Arendt (LM:94-96) – pensar e julgar

Abranches, Almeida e Martins

Essa distinção entre pensar e julgar só veio a merecer destaque com a filosofia política de Kant — o que não é de se estranhar, já que Kant foi o primeiro e permaneceu sendo o último dos grandes filósofos a lidar com o juízo como uma das atividades espirituais básicas. Pois o que importa é que nos vários tratados e ensaios que Kant escreveu tardiamente, o ponto de vista do espectador não é determinado pelos imperativos categóricos da razão prática, isto é, pela resposta da razão à pergunta “O que devo fazer?”. Essa resposta é moral e diz respeito ao indivíduo como indivíduo, em plena independência autônoma da razão. Como tal, ele jamais pode, de um modo moral-prático, reclamar para si o direito de rebelar-se. Ainda assim, o mesmo indivíduo — não quando age, mas quando é um mero espectador — tem o direito de julgar e de emitir o veredito final sobre a Revolução Francesa unicamente com base em sua “ansiosa participação, beirando o entusiasmo”, em seu desejo de compartilhar da “exaltação do público não envolvido”, baseando-se, em outras palavras, no juízo dos espectadores, seus semelhantes, que também não tinham “a menor intenção de participar” dos eventos. E foi o veredito deles, em última análise, e não o desempenho dos atores, que persuadiu Kant a chamar a Revolução Francesa de “um fenômeno na história humana (que) não deve ser esquecido.” Nesse choque entre a ação participante e conjunta — sem a qual, afinal, os eventos a serem julgados jamais teriam chegado a existir — e o juízo observador e reflexivo, Kant não tem dúvidas sobre qual deles deve ter a última palavra. Supondo que a história seja apenas a história miserável dos eternos altos e baixos da humanidade, o espetáculo de som e fúria “poderá, talvez, ser comovente por algum tempo; mas a cortina eventualmente deve cair. Pois ao cabo de certo tempo, o espetáculo torna-se uma farsa. E mesmo que os atores não se cansem dele — pois eles são tolos —, o espectador se cansará, pois um único ato será para ele suficiente se puder dele concluir que a peça interminavelmente encenada será eternamente a mesma.” (grifos nossos)

Esta é, de fato, uma passagem reveladora. Se a ela acrescentamos a convicção kantiana de que os assuntos humanos são guiados pelo “ardil da natureza”, que conduz a espécie humana por trás dos homens de ação — em um perpétuo progresso, assim como a “astúcia da razão” de Hegel leva os homens à revelação do Espírito Absoluto —, poderemos encontrar justificativa para a questão; ou nem todos os atores são tolos, ou o espetáculo, ao revelar-se somente ao espectador, não poderia também estar a serviço dos tolos. Com qualificações mais ou menos sofisticadas, essa sempre foi a suposição secreta dos filósofos da história, isto é, daqueles pensadores da era moderna que, pela primeira vez, decidiram levar a sério o bastante a esfera dos assuntos humanos — os ta ton anthropon pragmata de Platão — para chegar a refletir sobre ela. E não estariam certos? Não é verdade que “das ações dos homens resulta algo diferente do que eles tencionavam e do que chegam a realizar, algo diferente do que conhecem ou do que querem?” “Para fazer uma analogia, um homem pode incendiar a casa de outro por vingança… A ação imediata é a de aproximar uma pequena chama de uma pequena parte de uma viga de madeira… (O que se segue é) uma vasta conflagração … Esse resultado não foi parte do ato primeiro nem a intenção daquele que o iniciou … Esse exemplo apenas mostra que na ação imediata pode estar envolvido algo diferente daquilo que é conscientemente desejado pelo ator.” (Estas são palavras de Hegel, mas poderiam ter sido escritas por Kant.) Em ambos os casos, não é por meio da ação, mas da contemplação, que o “algo diferente”, a saber, o significado do todo, é revelado. O espectador, e não o ator, tem a chave do significado dos negócios humanos — apenas, e isto é decisivo, os espectadores de Kant existem no plural, e é esta a razão pela qual ele pôde chegar a uma filosofia política. O espectador de Hegel existe estritamente no singular: o filósofo torna-se o órgão do Espírito Absoluto e o filósofo é o próprio Hegel. Mas mesmo Kant, mais consciente da pluralidade humana do que qualquer outro filósofo, pôde esquecer, convenientemente, que se o espetáculo fosse sempre o mesmo, e, portanto, fosse cansativo, as audiências mudariam de geração para geração; e que seria pouco provável que uma nova audiência chegasse às mesmas conclusões legadas pela tradição sobre o que teria a dizer uma peça imutável.

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 73-75

Original

  1. “Der Streit der Fakultäten,” pt. II, 6 and 7, Werke, vol. VI, pp. 357–362.[↩]
  2. “Ueber den Gemeinspruch,” Werke, vol. VI, pp. 166-167[↩]
  3. Hegel, Philosophie der Weltgeschichte, Introduction.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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