Wahl: O ÚNICO-O OUTRO — A COMUNICAÇÃO

O ÚNICO-O OUTRO — A COMUNICAÇÃO

Vamos estudar os conceitos de uma quarta tríade, que é constituída pelas ideias de Único, de Outro e de comunicação.

Kierkegaard diz que se dirige sempre ao indivíduo isolado e único. Deste ponto de vista podê-lo-iamos comparar a Stirner e a Nietzsche. Nenhum filósofo existe, diz Kierkegaard falando dele próprio, que tão claramente tenha destacado o conceito do único. E já vimos que é a partir deste conceito que ele se opõe ao hegelianismo. O indivíduo é irredutível, não está um momento na história do sistema e não pode ser expresso por obras. Para Hegel, o indivíduo é o conjunto dos seus atos e das suas obras, e encontraremos afirmações análogas em Sartre. Mas, já o dissemos, em Kierkegaard o indivíduo tem segredos e não pode ser comunicado; nisso consiste a intuigão central e primitiva de Kierkegaard.

Nestas regiões da existência, o indivíduo só pode ouvir a sua própria palavra, não há para ele, em rigor, sociedade com outros seres, ele leva o seu segredo para o túmulo. Mas é muito difícil expor doutrinalmente a categoria do único. «Esta categoria», diz Kierkegaard, «não pode ser o objectivo de uma exposição doutrinal, é um poder, uma tarefa».

Nos desfiladeiros da crença, o caminho abre-se para o indivíduo e fecha-se novamente sobre ele. Nunca nos encontramos tão sós como neste confronto de nós próprios com Deus.

Se Kierkegaard pede ao indivíduo que seja o único, isso não quer dizer que lhe peça que desenvolva a sua originalidade num sentido absolutamente diferente do de todos os outros. Não se trata de ser um gênio romântico, mas de ser uma individualidade moral. Há uma diferença radical entre uma determinação estética, como a do génio, e a determinação moral.

Esta ideia de único encontramo-la em Jaspers, sob a dupla influência de Nietzsche e de Kierkegaard. Indicamos o lugar da ideia de escolha em Jaspers, e é, na verdade, partindo da ideia de escolha que podemos ver melhor qual o lugar do único. O único é o existente na medida que é e se escolhe perante a transcendência.

Em Gabriel Marcel encontraremos a ideia, se não de único, pelo menos de irredutibilidade, e os problemas da existência são aqueles que não são redutíveis a termos intelectuais.

Mas, em face do único, há em todas estas filosofias, de uma maneira ou de outra, o que podemos chamar o Outro. Já dissemos que Deus em Kierkegaard é chamado o Outro absoluto. É o que nos ultrapassa infinitamente, e nós somos nós próprios, só existimos, porque há esta transcendência.

Os outros também existem para Kierkegaard, e um dos problemas que teremos de examinar quando passarmos à ideia de comunicação consiste em ver como poderemos dizer aos outros que o Outro absoluto existe.

No domínio do subjetivo, algo mais existe além do indivíduo na primeira pessoa. Qualquer que seja a solidão de Kierkegaard, ele entrega-se a uma espécie de diálogo apaixonado, há uma segunda pessoa, a pessoa a quem ele se dirige, e, acima da primeira e da segunda pessoa, há Deus, não concebido como um ele, mas concebido de tal maneira que sejam tornadas possíveis, pela invocação e a oração, as relações entre a primeira pessoa e a segunda. Para Kierkegaard, todo o verdadeiro amor tem fundamento no amor de Deus.

Vemos já que não podemos falar destas duas primeiras categorias, o Único e o Outro, sem falar da terceira, a comunicação. O problema da comunicação é um problema ao qual Kierkegaard se dedicou.

Como comunicar o nosso saber subjectivo aos outros? Não podemos comunicá-lo diretamente, aqui só podemos comunicar de maneira indireta, por uma espécie de dissimulação, de maneira a os «seduzir para o verdadeiro». O espírito só indiretamente pode revelar-se, dado que nada de exterior pode revelar completamente interior. Ficaria sempre uma ponta de segredo. Além disso, nunca há aí certeza; e a comunicação indireta é a única que preservará a liberdade daquele a quem é feita a comunicação; numa tensão apaixonada, ele poderá apropriar-se da verdade.

Kierkegaard expôs o que ele chama a teoria da comunicação indireta, que visava provavelmente qualquer coisa de mais profundo na sua própria personalidade; ele experimenta o sentimento de não poder dizer diretamente o que pensa. E preciso que ele empregue meios indiretos, e será o que se passa quando rompe com o noivado. Deste modo, á comunicação indireta é uma necessidade psicológica de Kierkegaard, mas, segundo ele, é também uma necessidade do nosso tempo quando se trata para um escritor religioso de expor a sua religião (não seria bom método dizer aos homens diretamente: «Tornem-se cristãos»). Também Kierkegaard usou de rodeios, descreveu primeiro a experiência estética, mostrou o que há de pouco satisfatório na experiência estética, e como é preciso substituí-la pela experiência ética. E uma das suas obras, pelo menos, parece ser feita para mostrar que o indivíduo deve integrar-se na sociedade tomando uma função, integrar-se na sociedade pelo casamento. Mas acima da experiência ética, como acima da experiência estética, há a experiência propriamente religiosa, e é o que ele mostrará particularmente em Temor e Tremor com o exemplo de Abraão.

