Ingarden (1979:365-368) – sujeito leitor da obra literária

(…) Precisamente, quando o leitor se submete à obra (literária) são vividos aqueles aspectos cujos esquemas são postos à disposição pela mesma. Além disso, são despertadas no leitor múltiplas vivências do prazer estético 1 em que despontam avaliações estéticas que eventualmente também atingem um desenvolvimento explícito. Finalmente, fazem-se sentir na alma do leitor (ou do espectador) sob o efeito da leitura múltiplos sentimentos e afectos 2 que, é certo, já não pertencem ao grupo das vivências em que a obra literária é apreendida in concreto mas não deixam de ter influência na sua apreensão.

Como vemos, a situação que encontramos no sujeito psíquico durante uma leitura é muito complicada e seria necessária uma análise 3 especial para a discriminar com mais exactidão. A complexidade e multiplicidade desta situação é —como já observámos— apenas um reflexo da estruturação da obra literária. Esta estruturação exige em certa medida que a não apreendamos em vivências globais simples ou construídas simplesmente, mas devemos desenvolver uma grande riqueza de variados actos de consciência e vivências a fim de a captarmos adequadamente. A complexidade da apreensão total da obra tem como consequência que o «eu», sujeito de vivências, deva, por assim dizer, produzir demasiado de uma só vez, não podendo portanto viver em todos os componentes desta apreensão total no mesmo sentido. De toda a multiplicidade dos actos ao mesmo tempo vividos e entrelaçados uns nos outros e das outras vivências (366) são efectuados sempre só alguns pelo «eu» fulcralmente e em plena actividade, enquanto os restantes são, é certo, também vividos e realizados mas apenas no modo da «co-efectivação» e co-experiência. Dá-se neste processo uma constante mudança com respeito à espécie de actos (vivências) componentes que num dado momento se desenvolvem fulcralmente ou apenas «de passagem» na co-realização. Com esta mudança vai de par também a mudança do raio de incidência da atenção. Em consequência disto, partes e estratos sempre diferentes da obra lida são intuídos de forma mais clara, enquanto os restantes mergulham numa penumbra e numa seminebulosidade em que apenas ressoam e têm voz dando coloração de modo especial à totalidade da obra. Uma outra consequência desta mudança constante e dos modos diferentes em que nós experimentamos ora estas vivências ora aquelas é que a obra literária nunca é apreendida plenamente em todos os seus estratos e componentes mas sempre só parcialmente, sempre, por assim dizer, apenas numa abreviação perspectivista. Estas abreviações podem mudar constantemente não só de caso para caso mas também numa e a mesma leitura pois elas podem até ser condicionadas e exigidas pela estruturação da obra em causa e de todas as suas partes singulares. Em geral não são, porém, tão dependentes da própria obra como das condições particulares em que a leitura se realiza. Eis porque apenas podemos captar uma obra só até certo grau, nunca, porém, plena e inteiramente. Quase somos tentados a dizer que uma e a mesma obra se apreende em «aspectos» 4 diferentes e em mutação. A multiplicidade variada destes «aspectos» que pertencem a uma e a mesma leitura é, ao mesmo tempo, de significação decisiva para a constituição de uma determinada concretização da obra que em dado momento se lê. E uma vez que estas multiplicidades, no caso de duas leituras diferentes, são em geral diversas depara-se-nos assim o caminho para distinguirmos a obra das suas próprias concretizações.

