escritura para o anúncio do Evangelho determinou sua tradução para as línguas vernáculas, e também a doutrina do sacerdócio geral suscitou um uso da Escritura que precisava de uma nova direção. Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem dispunham de preleções discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de almas, nem na do literato. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Enquanto tal, a hermenêutica explicita o que acontecia nessa práxis. A reflexão sobre a práxis da compreensão não se pode dissociar da tradição da retórica. Nesse sentido, uma das contribuições mais importantes de Melanchton à hermenêutica foi ter elaborado a doutrina dos scopi, ou perspectivas. Melanchton observou que, assim como os oradores, no começo de seus escritos, ARISTÓTELES indica a perspectiva a partir da qual é preciso compreender suas afirmações. É bem diferente a tarefa de interpretar uma lei, a Bíblia ou uma obra poética “clássica”. O “sentido” desses textos não se determina para uma compreensão “neutra”, mas somente a partir da perspectiva de sua pretensão de validade. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Independentemente de toda codificação, a tarefa de busca do direito e do juízo correto implica uma inevitável tensão, já analisada por ARISTÓTELES: a tensão entre a universalidade da legislação vigente — codificada ou não — e a particularidade do caso concreto. É evidente que o caso concreto numa questão jurídica não é um enunciado teórico, mas um “resolver coisas com palavras”. A aplicação da lei pressupõe sempre uma interpretação correta. Cabe afirmar, nesse sentido, que toda aplicação de uma lei ultrapassa a mera compreensão de seu sentido jurídico e cria uma nova realidade. Acontece o mesmo com as artes reprodutivas, nas quais se transcende a obra dada, sejam notas musicais ou um texto dramático, à medida que a interpretação cria e estabelece novas realidades. Mas nas artes reprodutivas podemos afirmar que cada representação se baseia numa determinada interpretação da obra dada. Faz sentido distinguir e afirmar o grau de adequação que oferecem essas representações entre as numerosas interpretações possíveis. Isso implica que, ao menos no teatro literário e no caso da música, a própria representação em sua definição ideal não é uma mera representação, mas interpretação. É por isso que, especialmente no caso da música, falamos de interpretação de uma obra pelo executante. Creio que a aplicação da lei num caso particular implica, de modo análogo, um ato interpretativo. Mas isso significa que toda aplicação de disposições legais que aparece como correta concretiza e aprimora o sentido de uma lei. Parece-me que Max Weber tem razão quando diz: “Só os profetas adotaram uma atitude criativa, isto é, geradora de um novo direito frente ao direito vigente. No mais, não se trata de um elemento especificamente moderno, mas justamente o que caracteriza as práxis jurídicas maximamente ‘criativas’, do ponto de vista objetivo, é o fato de se apresentarem subjetivamente como meros fragmentos orais — mesmo que eventualmente latentes — de normas já vigentes; de se apresentarem como seus intérpretes e aplicadores e não como seus criadores”. Isso corresponde à antiga sabedoria aristotélica segundo a qual a busca do direito precisa da constante ponderação complementar da equidade. Essa sabedoria reza que a perspectiva da equidade não se opõe ao direito, mas contribui para a plenitude do sentido legal, (311) mediante a atenuação da literalidade do direito. O fato de esses velhos problemas de busca de direito no princípio da era moderna se agudizarem com a recepção do direito romano, ao questionarem-se certas formas tradicionais de jurisprudência com o novo direito de jurisconsultos, deu uma relevância especial à hermenêutica jurídica como teoria da interpretação. A defesa da aequitas ocupa um amplo espaço no debate do primeiro período da época moderna desde Budeus até Vico. Pode-se afirmar inclusive que o conhecimento do direito pelo jurista continua a chamar-se com boas razões de “jurisprudência”, literalmente “prudência jurídica”. Essa palavra recorda ainda o legado da filosofia prática, que considerava a prudentia como a virtude suprema de uma racionalidade prática. O fato de a expressão “ciência do direito” ter prevalecido no final do século XIX indica a perda da ideia de uma peculiaridade metodológica desse saber jurídico e de sua determinação prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Quando partimos da panorâmica do desenvolvimento da hermenêutica moderna e remontamos à tradição aristotélica da filosofia prática e da teoria da arte, é necessário perguntarmos até que ponto a tensão existente em Platão e ARISTÓTELES entre um conceito técnico de ciência e um conceito prático-político, que inclui os fins últimos do ser humano, pode ser útil no terreno da ciência moderna e de sua teoria. No que se refere à hermenêutica, é natural confrontarmos a dissociação entre teoria e praxis — que corresponde ao conceito moderno de ciência teórica e a sua aplicação prático-técnica — com uma ideia do saber que percorreu o caminho inverso, partindo da praxis para alcançar sua conscientização teórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Da dupla referência que a hermenêutica mantém com a retórica tradicional e com a filosofia prática de ARISTÓTELES parece desprender-se que o problema da hermenêutica pode experimentar uma clareza muito maior do que seria possível partindo da problemática imanente à metodologia científica atual. É uma tarefa muito árdua determinar o lugar que ocupa uma disciplina como a retórica aristotélica no âmbito da teoria da ciência. Mas temos razões para associá-la à poética e não podemos negar aos dois escritos atribuídos a ARISTÓTELES sua intenção teórica. Não pretendem substituir os manuais técnicos nem promover a arte da palavra e da poesia num sentido técnico. ARISTÓTELES coloca essas artes no mesmo nível que a medicina e a ginástica, que nesse contexto ele qualifica como ciências técnicas. Não foi exatamente em sua “Política”, onde elaborou teoricamente um imenso material sobre o saber político, que ARISTÓTELES ampliou o horizonte de problemas da filosofia prática de tal modo que a questão a respeito da melhor constituição, e assim, uma questão prática, a questão do “bem”, elevou-se acima da variedade das formas de constituição estudadas e analisadas por ele? Como é que a arte da compreensão a que damos o nome de hermenêutica irá encontrar então seu lugar no horizonte do modo de pensar aristotélico? VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega syne-sis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por (315) ARISTÓTELES em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de techne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a ideia de filosofia prática. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, ARISTÓTELES analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que ARISTÓTELES chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio ARISTÓTELES se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua filosofia prática. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma (316) descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Essas reflexões permitem perfilar com precisão a questionada descrição inicial da tarefa da filosofia prática e política. O que Burnet considerou uma adaptação de ARISTÓTELES ao uso de linguagem que faz Platão do termo technesl tem seu verdadeiro fundamento na interferência que existe entre o saber “poiético” da techne e a “filosofia prática” que estuda “o bem” dentro de uma generalidade típica. Essa filosofia prática como tal não é a phronesis. Praxis, prohairesis, techne e methodos aparecem também aqui numa sequência e formam de certo modo um contínuo de transições. Mesmo assim, ARISTÓTELES reflete também sobre o papel que pode desempenhar a politike na vida prática. Compara o postulado dessa pragmática com o ponto que o arqueiro toma como mira quando aponta para o objetivo da caça. Com esse ponto na mira acertará melhor. Isso não significa que a arte do tiro a arco consista somente em apontar para esse ponto. Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Mas o ponto pode ser útil para facilitar a pontaria, para manter a direção do disparo com mais precisão. Aplicando essa imagem à filosofia prática, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia, em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos, pela racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre. Também aqui a pragmática ética pode oferecer certa ajuda para se evitar conscientemente os erros, fazendo com que a reflexão racional tenha consciência dos objetivos últimos de sua ação. Essa pragmática não se limita a um campo particular. Também não é a aplicação de uma faculdade a um objeto. Pode desenvolver métodos — são regras práticas mais que métodos — e pode converter-se em verdadeira maestria num indivíduo determinado. Mas, apesar disso, não é uma “faculdade” que escolhe cada vez (por conta própria ou a pedido) sua tarefa como uma capacidade técnica. Apresenta-se, antes, como a praxis da vida a apresenta. Assim, a filosofia prática de ARISTÓTELES difere do saber técnico supostamente neutro do especialista, que aborda (317) as tarefas da política e da legislação como um observador distante. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Esse é o ensinamento inequívoco de ARISTÓTELES no capítulo que passa da ética à política. A filosofia prática pressupõe já estarmos conformados pelas ideias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda vida social. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A vida social consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as ideias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios (318) de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em ARISTÓTELES poderia ser chamada também de “política”. ARISTÓTELES classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Creio que os problemas da razão prática apresentam-se principalmente com relação a autocompreensão das chamadas ciências do espírito. “Que lugar ocupam as humanities, as “ciências do espírito, no universo das ciências? Tentarei mostrar que a filosofia prática de ARISTÓTELES — e não o conceito moderno de método e de ciência — representa o único modelo viável para formarmos uma ideia adequada das ciências do espírito. Uma breve reflexão histórica pode servir de introdução a essa tese controversa. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Essas observações prévias serviram para dar credibilidade ao significado da filosofia prática de ARISTÓTELES e da tradição despertada por esta. Trata-se, em última instância, de encontrar uma base comum além da retórica e da crítica, além da figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científica moderna que degrada tudo em objetividade. ARISTÓTELES desenhou a filosofia prática, que engloba a política, num debate aberto com o ideal da teoria e da filosofia teórica. Elevou, assim, a praxis humana a uma esfera autônoma do saber. “Praxis” designa o conjunto das coisas práticas e portanto toda conduta e toda auto-organização humana nesse mundo, incluindo também a política e dentro dessa a legislação. Essa, a política, é a principal tarefa cuja solução regula e ordena os assuntos humanos; ela é auto-regulação através da “constituição”, no sentido mais amplo de uma vida social e estatal ordenada. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? ARISTÓTELES fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de ARISTÓTELES é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de ARISTÓTELES, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
(325) A “filosofia prática” de ARISTÓTELES está baseada nessa verdade, personificada por Sócrates. Deve haver uma explicação sobre o postulado dessa racionalidade e responsabilidade que é própria do filósofo, e isso significa que exige o esforço do conceito. Ao lado da teoria e além da paixão do saber que domina tudo e que tem sua base antropológica no fato primordial da curiosidade, devemos compreender que existe e por que existe outro tipo de uso onicompreensivo da razão. Esse uso não consiste numa capacidade que pode ser objeto de aprendizagem ou num conformismo cego, mas numa auto-responsabilidade racional. Pois bem, o pensamento decisivo, válido tanto para as chamadas ciências do espírito como para a “filosofia prática”, é que em ambas a natureza finita do ser humano adquire uma posição decisiva ante a tarefa infinita do saber. Essa é a característica essencial do que chamamos de racionalidade ou do que indicamos ao dizer que alguém é uma pessoa racional, quando este supera a tentação dogmática apegada a todo suposto saber. Por isso, é nas condições de nossa existência finita que devemos buscar o fundamento do que é possível querer, desejar e realizar com nossa própria ação. A fórmula aristotélica para expressá-lo é: o princípio que rege os assuntos práticos é o “que” (dass = o fato de que), o hoti. Não se trata de nenhuma sabedoria secreta. A afirmação de que o princípio é a facticidade só requer a explicação de seu significado no âmbito de uma teoria da ciência. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Como pode a facticidade adquirir o caráter de princípio, adquirir o caráter de “ponto de partida” primeiro e determinante? O que significa “fato”, nesse contexto, não é a facticidade dos fatos estranhos, dos quais pensamos ter dado conta à medida que aprendemos a explicá-los. Trata-se da factualidade das crenças, valorações, usos partilhados por todos nós; é o paradigma de tudo que constitui nosso sistema de vida. A palavra grega que designa o paradigma dessas factualidades é o conhecido termo ethos, o ser que se consegue com o exercício e o hábito. ARISTÓTELES é o fundador da ética porque deu realce a esse caráter da factualidade como sendo decisivo. No caso de a possuirmos, a phronesis, essa racionalidade responsável, é a garantia de que esse ethos não é um mero adestramento ou adaptação e nada tem a ver com o conformismo de uma consciência duvidosa. Não é um dom natural. O partilhar uma crença e decisões comuns em intercâmbio com os semelhantes e em convivência na sociedade e no estado não é, pois, conformismo. Constitui a dignidade do (326) ser-próprio e da autocompreensão humanos. A pessoa que não é associai acolhe sempre o outro e aceita o intercâmbio com ele e a construção de um mundo comum de convenções. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Uma ciência com pressupostos de conteúdo! Aqui surge, a meu ver, a verdadeira problemática epistemológica sob a qual se encontra a filosofia prática. ARISTÓTELES refletiu sobre isso. Sustentou, por exemplo, que para aprender algo sobre filosofia prática, sobre os conceitos normativos da conduta humana ou sobre as constituições racionais do estado, é preciso já ter recebido uma educação, estar capacitado para a racionalidade. A “participação” precede aqui a “teoria”. São temas que Kant desenvolveu com mais precisão em outro contexto: Como se pode admitir ainda uma teoria e uma filosofia da moral quando descobrimos na racionalidade uma qualidade moral do ser humano que não depende de suas faculdades teóricas? Existe uma célebre nota de Kant em seus diários que diz o (327) seguinte: “Rousseau colocou-me no devido lugar!” Queria dizer com isso: aprendi de Rousseau que o aperfeiçoamento da civilização e o nível da cultura compreensiva não são garantia para o progresso na moralidade humana. Na verdade, sua conhecida filosofia moral repousa precisamente nessa profunda convicção. A autojustificação moral do homem não é uma tarefa da filosofia, mas da própria moralidade. O imperativo categórico de Kant, a que muito se faz referência, limitou-se a formular numa reflexão abstrata o que diz a “auto-responsabilidade prática” de cada um. Isso supõe o reconhecimento de que o saber da razão teórica não pode reclamar nenhum tipo de superioridade sobre a autonomia prática da racionalidade. Desse modo, a própria filosofia prática está subordinada a certas condições práticas. Seu princípio é o “que” (dass); na linguagem kantiana isso se chama o “formalismo” da ética. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Embora elas não queiram dar-se conta disso, o que julgo válido para nossas ciências do espírito é esse ideal da filosofia prática. Não é por acaso que são chamadas de moral sciences. Com isso não estamos indicando um determinado âmbito de objetos, mas o sumo daquilo em que se objetiva a humanidade: seus feitos e sofrimentos, e suas criações duradouras. A universalidade prática, implícita no conceito de racionalidade (e na falta dessa), abarca a todos nós, e de modo total. Por isso pode ser a instância suprema de responsabilidade para o saber teórico, que como tal não conhece limites nas ciências naturais e nas ciências sociais. Essa é a doutrina da filosofia prática de ARISTÓTELES, também chamada por ele de “política”. A correta aplicação de nosso saber e de nosso poder exige a razão. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Creio que aqui o pensamento aristotélico trilha seu próprio caminho; caminho, se não estou enganado, exemplar para nosso próprio pensamento sobre o saber acerca do homem e sua historicidade. Seguindo ARISTÓTELES, não precisamos buscar, partindo de um conceito geral de ciência, o caráter específico desse saber a respeito do que é humano. Basta indagarmos pelo meio de linguagem que transmite esse saber, baseando-nos em sua verdadeira origem: a realidade social do ser humano. Não se trata apenas de assinalar o lugar central à linguagem e à sua mediação no pensamento da filosofia ou na teoria das ciências sociais. É preciso também explicitar as implicações normativas contidas no conteúdo transmitido por ela. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Contra meus trabalhos intelectuais, Theodor Litt provavelmente objetaria que uma justificação filosófica das ciências do espírito, apoiada no modelo aristotélico de phronesis, deve admitir um a priori que não pode ser simplesmente o resultado de uma universalização empírica. A filosofia prática de ARISTÓTELES se equivocaria se fundamentasse seu princípio no “que” (dass), sem reconhecer que ela própria, enquanto filosofia, como um querer saber teórico, não pode depender de algo que aparece na experiência como um ethos concreto e como uma razão que atua praticamente. Litt atinha-se, pois, à reflexão transcendental que guiara também Husserl e o Heidegger de Ser e tempo. Mas pareceu-me e continua parecendo que esse procedimento, embora justificado frente a uma (329) teoria empirista-indutivista, esquece que essa reflexão encontra seu fundamento e sua limitação na práxis da vida donde provém sempre. Essa constatação impede o acesso a uma reflexão que se aventura num escalonamento idealista até o “espírito”. Creio que a cautela aristotélica e a autolimitação de sua ideia do bem encontram sua justificação na vida humana, e que impõem de maneira justa — quem sabe com Platão — ao pensamento filosófico a vinculação à sua própria finitude. Essa vinculação se impõe no modo como nós experimentamos a finitude, ou seja, dentro de nosso condicionamento histórico. Esse pensamento filosófico, porém, não é de princípio nenhuma mera generalização empirista. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Em todo caso, aqui o esquema sucessivo está totalmente fora de lugar. Basta lembrar o que, na aprendizagem da prosódia latina, se chama construir: o aluno de latim deve procurar o “verbo” e depois o sujeito e partindo daí articular toda a massa verbal até alcançar de repente a confluência de elementos que pareciam totalmente divergentes em seu sentido. Em certa passagem, ARISTÓTELES descreve o congelamento de um líquido, que de repente, ao ser agitado, sofre uma mudança súbita. Algo parecido ocorre com a compreensão repentina, quando os elementos verbais desordenados cristalizam-se na unidade de sentido de um todo. O ouvir e o ler possuem a mesma estrutura temporal que o compreender, cujo caráter circular é uma das constatações mais antigas da retórica e da hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Na fenomenologia repetira-se o abissal esquecimento da linguagem que já havia caracterizado o idealismo transcendental e que parecia encontrar respaldo na infeliz crítica de Herder à guinada transcendental kantiana. A linguagem não encontrou um lugar de honra nem sequer na dialética e na lógica hegelianas. Por outro lado, Hegel mencionou ocasionalmente o instinto lógico da linguagem, cuja antecipação especulativa do absoluto impôs a tarefa da obra genial da Lógica hegeliana. Na verdade, por trás da germanização da linguagem escolar da metafísica, imposta por Kant no estilo rococó, a contribuição de Hegel à linguagem da filosofia foi de inegável relevância. Hegel destacou formalmente a grande energia de ARISTÓTELES na formação da linguagem e dos conceitos, e seguiu de perto seu egrégio exemplo ao procurar salvar na linguagem do conceito muito do espírito de sua língua materna. Essa circunstância acarretou-lhe o inconveniente da intradutibilidade, uma barreira que tem sido insolúvel durante mais de um século e que hoje continua constituindo um obstáculo difícil de ultrapassar. Mas o certo é que tampouco Hegel outorgou à linguagem um posto central. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
Se quisermos atribuir um sentido à linguagem da metafísica, devemos pensar aqui mais detalhadamente. Não me refiro à linguagem em que se desenvolveu antigamente a metafísica, a linguagem filosófica dos gregos. Quero dizer, antes, que as línguas vivas das comunidades de linguagem atuais contêm certos caracteres conceituais que procedem dessa linguagem originária da metafísica. No âmbito científico e filosófico, dizemos que esse é um papel atribuído à terminologia. Mas se nas ciências naturais matemáticas — sobretudo nas experimentais — a adoção de denominações é um ato convencional que serve para designar todos os fenômenos acessíveis e não estabelece nenhuma relação semântica entre o termo adotado internacionalmente e os usos de linguagem dos idiomas nacionais (quem se lembra do grande investigador Volta quando ouve a palavra “volts”?), no caso da filosofia não ocorre o mesmo. Aqui não há uma região de experiência acessível a todos, controlável, designada por termos acordados. Os termos conceituais cunhados no campo da filosofia articulam-se sempre na língua falada da qual procedem. Também nesse caso, a conceituação supõe a restrição da possível multiplicidade de significados de uma palavra, para poder dar-lhe um significado preciso; mas essas palavras conceituais nunca se desligam totalmente do campo semântico no qual possuem todo seu significado. Desligar totalmente uma palavra de seu contexto para inseri-la (horismos) num conteúdo preciso, que a converte em palavra conceitual, corre o risco de esvaziar de sentido seu uso. Assim, a formação de um conceito metafísico fundamental como o de ousia nunca é plenamente realizável sem (366) ter presente também o sentido da palavra grega em sua plena acepção. Por isso, o fato de sabermos que a palavra ousia significou primariamente o sítio rural, e que daí deriva o sentido conceitual de “ser” como presença ou o presente, contribuiu sobremaneira para a compreensão do conceito grego de ser. Esse exemplo mostra que não existe uma linguagem da metafísica. Existe apenas a cunhagem de termos conceituais pensados metafisicamente e extraídos da linguagem viva. Essa cunhagem conceitual pode criar uma forte tradição, como é o caso da lógica e da ontologia de ARISTÓTELES, gerando consequentemente uma alienação que já começa cedo com a cultura escolar helenística e progride na transposição para o latim. Mais tarde acaba formando novamente uma linguagem escolar com a acolhida da versão latina nos idiomas nacionais modernos. Trata-se de uma linguagem em que o conceito vai perdendo cada vez mais o sentido original derivado da experiência do ser. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, (369) aprendido em ARISTÓTELES. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o “lógico” em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de “o passo para trás” foi um distanciamento da dialética. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
É por isso que tanto Derrida quanto Heidegger aprofundam-se na misteriosa variedade existente na palavra e na multiplicidade de seus significados, no potencial indeterminado de suas diferenciações semânticas. Quando, pelo questionamento, Heidegger remonta da frase e do enunciado para a abertura do ser que possibilita as palavras e as frases, ultrapassa de certo modo toda dimensão das frases formadas de palavras, dos contrastes e contradições. Numa linha semelhante, Derrida parece seguir as pegadas, que só dão na sua leitura. Sobretudo a partir da análise do tempo de ARISTÓTELES, tentou inferir que “o tempo” aparece diante do ser como difierance. Mas como lê Heidegger a partir de Husserl, lança mão da conceitualidade husserliana que se deixa sentir em Ser e tempo e em sua autodescrição transcendental, como prova do logocentrismo de Heidegger; e quando eu considero como a verdadeira realidade da linguagem não só o diálogo mas também a poesia e sua manifestação ao ouvido interior, Derrida o classifica “fonocentrismo”. Como se a fala ou a voz só ganhassem presença em sua realização, mesmo para a consciência reflexiva mais esforçada, e isso não fosse antes seu próprio desaparecimento. A indicação de que não estaria consciente justamente porque está “pensando” não é um (372) argumento arbitrário da reflexão, mas uma recordação do que acontece a todo aquele que fala e a todo aquele que pensa. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
Todo o conjunto da discussão de Löwith sobre a interpretação que Heidegger fez de Nietzsche, que aqui ou ali faz algumas observações justificadas, padece, sem perceber, do mesmo mal, a saber, propor o ideal nietzschiano da naturalidade frente ao princípio da formação ideal. Com isso, torna-se incompreensível o que pensa Heidegger ao colocar intencionalmente Nietzsche na mesma linha de ARISTÓTELES — o que não significa que o coloque no mesmo ponto de ARISTÓTELES. Ao contrário, por causa desse atropelo, o próprio Löwith vê-se enredado no absurdo de tratar a teoria nietzschiana do eterno retorno como uma espécie de ARISTÓTELES redivivo. Para ARISTÓTELES, na verdade, o eterno processo circular da natureza era o aspecto mais óbvio e evidente do ser. Para ele, a vida ética e histórica do homem permanece referida à ordem paradigmática do cosmos. Nada disso se encontra em Nietzsche. Este, ao contrário, pensa o círculo cósmico do ser inteiramente a partir da contradição que a existência humana representa para este círculo. O sentido do eterno retorno do mesmo está em ser uma doutrina para os homens, ou seja, ser uma tremenda provocação para a vontade humana, que aniquila todas as suas ilusões de futuro e progresso. Nietzsche pensa, portanto, a teoria do eterno retorno com o objetivo de atingir o homem na tensão de sua vontade. A natureza é pensada aqui a partir do homem, como aquilo que nada sabe sobre ele. Se quisermos compreender a unidade do pensamento de Nietzsche, não podemos agora, como numa nova inversão, querer colocar novamente em jogo a natureza contra a história. O próprio Löwith finca pé na afirmação da discrepância insolúvel de Nietzsche. Diante dessa afirmação, devemos colocar a seguinte pergunta: Como foi que Nietzsche acabou se enredando em um tal beco sem saída? Ou seja, por que para o próprio Nietzsche isso não representou uma amarra nem um fracasso, mas a grande descoberta e libertação? Para essa pergunta mais abrangente, o leitor não encontrará resposta alguma em Löwith. Mas é justamente isso que gostaríamos de compreender, isto é, tornar realizável pelo próprio pensamento. Foi isso o que fez Heidegger: construiu o sistema de referência a partir do qual as proposições de Nietzsche ganham uma ordenação recíproca. O fato desse sistema de referência não estar imediatamente expresso no próprio Nietzsche funda-se no sentido (382) metodológico desta mesma reconstrução. Löwith, ao contrário e de modo paradoxal, acaba reproduzindo o que ele próprio reconhecia como uma lacuna em Nietzsche: Reflete sobre a irreflexão; filosofa contra a filosofia, em nome da naturalidade, e apela para o sadio bom senso. Mas se este fosse um argumento filosófico, a filosofia já estaria morta há muito tempo e com isso também todo apelo a ela. Não há outra saída: Löwith só se libertará desse emaranhado ao reconhecer que o apelo à natureza e à naturalidade não é nem natureza e nem natural. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO III
Na segunda metade do século XVIII, a subjetivação do conceito de expressão já se encontra bem adiantada. Quando polemiza, por exemplo, com o jovem Riccoboni, que considera que a arte do ator está na representação e não na sensação, Sulzer já supõe que a autenticidade do sentir é obrigatória na representação estética. Desse modo complementa também a expressio da música através de uma cimentação psicológica do sentir do compositor. Encontramo-nos aqui no ponto de passagem da tradição retórica para a psicologia da vivência. Nesse sentido, o aprofundamento na essência da expressão e em especial da expressão estética, mantém, em última instância, uma referência sempre nova com o contexto metafísico de cunho neoplatônico. Isso porque a expressão nunca é um mero signo que nos remete a um outro, a algo interior; na expressão, ao contrário, está presente aquilo mesmo que é expresso, por exemplo, a raiva está no semblante raivoso. O moderno diagnóstico expressivo sabe disto muito bem, mas o próprio ARISTÓTELES já sabia disso. Faz parte, evidentemente, do modo de ser do vivente, que um esteja presente no outro. Isso foi reconhecido de modo especial também pelo uso que a filosofia faz da linguagem, quando Spinoza reconhece um conceito ontológico fundamental nos termos exprimere e expressio, e quando, apoiando-se nele, Hegel vê a realidade própria do espírito no sentido objetivo da expressão como representação, exteriorização. Hegel apoia sua crítica ao subjetivismo da reflexão sobre esse fato. De modo semelhante pensam também Hölderlin e seu amigo Sinclair, em quem o conceito de expressão ocupa uma posição central. A linguagem como produto da reflexão criadora, que confere seu ser à poesia, é “expressão de um todo vivo, porém específico”. O significado dessa teoria da expressão foi evidentemente deslocado pela subjetivação e psicologização do século XIX. Na verdade, tanto em Hölderlin como em Hegel a tradição retórica é muito mais determinante. No século XVIII, expressão (Ausdruck) assume o lugar de cunhagem (Ausdrückung), e refere-se àquela forma que permanece quando se estampa um selo ou algo do gênero. O contexto dessa imagem fica claro a partir da citação de uma passagem de Géllert , que diz: “nossa língua não é capaz de exprimir certas belezas, assemelhando-se a uma cera quebradiça, que muitas vezes estala e se quebra quando se quer imprimir-lhe as imagens do espírito”. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO VI