Eis, portanto, duas razões, uma psicológica, a outra ligada à fraqueza do sentimento religioso na nossa época, que quase não pode ser despertado diretamente, para a comunicação indireta. Há uma terceira, é que só a comunicação indireta preserva a liberdade do outro, e, simultaneamente, permite-nos ver como o outro é livre, ver, se tal podemos dizer, a quantidade de liberdade que está no outro.

Mas esta ideia de comunicação indireta tem ainda um papel maior no pensamento de Kierkegaard: o próprio Deus não comunicou diretamente com os homens, veio sob uma forma velada, veio incógnito, não fez tudo para se revelar diretamente, fez até tudo para se revelar indiretamente.

Assim, esta comunicação indireta, que tinha a sua fonte na experiência psicológica de Kierkegaard e na necessidade da comunicação da verdade religiosa, é transferida por ele ao próprio Deus, à relação entre Deus e o homem.

A ideia de comunicação indireta está ligada a uma outra ideia, à do mal-entendido. E, efetivamente, entre Deus e o homem, como a vida e a morte de Cristo o mostram, há um imenso mal-entendido. E esta ideia de mal-entendido domina a vida psicológica de Kierkegaard. Também neste ponto a sua concepção religiosa e a sua psicologia correspondem uma à outra.

Mas nos últimos anos da sua vida, Kierkegaard ultrapassou a comunicação indireta. No momento em que ele lutou contra o que ele chama a Igreja estabelecida, contra a igreja luterana da Dinamarca, disse: devo falar, devo comunicar-me diretamente, devo dizer o verdadeiro, da maneira mais direta possível. Assim procedeu durante alguns meses do final da sua vida. Mas a sua comunicação, exceptuados estes alguns meses, podemos dizer que foi indireta.

Esta ideia de comunicação indireta encontrá-la-emos também de uma certa maneira em Jaspers, porque essa esfera superior ao homem que é a transcendência não pode ser comunicada diretamente. Jaspers diz sempre que só se pode falar do que é transcendente por tautologias, por antinomias, por antíteses, e finalmente por petições de princípio e absurdos. E uma espécie de teologia negativa. Do que há de mais alto nada podemos dizer, não podemos comunicá-lo diretamente.

Entretanto, há em Jaspers a possibilidade de uma comunicação direta, muito mais evidente que em Kierkegaard. Digamos, em primeiro lugar, que deixamos talvez demasiado de lado o papel que Kierkegaard dá ao amor. Um dos volumes dos seus sermões chama-se: A Operação do Amor. Há a comunicação direta de uma certa maneira entre Deus e a criatura, ainda que tenhamos tido de insistir, em primeiro lugar, sobre o incógnito de Deus e o mal-entendido entre Deus e a criatura. Há uma Igreja invisível; podemos unir-nos aos outros; há um domínio que Buber ou Gabriel Marcel chamarão o domínio do tu, que é o domínio das relações entre as pessoas.

Ê sobre o que Jaspers insiste particularmente, quando fala do amor em luta ou da luta do amor; dado que não é preciso imaginar — Scheler tinha já insistido nesta ideia— que o amor é lima fusão entre duas almas; cada uma continua a ser ela própria; e segundo Jaspers, que se distingue de Scheler em vários pontos desta teoria, cada alma tem de combater a alma do ser que ama. Elas formam-se uma pela outra, numa espécie de combate criador.

Em Heidegger, estas ideias têm menos importância, mas é preciso entretanto dizer que é injusto censurar a Heidegger não ter em conta a união entre os homens, dado que o Sein é sempre ao mesmo tempo Mitsein; ser é «ser com».

Disse-se que deste «ser com» Heidegger dava sempre sobretudo o exemplo de trabalho. Mas vemos, por exemplo, pelos comentários de Heidegger aos poemas de Hölderlin, que pode haver um lugar para o amor e a comunicação direta na teoria de Heidegger.

Vemos assim que o problema da comunicação com outrem, que tem diminuto lugar, pelo menos como problema, nas filosofias clássicas, tem-no acentuado nas filosofias da existência, mesmo se estas filosofias não admitem uma comunicação completamente direta, ou vulgarmente direta, com outrem, A própria dificuldade da comunicação de Kierkegaard com os outros é uma das origens da importância dada a este problema da comunicação. O que era quase evidente nas filosofias clássicas torna-se aqui pergunta, torna-se problema.