Em primeiro lugar, porém, ainda uma observação que não deixa de ter importância: a riqueza e a complexidade das operações subjectivas e vivências a realizar na apreensão da obra literária exigem que o sujeito que apreende, caso a leitura e a apreensão da obra pretendam afinal ser bem sucedidas, afaste (367) de si todas as influências perturbadoras. Eis porquê se dá geralmente um involuntário afastamento e repressão de todas aquelas vivências e estados psíquicos que são próprios da vida, aliás real, do leitor em causa·, um cegar e ensurdecer para os factos e acontecimentos do mundo real. Procuramos afastar de nós durante a leitura até acontecimentos e assuntos sem a mínima importância como possíveis estorvos (daqui a posição o mais cômoda possível do nosso corpo, o maior silêncio possível e outras coisas semelhantes). Este afastamento do nosso mundo real leva, por um lado, a que as objectividades apresentadas e intuídas constituam para nós um mundo próprio que se encontra longe de qualquer realidade e, por outro lado, torna-nos possível a atitude de pura intuição frente às objectividades apresentadas e o gozo pleno das qualidades de valor estético que se revelam na obra. Por esse afastamento, entre outras coisas, adquirimos a atitude «estética» («intuitiva») específica em que em geral as obras de arte podem ser apreendidas e se tornam possíveis relações vivas com elas 5. É, pois, em última análise essa mesma riqueza de vivências da apreensão que, por um lado, contribui para as «abreviações perspectivistas» da obra literária numa leitura e por estas também, possivelmente, para uma turvação da pureza da sua forma global mas, por outro lado, contribui precisamente para a intuição que lhe é adequada enquanto obra de arte.

Todos estes actos de apreensão e vivências constituem, naturalmente, a condição necessária para que uma obra literária seja apreendida a vivo na forma de uma das suas concretizações possíveis. Apesar disto, não só a própria obra literária mas também cada uma das suas concretizações são diferentes destas vivências da apreensão. É natural que não haveria nenhuma concretização se as vivências de apreensão não se realizassem pois as concretizações são dependentes destas últimas tanto no seu modo de ser como também na sua matéria. Contudo, concluir daqui que elas são algo de psíquico ou mesmo um elemento das vivências está desprovido de qualquer fundamento. Como se duas objectividades A e B que são dependentes ontologicamente uma da outra tivessem sempre, por isso mesmo, de ser da mesma espécie ou estar na relação parte-todo! Entre uma cor concreta e a sua extensão concreta existe uma relação (368) muito mais estreita do que entre uma concretização de uma obra literária e as respectivas vivências de apreensão e, apesar disso, ninguém diría que a cor é extensão ou que a extensão é cor nem, finalmente, que a extensão é uma parte da cor em causa. E do mesmo modo como um arco-íris não é nada de psíquico, embora só se revele in concreto quando sob determinadas condições objecti vas se dá uma percepção visual, também a concretização de uma obra literária é, sem dúvida, condicionada no seu ser por vivências correspondentes mas tem, ao mesmo tempo, o seu fundamento ontológico na própria obra literária e é, por outro lado, em relação às vivências de apreensão tão transcendente como a própria obra literária.

Não podemos aqui apresentar nenhuma teoria pormenorizada da consciência e do ser psíquico nem também das possíveis relações que objectividades ontologicamente autônomas e heterônomas podem manter com as vivências da consciência. Bastará, porém, recordar talvez que cada vivência afinal só pode ser apreendida na reflexão ou na experiência completa do acto e tudo o que é psíquico só pode ser captado na percepção interior «(i. é, nas palavras de M. Geiger, na «interiorização»). Se a concretização de uma obra literária fosse um componente real das vivências da consciência em questão ou se fosse algo de psíquico então ela teria de ser apreendida também por esta via e só por ela. Contudo, este não é o caso nem da própria obra literária nem de quaisquer concretizações de obras literárias. Com efeito, ninguém visa durante a leitura ou como espectador no teatro as suas próprias vivências ou os próprios estados psíquicos. Qualquer pessoa riria se lhe propuséssemos fazê-lo. Só aos cientistas teorizadores da literatura lhes ocorre o pensamento peregrino de procurar a obra literária «na alma» do leitor.

  1. Cf. as belas análises de M. Geiger no trabalho Beiträge zur Phänomenologie des ästhetischen Genusses, Jahrbuch für Philosophie und phänom. Forsch., vol. I.[]
  2. Cf. Max Scheler, Zum Phänomen des Tragischen.[]
  3. No meu livro Über das Erkennen des literarischen Kunstwerks (1937) submeti todos estes dados a uma análise pormenorizada.[]
  4. É o que diz também W. Conrad, sem aliás chamar a atenção para as situações aqui apresentadas (l. c.).[]
  5. Jonas Cohn na sua obra Allgemeinen Ästhetik parte de um ponto de vista análogo. Cf. I. c., pp. 32 e segs., 35.[]