Se não estou enganado, o próprio ARISTÓTELES já havia visto claramente este ponto, na medida em que não atribuiu nenhuma função positivo-dogmática ao pensamento do direito natural, mas simplesmente uma função crítica. O fato de ARISTÓTELES diferenciar o direito convencional do direito natural, mas também de declarar que os direitos naturais são mutáveis, sempre foi considerado chocante (há inclusive quem conteste esse fato, dizendo que se trata uma interpretação errônea de ARISTÓTELES). VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
O direito natural e a lei constitucional não são “mutáveis no mesmo sentido”. Ao contrário, quando observamos fenômenos comparáveis queremos ressaltar que também o direito natural é mutável, sem deixar de ser distinto do direito por mera instituição. É claro que as leis de trânsito, por exemplo, são mutáveis numa proporção muito mais acelerada do que as do direito natural. ARISTÓTELES não quer atenuar essa realidade. Ele declara, porém, que no mundo instável dos homens (contrariamente ao mundo dos deuses) o direito natural tem uma primazia generalizada. Afirma então: Tem a mesma clareza, e para se estabelecer a diferença entre o justo por natureza e o justo por convenção — apesar de ambos serem mutáveis — , vale a mesma determinação que se dá, por exemplo, na diferença entre a mão direita e a mão esquerda. Por natureza, a direita é mais forte que a esquerda e, no entanto, essa primazia natural não se deixa caracterizar como imutável, na medida em que, dentro de certos limites, se pode suspender essa primazia pelo treinamento da outra mão. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Talvez tenhamos de perguntar, aqui, se a conjugação interna da hermenêutica com o escrito não deve ser julgada como algo secundário. Não é por estar escrito que um pensamento necessita de interpretação, mas por causa de seu caráter de linguagem, isto é, a universalidade de seu sentido, a qual possibilita, como consequência, uma consignação escrita. Assim creio ter mostrado que tanto o direito codificado quanto o texto escrito, herdado da tradição, apontam para um nexo profundo, que diz respeito ao relacionamento entre compreensão e aplicação. Não causa nenhuma surpresa o fato de ARISTÓTELES ser a maior testemunha disto. Suponho, no entanto, que o gérmen de toda a sua filosofia própria é a crítica que ele dirige à ideia platônica do bem. Contém uma revisão radical da relação entre o universal e o particular implicada na teoria platônica da ideia do bem — ao menos como é apresentada nos diálogos platônicos. E nem por isso ela se torna “nominalismo”. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Não é por acaso que já um dos primeiros trabalhos de Leo Strauss, que trata da crítica da religião spinoziana (Die Religionskritik Spinozas — 1930), se ocupa dessa querela. Toda a imponente obra de sua vida de erudito está consagrada à tarefa de desdobrar novamente essa querela em um sentido novo e mais radical, isto é, contrapor a justeza luminosa da filosofia clássica à autoconsciência histórica moderna. O questionamento de Platão a respeito do Estado optimal, e mesmo a ampla empiria política de ARISTÓTELES que sustenta a primazia dessa questão, têm muito pouco a ver com o conceito de política que domina o pensamento moderno desde Machiavell. Em seu livro agora também acessível em tradução alemã, Naturrecht und Geschichte (Direito natural e história), Strauss parece remontar à figura oposta da moderna concepção histórica de mundo, ou seja, ao direito natural. Mas o verdadeiro sentido de seu livro também é esclarecer que os clássicos gregos da filosofia, Platão e ARISTÓTELES, são os verdadeiros fundadores do direito natural e não deixar que se sustente a validade filosófica do direito natural estoico nem do medieval, sem falar do da época do Iluminismo. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
O exemplo parece-me ser muito feliz. Essa postura indeterminada entre a teoria da virtude e a teoria dos bens que ocupa o conceito de amizade na ética aristotélica tem sido para mim, de há muito, e por motivos semelhantes, um ponto de partida para reconhecer certos limites da ética moderna face à ética clássica. Concordo plenamente, portanto, com o exemplo de Strauss, mas pergunto: Será que essas ideias não ocorrem a alguém quando lê os clássicos a partir da perspectiva da ciência histórica, reconstruindo sua opinião e mesmo assim acreditando piamente ser possível, por assim dizer, que eles tenham razão? Ou será que não encontramos neles certa verdade porque ao procurar compreendê-los já sempre pensamos por nós mesmos, o que significa dizer que suas proposições parecem ser verdadeiras a partir das correspondentes teorias modernas em voga? Será que podemos compreender realmente essas proposições, sem compreendê-las ao mesmo tempo como mais corretas? Se esse for o caso, pergunto novamente: Não faz sentido, então, dizer a respeito de ARISTÓTELES: “ele próprio não pôde compreender-se a si mesmo como nós o compreendemos. Isso porque consideramos o que ele diz mais correto do que aquelas teorias modernas (que ele não pôde conhecer)”? VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Poderíamos dizer algo parecido sobre a diferença entre o conceito de Estado e o conceito de polis, sugeridos acertadamente por Strauss. O fato de a instituição do Estado ser algo bem diferente do que a comunidade de vida natural da polis não é uma conclusão muito correta. Mas com isso também descobre-se algo — e novamente a partir dessa experiência da diferença — que não permanece incompreensível apenas para a teoria moderna. Também seria incompreensível para nossa relação com os textos clássicos herdados da tradição, se não os compreendêssemos a partir de sua oposição com a modernidade. Chamar a isso de “revitalisation” parece-me ser novamente uma maneira de falar tão imprecisa como o Re-enactment de Collingwood. A vida do espírito não é como a do corpo. O reconhecimento desse fato não significa um falso historicismo. Significa estar em perfeita harmonia com ARISTÓTELES: epido-sis eis auto. Objetivamente falando, creio não divergir muito de Strauss, uma vez que também ele considera inevitável em nosso pensamento atual a “fusion of history and philosophical questions”. Estou totalmente de acordo com Strauss quando ele diz que seria uma afirmação dogmática querer ver nisso uma primazia absoluta da modernidade. Os exemplos citados — que se podem multiplicar à vontade a partir dos escritos de Strauss — mostram de maneira inequívoca o tanto de compreensão prévia que nos domina imperceptivelmente quando pensamos com os conceitos ricamente herdados da tradição, e o quanto pode nos ensinar uma retomada dos pais do pensamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de ARISTÓTELES tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de ARISTÓTELES havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e ARISTÓTELES tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da (423) consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a consequência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Litt mostra que isso não pode ser nenhuma norma comum, sob a qual poderia ser subsumido o caso do agir prático-político que se deve julgar. Também percebo que ele não se serviu da ajuda que ARISTÓTELES poderia ter-lhe dado nesse terreno, uma vez que este já fizera a mesma objeção contra Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Todavia, o auxílio que pode nos prestar ARISTÓTELES nesse ponto é que não nos extraviemos numa apoteose da natureza, da naturalidade e do direito natural. Isso não ultrapassaria o estatuto de uma crítica doutrinária e impotente à história. O auxílio de ARISTÓTELES seria, ao contrário, conquistar uma relação adequada com os temas da tradição histórica e uma melhor capacidade de conceber (424) o real, aquilo que é. Ademais, julgo que o problema levantado por ARISTÓTELES ainda não está resolvido. Pode ser também que a crítica aristotélica — como tantas outras — tenha razão naquilo que ela diz, porém não contra quem o diz. Isso, porém, é um campo aberto. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), ARISTÓTELES resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das ideias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de (434) uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das consequências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do “círculo de Viena”, como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos científico-social. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
Como se vê, o que está em questão nesse caso não é somente a função da hermenêutica dentro das ciências, mas também a auto-compreensão do homem na idade moderna da ciência. Um dos mais importantes ensinamentos que a história da filosofia oferece a esse problema atual é o papel que a práxis e o seu saber esclarecedor e orientador desempenham na ética e política aristotélicas. É a inteligência prática ou sabedoria, que ARISTÓTELES chamou de phronesis. O livro VI da Ética aNicômaco continua sendo a melhor introdução a esta problemática tão batida. Sobre essa questão gostaria de remeter também a um novo trabalho, o meu “Hermeneutik und praktische Philosophie”, que pode ser encontrado no volume organizado por M. Riedel, Zur Reabilitierung der praktischen Philosophie (Para a reabilitação da filosofia prática). Aquilo que se apresenta sob o grande pano de fundo da tradição da filosofia prática (e política), que vai desde ARISTÓTELES até as soleiras do século XIX, do ponto de vista filosófico é a autonomia da contribuição cognitiva que consiste na relação com a práxis. Aqui o particular concreto não representa apenas o ponto de partida, mas também um momento sempre determinante para o conteúdo do universal. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Já conhecemos esse problema na forma que Kant lhe concedeu na Crítica do juízo. Ali distingue-se entre o juízo determinante, que subsume o particular sob um universal dado, e o juízo reflexivo, que busca um conceito universal para um particular dado. Pois bem, parece-me que Hegel mostrou com toda validez que a separação dessas duas funções de juízo é uma mera abstração e que juízo, na verdade, sempre são ambas as coisas. O universal, sob o qual subsume-se um particular, segue determinando a si mesmo justamente através dessa subsunção. O sentido jurídico de uma lei determina-se através da judicação e a universalidade da norma determina-se basicamente através da concreção do caso. Sabe-se que, baseado nesse fundamento, ARISTÓTELES chegou a declarar vazia a ideia platônica do bem. E, objetivamente falando, fez isso com razão, uma vez que se deva pensar essa ideia do bem como um ente de extrema generalidade. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Nesse sentido, parece-me desleal usar de uma superioridade irônica para acusar as ciências hermenêuticas de estarem renovando e restaurando a imagem qualitativa de mundo de ARISTÓTELES. Sem contar que tampouco a ciência moderna emprega em toda parte um procedimento quantitativo, como por exemplo nas disciplinas morfológicas. Permitam-me, porém, recordar que o saber prévio que se desenvolve em nós em virtude de nossa orientação no mundo operada na linguagem (o que constituía factualmente a base da assim chamada “ciência” de ARISTÓTELES) entra em jogo toda vez que se elabora a experiência de vida, toda vez que se compreende a tradição feita pela linguagem e toda vez que está em curso a vida social. De certo, esse saber prévio não é uma instância crítica contra a ciência, estando exposto, inclusive, a todas as objeções críticas da ciência. No entanto, é e continua sendo o médium que sustenta toda compreensão. É por isso que cunha a peculiaridade metodológica das ciências da compreensão. Nelas aparece claramente a tarefa de manter dentro de certos limites a formação de terminologias específicas da linguagem e, ao invés de construir linguagens específicas, cultivar modos de falar procedentes da “linguagem comum”. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Em muitas oportunidades objetou-se contra as minhas investigações dizendo que sua linguagem seria muito imprecisa. Não posso admitir que isso seja só a descoberta de uma deficiência — o que muitas vezes pode ser suficiente. Ao contrário, parece-me muito mais adequado à tarefa da linguagem conceitual filosófica manter de pé o envolvimento com o todo do saber sobre o mundo baseado na linguagem, e com isso manter viva uma relação com o todo, mesmo que às custas de uma delimitação mais precisa dos conceitos. Isso é a implicação positiva da “carência de linguagem”, que nasceu com a filosofia desde os seus começos. Em momentos muito especiais e sob condições muito específicas, que não podem ser encontradas em um Platão ou em um ARISTÓTELES, em um Mestre Eckhart ou Nicolau de Cusa, nem em um Fichte ou um Hegel, mas talvez em Tomás de Aquino, em Hume e em Kant, essa carência de linguagem permanece oculta sob uma sistemática conceitual equilibrada e só volta a manifestar-se, e nesse caso de maneira necessária, quando o pensar acompanha o movimento do pensamento. Nesse particular remeto à conferência que pronunciei em Dusseldorf, “Die Begriffsgeschichte und die Sprache der Philosophie”. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Considerar a retórica como uma mera técnica e até mesmo como um mero instrumento de manipulação social não passa de uma miopia que não quer ver seu verdadeiro sentido. Na verdade, ela constitui um aspecto essencial de todo comportamento racional. O próprio ARISTÓTELES não considerava a retórica como uma techne mas como uma dinamis, tal a sua participação na determinação geral do homem como um ser racional. A institucionalização da formação de opinião pública, desenvolvida por nossa sociedade industrial, por maior que seja seu âmbito de atuação e por mais que mereça ser designada como manipulação, não esgota, em absoluto, o âmbito da argumentação racional e da reflexão crítica que domina a práxis social. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Toda racionalidade implica consequências, mesmo a racionalidade da técnica, a qual em cada caso busca seguir racionalmente objetivos limitados. Mas ela desempenha seu papel com mais propriedade fora da racionalidade instrumental dominada tecnicamente; desempenha-o na experiência prática. Aqui, consequência já não se refere à racionalidade natural e evidente da escolha dos meios, para cuja manutenção empenhou-se energicamente Max Weber no campo emocionalmente tão desfigurado da atuação político-social. Trata-se, antes, da consequência do próprio poder querer. Quem se encontra numa autêntica situação de escolha precisa de um critério do que é preferível, sob o qual realiza sua reflexão em vista de uma tomada de decisão. Seu resultado então será sempre mais que a mera subordinação correta ao critério orientador. O que alguém considera justo determina também o critério, não só porque, com disso, acaba decidindo previamente sobre resoluções vindouras, mas também no sentido de que com isso se configura a própria prontidão para determinados objetivos da ação. Aqui, (469) consequência acaba significando continuidade, e somente esta preenche de conteúdo a identidade consigo mesmo. Esta é a verdade que a reflexão filosófico-moral de Kant colocou em vigência como o caráter formal da lei moral frente a todo cálculo técnico e utilitarista. Todavia, a partir dessa determinação do “justo” — junto com ARISTÓTELES e com uma tradição que chega até nossos dias — podemos deduzir uma imagem da vida justa. Nisso precisamos concordar com ARISTÓTELES que essa imagem diretriz, enquanto se apresenta assim pré-formada socialmente, continua a determinar-se sempre que tomamos alguma decisão “crítica”. Isso, até chegarmos a um tal grau de determinação que em sã consciência não poderíamos querer outra coisa, isto é, que nosso ethos tornou-se uma segunda “natureza” para nós. É assim que se forma a imagem diretriz tanto do indivíduo quanto da sociedade. Mas se forma de tal modo que os ideais de uma geração mais jovem são sempre distintos dos da geração anterior, e seguem por sua vez determinando-se. Isso significa, vão se consolidando através da práxis concreta de seu comportamento em seu próprio espaço de jogo e no espaço de seus objetivos. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Com isso entra em jogo uma relação de palavra e conceito que precede à relação elaborada por Wiehl entre drama e dialética. É no poema lírico que a linguagem aparece em sua essência mais pura, de modo que nele, de maneira velada, já se dão todas as possibilidades da linguagem, inclusive as do conceito. O fundamental disso já havia sido visto por Hegel, quando reconheceu que, em diferenciação com o “material” das outras artes, o caráter de linguagem significa totalidade. É a mesma ideia que motivou ARISTÓTELES a atribuir uma primazia especial também ao ouvido — apesar da primazia natural atribuída à visão, entre todos os sentidos — , porque o (474) ouvir recebe e acolhe a linguagem e, com isso, recebe e acolhe tudo, não somente o visível. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
Em minhas investigações, coloquei em jogo conceitos “clássicos” como o conceito de mimesis, de “re-presentação”, não para (478) defender ideais classistas, mas para poder ultrapassar o conceito do estético, que corresponde à religião da cultura burguesa. Compreendeu-se isso como uma espécie de recaída em um platonismo, completa e definitivamente superado pela concepção moderna de arte. Mas isso também não me parece tão simples. A teoria do reconhecimento, sobre o que repousa toda representação mimética, não é mais que um primeiro aceno para compreender corretamente a pretensão ontológica da representação artística. O próprio ARISTÓTELES, que derivou a arte, como mimesis, a partir da alegria do conhecimento, caracteriza a diferença entre o poeta e o historiador pelo fato de que aquele não apresenta as coisas como aconteceram, mas como poderiam acontecer. Com isso, atribui à poesia uma generalidade que nada tem a ver com a metafísica substancialista de uma estética classista da imitação. A formulação conceitual de ARISTÓTELES aponta, antes, para a dimensão do possível — e com isso também a da crítica à realidade (podemos sentir um forte sabor dessa crítica na comédia antiga). Apesar de tantas teorias classistas da imitação terem se apoiado em ARISTÓTELES, a legitimidade hermenêutica desses conceitos parece-me incontestável. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.
O que nos fascinou foi sobretudo a intensidade com que Heidegger fazia reviver a filosofia grega. Quase não tínhamos consciência de que essa filosofia grega representava muito mais um contraponto do que um paradigma de seu próprio perguntar. A “destruição” da metafísica por Heidegger, porém, não era aplicável somente ao idealismo da consciência da época moderna, mas também a suas origens na metafísica grega. Sua crítica radical questionou tanto o caráter cristão da teologia quanto a cientificidade da filosofia. Frente à inanidade do filosofar acadêmico, que se movia numa linguagem kantiana ou hegeliana degradada e pretendia completar ou superar sempre de novo o idealismo transcendental, Platão e ARISTÓTELES apareciam de imediato como aliados de todo aquele que tinha perdido a fé nos jogos de sistemas da filosofia acadêmica, inclusive nesse sistema aberto de problemas, categorias e valores que orientava a investigação fenomenológica das essências ou a análise categorial baseada na história dos problemas. Os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a ideia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra (485) sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
O segundo ponto essencial desse ensinamento foi que (em alguns encontros privados) Heidegger me fez ver no texto de ARISTÓTELES a insustentabilidade de seu suposto “realismo” e sua (486) permanência no terreno do logos, preparado por Platão no seu seguimento a Sócrates. Anos mais tarde, por ocasião de um pronunciamento que fiz num seminário, Heidegger me mostrou que esse novo solo do filosofar dialético comum a Platão e ARISTÓTELES não só sustenta a doutrina aristotélica das categorias como também pode explicar seus conceitos de dynamis e de energeia (o que acabou sendo demonstrado posteriormente por Walter Brõker em sua obra sobre ARISTÓTELES). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Isso eu não o sabia desde o princípio. Pouco a pouco cheguei à convicção de que aquele ARISTÓTELES tão próximo, cuja precisão conceitual estava insuspeitavelmente unida à intuição, à experiência e ao contato com a realidade, simplesmente não fora o pioneiro a expressar o novo pensamento. Heidegger seguiu, antes, o princípio do Sofista platônico de fortalecer o adversário, e parecia ser quase um ARISTÓTELES redivivas que o atraía globalmente com toda a força da intuição e a audácia de seus conceitos originais. Mas essa identificação a que nos induziam as interpretações de Heidegger era para mim um enorme desafio. Dei-me conta de que meus estudos anteriores, que me levaram por muitos terrenos, sobretudo a ciência da literatura e a história da arte, no campo da filosofia antiga não serviam para nada, campo que servira de base para minha dissertação. Comecei assim um novo estudo planificado da filologia clássica (sob a condução de Paul Friedländer), dando preferência, além dos filósofos gregos, sobretudo a Píndaro, iluminado pelo pensamento de Hölderlin, à época já acessível… Estudei também retórica, cuja função complementar da filosofia pressenti então, e que me acompanhou até a elaboração de minha hermenêutica filosófica. Devo a esses estudos, definitivamente, minha resistência ao forte apelo de identificar-me com o pensamento de Heidegger. Permanecer próximo dos gregos, embora sabendo de sua heterogeneidade, descobrir em sua diferença verdades que estavam esquecidas e talvez continuassem exercendo sua influência de maneira inadvertida, foi para mim o Leitmotiv mais ou menos expresso de todos os meus estudos. Isso porque a interpretação dos gregos por Heidegger implicava um problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo. Por aquela época, para o objetivo a que Heidegger se propunha, era possível, sem dúvida, opor ao conceito existencial da “pre-sença” o puro “ser simplesmente dado” como conceito contrário e derivado extremo, sem distinguir entre a ideia grega do ser e o “objeto dos conceitos das ciências naturais”. Mas isso continha uma provocação, e eu me deixei (487) levar por ela e, sob o estímulo de Heidegger, acabei aprofundando-me na física aristotélica e na gênesis da ciência moderna, sobretudo em Galileu. É possível que publique ainda fragmentos de um comentário incompleto sobre a Física. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A história da ciência grega difere evidentemente da história da ciência moderna. No período platônico foi possível religar o caminho seguido pelo esclarecimento, pela investigação e pela explicitação do mundo com os esquemas tradicionais da religião e da visão grega da vida. Foram Platão e ARISTÓTELES, e não Demócrito, os que presidiram a história da ciência na Antiguidade tardia, e de modo algum foi uma história de decadência científica. A ciência helenística, como é chamada hoje, não precisou se defender da “filosofia” e seus postulados, mas alcançou sua emancipação justamente através da filosofia grega, através do Timeu e da Física aristotélica, como procurei demonstrar em um trabalho intitulado Gibt es die Materie? (Existirá a matéria?). Na verdade, mesmo o projeto oposto representado pela física de Galileu e de Newton determina-se a partir daquela. Um trabalho sobre Antike Atomtheorie (Teoria atômica antiga, 1934) foi o único fragmento que publiquei então desse grupo de estudos. Buscava desfazer os preconceitos infantis que a ciência moderna alimenta a respeito de Demócrito, o grande desconhecido. A grandeza de Demócrito nada perderia com isso. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre ARISTÓTELES. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o “prazer”. Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível “explicar” essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre ideia e “realidade”. Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as “coisas, elas mesmas”. Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: “Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente”. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
No outono de 1947, após dois anos de atividade na reitoria, aceitei um convite que me fez partir para Frankfurt/Main e me colocou de volta ao ensino acadêmico pleno e ao trabalho de investigação, na medida em que o permitiam as circunstâncias de trabalho. Nos dois anos que trabalhei em Frankfurt procurei adaptar-me (492) à situação precária dos estudantes, não só através do ensino intensivo mas também com algumas publicações, como a metafísica XII de ARISTÓTELES (em grego e em alemão) e o Grundriss einer Geschichte der Philosophie (Esboço de uma história da filosofia) de Dilthey, ambas publicadas imediatamente pela Editora Klostermann. Foi importante também o grande congresso celebrado em Mendoza (Argentina) em fevereiro de 1949, onde entramos em um primeiro contato com antigos amigos judeus e com filósofos de outros países (Itália, França, Espanha e países da América do Sul). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas isso não expressava toda a dimensão do problema. Também as ciências naturais comportam de certo modo uma problemática hermenêutica. Seu caminho tampouco é o do progresso metodológico, como demonstrou posteriormente Thomas Kuhn. Este pensamento de Kuhn coincidia na verdade com as ideias sugeridas sobretudo por Heidegger em Die Zeit des Weltbildes (A época da imagem de mundo) e em sua interpretação da física de ARISTÓTELES. O “paradigma” é decisivo para o emprego e a interpretação da investigação metodológica e não é evidentemente o simples resultado da mesma. O próprio Galileu já havia expressado essa ideia com o mote mente concipiom. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Trata-se na verdade de um antigo problema que conhecemos desde Platão. A todos os que presumiam saber, políticos, poetas e especialistas em seu ofício artesanal, Sócrates buscou convencer de que no fundo desconheciam o “bem”. ARISTÓTELES estabeleceu a distinção estrutural subjacente aqui, diferenciando entre techne e phronesis. Isso é indiscutível. Mesmo que essa distinção possa ser mal-compreendida e o apelo à “consciência” possa muitas vezes encobrir dependências ideológicas camufladas, a pretensão de reconhecer o que são a razão e a racionalidade unicamente na ciência anônima e como ciência torna-se um mal-entendido. Assim, minha própria teoria hermenêutica convenceu-me da necessidade de recuperar esse legado socrático de uma “sabedoria humana”, que em comparação com a infalibilidade quase divina do saber científico se converte num não-saber. A “filosofia prática” elaborada por ARISTÓTELES pode servir-nos de modelo. Trata-se da segunda linha de tradição que convém renovar. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências “da compreensão”. A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que (500) nunca começa do zero e não pode ser esgotada. ARISTÓTELES mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da filosofia prática deve ocupar o lugar dessa theoria, cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à ideia metodológica da ciência “anônima”. Frente ao aperfeiçoamento da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Mas a “filosofia prática” significa algo mais que um simples modelo metodológico para as ciências “hermenêuticas”. Torna-se também seu fundamento real. A peculiaridade metodológica da filosofia prática não passa da consequência natural extraída da “racionalidade prática” elaborada por ARISTÓTELES em sua especificidade conceitual. Não é possível compreender sua estrutura a partir do conceito de ciência moderna. Mesmo a fluidificação dialética que Hegel deu aos conceitos tradicionais, e que renovou muitas verdades da “filosofia prática”, corre o risco de induzir a um novo dogmatismo velado da reflexão. O conceito de reflexão subjacente na crítica da ideologia implica com efeito um conceito abstrato de discurso livre que perde de vista as verdadeiras condições da práxis humana. Eu tive que recusar essa ideia como uma extrapolação ilegítima da situação terapêutica da psicanálise. No terreno da razão prática, não há analogia para o analista “consciente” que dirige a produção reflexiva do analisando. Na questão da reflexão, a distinção de Brentano, inspirada em ARISTÓTELES, entre interioridade reflexiva e reflexão objetivante, me parece superior ao legado do idealismo alemão. A meu ver, isso se aplica também ao postulado da reflexão transcendental que Apel e outros aplicam à hermenêutica. Isso aparece perfeitamente documentado no difundido volume Hermeneutik und Ideologiekritik (Suhrkamp). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde ARISTÓTELES até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas (501) próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das ideias, com a dialética das ideias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A história da metafísica poderia ser escrita também como uma história do platonismo. Suas etapas seriam Plotino e Agostinho, Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa, Leibniz, Kant e Hegel; e, por fim, todos aqueles esforços intelectuais do Ocidente que perguntam pelo ser substancial da ideia e em geral pela teoria da (503) substância da tradição metafísica. Mas o primeiro platônico dessa série não seria outro que o próprio ARISTÓTELES. O objetivo de meus estudos nesse campo seria fazer crer nessa tese tanto frente à instância da crítica aristotélica à doutrina das ideias como frente à metafísica da substância na tradição ocidental. E eu não estaria sozinho. Houve Hegel. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua “própria” linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de ARISTÓTELES para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e (507) da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em “formar” conceitos arbitrários e “defini-los” com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.