Quando fala do amor e da comunicação com outrem, em L’Être et le Néant, Sartre parece implicar que a comunicação é sempre imperfeita ou frustrada. O indivíduo tem necessidade do amor, principalmente, segundo Sartre, para se justificar pelo outro, para se justificar porque um outro o aprecia. Mas, por outro lado, Sartre tem o sentimento muito vivo de que a partir do momento em que sentimos que um outro nos olha, o outro prende-nos, de qualquer modo, o nosso mundo, que até aqui possuíamos só para nós. A partir do momento em que me sinto observado, eu estou roubado por esse olhar dirigido para mim e para o mundo. E a relação entre os outros faz, nas peças e nos romances de Sartre, a nossa infelicidade. «O inferno são os outros.»

Ë que, segundo Sartre, queremos essencialmente possuir o outro na sua liberdade, e que há aí qualquer coisa de contraditório. Dado que pode haver alguém que seja livre, podemos, por outro lado, possuir alguém, mas possuir alguém na sua liberdade é qualquer coisa que não pode ser realizada.

Além disso, o amor tal qual Sartre o descreve em L’Être et le Néant é sempre tentado pelo «em si», tende a fazer-nos cair do «para si» no «em si» e fazer de nós objetos.

Pode-se pôr a questão de saber se esta teoria de Sartre sobre a impossibilidade de obter comunicações felizes se aplica ao mundo autêntico, ou se verdadeiramente não é ao mundo do inautêntico que se aplica. Jeanson, no seu livro sobre Sartre, sustenta esta ideia, baseada, em grande parte, em que esta crítica do amor, tal qual está em L’Être et le Néant, só se aplica a um amor inautêntico e não se aplica a um amor profundo que tem a sua origem e o seu fim nos momentos da autenticidade.

Vimos que, para todas estas filosofias, a comunicação está longe de ser fácil. Ela é indirecta, está em luta, em Kierkegaard e em Jaspers, é imperfeita e frustrada em Sartre. É necessário dar um lugar particular ao pensamento de Gabriel Marcel e igualmente aos de Buber e de Berdiaeff, tanto neste ponto como em vários outros, dado que temos aí uma filosofia que afirma a possibilidade e a realidade da comunicação, comunicação religiosa, ou seja comunicação do eu com o tu absoluto, e também comunicação com os outros, que se fundamenta, de resto, por Gabriel Marcel, em e sobre a comunicação religiosa com o tu absoluto. Há valores, valores de fidelidade, valores de esperança, que se apoiam sobre a comunicação, que não existem sem a realidade da comunicação, e o nós tem uma tão grande realidade como o eu.

O amor, diz Gabriel Marcel, leva sempre ao infinito, o amor está ligado a um sentimento de inesgotável, de inexaustão, de «ainda». Opõe o tu e o eu, de um lado, ao ele, do outro. O ele é a esfera dos juízos; o eu e o tu é a esfera do apelo, da invocação e da oração.

Poderíamos opor, deste modo, a concepção de Gabriel Marcel à de Sartre, pelo menos como está exposta em L’Être et le Néant. Enquanto Sartre diz que o olhar do outro nos rouba qualquer coisa, Gabriel Marcel diz que há olhares que nos revelam nós próprios, que também nos revelam o outro, e que nos revelam o mundo. O mundo será, consequentemente, um mundo dramático feito de apelos, de orações e de invocações.

Na verdade, crença e amor serão, essencialmente, não julgamentos, mas apelo e invocação. Crer é sempre crer em um tu, em um tu que nós aparece como único. Mas quando é o tu absoluto, já não é o amor, ou é o amor que é a crença.

O amor é pois recusa de colocar o tu em questão e de o transformar pelo mesmo motivo num ele (encontraram-se ideias muito semelhantes em Kierkegaard). O tu, diz Gabriel Marcel, é para a invocação o que o sujeito é para o juízo. Nele há um fidelidade criadora, porque ele cria aquilo em que crê. Daí a ideia de consagração, daí também o lugar das ideias de esperança e de fé em Gabriel Marcel.

Gabriel Marcel proíbe-nos, de algum modo, de fazer perguntas a respeito dos sentimentos profundos que estão em nós: seria transformar o mistério em problema, em questão, seria fazê-lo desaparecer como mistério. Mas que fazer então desta «dialéctica da certeza e da incerteza» que é o amor para Kierkegaard (ao mesmo tempo que é obediência) ? Fica a questão de saber em que medida podemos separar o objecto da crença e o sujeito da crença. Seria necessário, sem dúvida, completar o que diz Gabriel Marcel por uma certa teoria das relações, que ele, contudo, não elaborou. Põe-se para ele o mesmo problema que se punha para Kierkegaard: em que medida o objecto da crença é independente do sujeito da crença? Kierkegaard dizia-nos: ele está em relação intensa comigo e eu estou em relação intensa com ele. Como são possíveis as duas coisas ?

Recordemos que na sua primeira obra filosófica, o Journal Métaphysique, Gabriel Marcel estava muito perto de uma teologia negativa, e nela podemos encontrar uma fórmula como esta: «Desde que se fale de Deus, já não é de Deus que se fala», fórmula que deve ser meditada.