Ernildo Stein (2003:93-97) – crítica à Antropologia

Com a questão central analisada até agora surge em Heidegger uma posição contra um tipo de pensamento que, ao mesmo tempo em que é dependente de um sujeito, se relaciona com as coisas como se fossem de um mundo exterior, dispondo sobre elas e organizando-as (94) de maneira categorial como simplesmente existentes. É por isso que a analítica existencial de Heidegger visa à crítica rachadura entre mundo e sujeito entre res cogitans e res extensa como o havia postulado Descartes 1. O filósofo critica todas as iniciativas do pensamento metafísico que pergunta pela realidade do mundo exterior sem primeiro clarificar o próprio fenômeno do mundo.2

Esta crítica volta-se radicalmente contra Kant também, filósofo que procurou estabelecer a causalidade como um fio que unisse todas as coisas e que seria tornada inteligível pela presença de um entendimento dotado de formas a priori e que possuía no eu penso o princípio unificador entre sensível e inteligível. Contra isso o filósofo estabelece a ideia de ser-no-mundo como estrutura prévia de sentido que une todas as coisas. Esta estrutura, porém, se desdobra em diversas formas a partir da compreensão do ser pelo homem.

Com o estabelecimento da compreensão do ser e, a partir daí, do sentido ontológico do ser-aí, o filósofo não estabelece apenas uma ontologia fundamental, mas implicitamente também expõe as bases para uma Antropologia não mais orientada na relação sujeito-objeto. O ser humano não é mais uma coisa que aparece no mundo entre as coisas, pois com ele surge o próprio, mundo e ele se torna ser-no-mundo. Dessa maneira a Antropologia não é mais definida mesmo filosoficamente como anima, animus ou mens ou então mais tarde como sujeito, como pessoa ou como espírito. Heidegger dirá na Carta sobre o humanismo que a essência do homem não consiste nem no fato de ele (95) ser um organismo animal nem no fato de isso ser compensado com uma alma imortal, pelas faculdades da razão ou pelo caráter de pessoa. O que torna manifesto o homem é, com esta tentativa, sempre com base no mesmo projeto metafísico, encoberto 3.

Numa outra passagem Heidegger critica a Antropologia como sendo um instrumento para a Psicologia, e Pedagogia, a Medicina e a Teologia e diz expressamente que “isso já não é mais uma moda, mas uma praga”4. O filósofo pode falar assim porque Ser e tempo é a obra em que se abandonou definitivamente a possibilidade de responder o que é o homem, para afirmar que só se pode questionar como é o homem. A resposta vem diretamente do fato que ele é ser-no-mundo e ser-aí. Com esta resposta o filósofo remete o ser humano para o lugar da compreensão do ser. Seu modo de ser consiste em compreender o ser, de tal modo que a pergunta pelo ser se torna a pergunta pelo modo como ele se dá: pelo ser-aí que compreende o ser.

Numa célebre passagem: “o que aconteceria se talvez não soubéssemos onde estamos e que nós somos? O que aconteceria se as respostas à pergunta por quem nós somos, apenas cada vez residiriam na mesma aplicação de uma resposta já dada, resposta que não corresponde àquilo que é talvez agora tocado na pergunta por quem nós somos, pois agora perguntamos não por nós enquanto seres humanos, suposto que esse nome é compreendido no significado tradicional. Segundo este o homem é uma espécie de animal vivo (animal, zoon) que existe entre muitos outros habitantes na terra e no universo. Nós conhecemos este (96) animal vivo pois, somos de sua espécie. Existe uma grande oferta de ciências que nos informam sobre esse animal vivo — chamado ser humano — e todas estas ciências são reunidas sob o nome de antropologia”5.

O que importa é percebermos que o perguntar pelo ser, perguntar pelo ser e pelo tempo, perguntar pela essência do tempo (temporalidade) nos impele inexoravelmente para a pergunta pelo homem. Heidegger diz que o tempo só se torna tempo na medida em que o homem é. Mas será que já não houve um tempo em que não houve ser humano? Poderíamos dizer talvez que em cada tempo houve e haverá ser humano. “Não existe tempo quando o homem não foi, não porque o homem existe desde a eternidade e para sempre, mas porque tempo não é eternidade e porque o tempo só se temporaliza tornando-se tempo enquanto ser-aí humano e historiai.”6 É por isso que em sua conferência de 1963 intitulada Tempo e ser Heidegger dirá que ser e tempo se dão como acontecimento — apropriação.

Quando Heidegger, portanto, pensa a Antropologia como analítica existencial ou como ontologia fundamental, na pergunta pelo sentido do ser (ser enquanto ser) e na questão do ser do ente, a diferença ontológica, ele cria com essa nova Antropologia um terceiro nível de ontologia, a ontologia do ente privilegiado que se chama ser-aí e ser-no-mundo. Com isso assistimos a uma mudança profunda na Filosofia ocidental. Heidegger designará, a partir daí, a tarefa da Filosofia como sendo a destruição das ontologias objetificantes como a de Aristóteles, de Decartes e de Kant. Esta destruição significará um adentramento (97) na Metafísica pela desconstrução de seus próprios conceitos e de todos os conceitos que as ciências provindas da Metafísica articulam como seu aparato conceitual. E que Heidegger encontrou um fio condutor que lhe permite realizar esta desconstrução: a temporalidade como sentido ontológico do ser-aí diferente do tempo como simples sucessão de agoras em que se dão os entes simplesmente existentes e que não são ao modo de ser do Dasein.

Essa mudança introduzida por Heidegger representa um vetor capaz de sustentar o processo de desconstrução dos conceitos da Metafísica e os conceitos das ciências humanas contaminadas pela sua origem metafísica. Entre elas se situa a Antropologia, a Psicologia e a Psicanálise. Dessa maneira temos a possibilidade de desconstruir todos os conceitos fundamentais do conhecimento que trata do ser humano. As consequências para a Antropologia são muito grandes e são também consideráveis as novas possibilidades para a revisão dos conceitos da Psicanálise pela desconstrução. Essa desconstrução atinge o edifício metapsicológico de Freud no qual o paradigma metafísico é tomado como moldura para a formação dos conceitos.

A partir do que foi dito, de que o ser humano é um como, toda a Psicanálise e Psicopatologia irá se ocupar com um modo de acontecer. O ser humano não é um efeito da natureza, mas é um fenômeno que surge pela compreensão do ser. Assim, o objeto da Psicanálise não é um ente no tempo linear explicável causalmente. Desaparece, então, o animal vivo, o animal com psiquismo ou o animal com espírito, visto que o ser humano é Dasein é ser-no-mundo. Por isso não podemos objetificá-lo como um objeto no espaço e no tempo. Nem podemos tratá-lo propriamente como um objeto denominado eu. A desconstrução possibilitada pela analítica existencial irá mostrar-nos que podemos apenas falar do modo de ser do ser-aí e não de sua substância.

  1. Ver S. e T. Heidegger, parágrafos 19-21 (art26), 1997.[]
  2. Ver S. e T. Heidegger, parágrafo 43 (art56), 1977.[]
  3. Heidegger, 1947 (GA9), p. 13 ss.[]
  4. Heidegger, 1982 (GA52), p. 122.[]
  5. Heidegger, M. Carta sobre o Humanismo (GA9). Op. Cit. p. 8.[]
  6. Heidegger, 1983 (GA52), p. 90.[]