- Eudoro de Sousa
- Original
Eudoro de Sousa
1. No tempo e no espaço todas as distâncias se contraem. Lá onde outrora o homem viajava por semanas e meses, chega ele agora, de avião, numa noite. Aquilo de que outrora o homem só obtinha informação, após anos, ou de que, pura e simplesmente, nem era informado, agora ele o sabe num instante, hora a hora, através do rádio. O germinar e o crescer dos vegetais, que ficavam ocultos no decorrer das estações, o filme o apresenta agora, em público, num minuto. O filme mostra os centros longínquos das mais remotas civilizações, como se estivessem agora no próprio movimento das ruas. E depois, também presta testemunho do que mostra, exibindo ao mesmo tempo e no mesmo trabalho o aparelho cinematográfico e os homens que o manipulam. Mas o cúmulo da supressão de toda a possibilidade de distanciamento é a televisão, que logo percorre e domina toda a engrenagem e toda a agitação das relações humanas.
2. No tempo mais breve, o homem vence os mais longos percursos. Deixa para trás de si as maiores distâncias, e todas as coisas traz para diante de si, à menor distância.
3. Só que, a célere supressão de toda a distância não traz nenhuma proximidade: pois esta não consiste na pouca extensão de distância. O que, na extensão, mercê da imagem do cinema, mercê do som do rádio, chega à menor distância de nós pode permanecer na lonjura. O que, na extensão, está desmedidamente distante pode ser próximo de nós. Pequena distância ainda não é proximidade. Grande distância ainda não é Lonjura.
4. Que é a proximidade, se ela, apesar de se contraírem as maiores extensões em menores intervalos, permanece ausente? (201) Que é a proximidade, se ela mesma se afasta por essa infatigável supressão das distâncias? Que é a proximidade, se ao seu ficar ausente também não sobrevêm a lonjura?
5. Que se passa, então, se, pelo suprimir as grandes distâncias tudo fica igualmente próximo e igualmente longínquo? Que é este «equiforme» (Gleichförmig), em que tudo, não estando nem perto nem longe, é, por assim dizer, sem-distância?
6. No «equiforme-sem-distância», tudo flutua juntamente. Como? O aconchegar-se no sem-distância não é ainda mais pavoroso que uma interfissão de todas as coisas? O homem se estarrece diante do que poderia acontecer com a explosão da bomba atômica. Não vê ele o que já há muito lhe adveio: o que acontece como o que para fora de si projeta a bomba e a sua explosão, e que estas são apenas como que a sua projeção, para não falar dessa única bomba de hidrogênio, cuja detonação, pensada até às últimas consequências possíveis, poderia significar a extinção de toda a vida na terra. Por que espera ainda esta angústia desamparada, se o terrifico já aconteceu?
7. O terrificante é aquilo que faz sair tudo o que é do seu ser anterior. Que é este terrificante? É o que se mostra e oculta na maneira como, apesar de todas as vitórias sobre as distâncias, a proximidade do que é permaneça ausente.
8. Que é da proximidade? Como podemos aprender o ser dela? A proximidade, ao que parece, não se deixa descobrir diretamente. Mas consegui-lo-emos, acompanhando o que está na proximidade. Na proximidade está, para nós, o que costumamos chamar de coisas. Mas que é uma coisa? Até agora, o homem tão pouco tem considerado a coisa enquanto coisa quanto a proximidade. O cântaro é uma coisa. Que é o cântaro? Dizemos nós: um vaso (Gefass) é o que contém (fasst) em si algo outro. O continente (Fassende), no cântaro, são o fundo e as paredes. Este continente mesmo é preensível (fassbar) pela asa. Como vaso, o cântaro é algo que está em si. O estar-em-si caracteriza-o como independente (Selbständiges). Enquanto autoposição de um autônomo, o cântaro se distingue de um objeto (Gegenstand = ob-posição). Algo autônomo pode volver-se em objeto, se o colocamos diante de nós, seja numa percepção direta, seja numa representação reminiscente (erinerndem Vergegenwärtigung). A coisidade da coisa não reside, todavia, em que ela seja objeto representado, nem se deixa, de modo nenhum, determinar a partir da objetividade do objeto.
9. O cântaro permanece vaso, representemo-lo ou não. Como vaso, o cântaro está em si. Mas que significa que o continente (202) esteja em si? Será que o estar-em-si do vaso já determina o cântaro como coisa? Entretanto, o cântaro só está como vaso na medida em que foi levado a um estar (zu einem Stehen). O que aconteceu, no entanto, e acontece através do pôr (Stellen), isto é, através do produzir (Herstellen). O oleiro apronta o cântaro com terra selecionada e especialmente preparada para isso. Desta terra consiste o cântaro. Pelo que de que consiste, pode também estar sobre a terra, direta ou indiretamente, por meio de uma mesa ou de um banco. O que consiste através de tal produzir é o que está-em-si. Se tomamos o cântaro como vaso produzido, então, parece, o apreendemos como uma coisa e, de algum modo, como simples objeto.
10. Ou, ainda assim, tomamos sempre o cântaro como um objeto? Certamente. Em verdade, porém, não mais tão-só como objeto do puro representar (Vorstellen), mas é um objeto que um produzir (Herstellen) nos põe, nos confronta e nos opõe. O estar-em-si parece caracterizar o cântaro como coisa. Na verdade, porém, nós pensamos o estar-em-si a partir do produzir. O que o produzir visa é ao estar-em-si. Mas, ainda assim, é sempre pensado a partir da objetividade (Gegenständlichkeit), embora o «ob-jetar» (das Gegenstehen = oposição) do produzido (Hergestellten) já não se fundamente no puro representar (Vorstellen). Por conseguinte, da objetividade do objeto e da (sua) autoposição, não há caminho que conduza à coisidade da coisa.
11. Que é o «côisico» (Dingliche) na coisa? Que é a coisa em si? Não chegaremos à coisa em si enquanto nosso pensamento não tenha alcançado, alguma vez, a coisa como coisa.
12. O cântaro é uma coisa, como vaso (Gefäss). Na verdade, este continente (Fassende) necessita de uma produção. Mas a qualidade de ter sido produzido (Hersgestelltheit) pelo oleiro não perfaz (macht… aus), de modo nenhum, o que é próprio do cântaro enquanto cântaro. O cântaro não é vaso porque tenha sido produzido, mas o cântaro precisou de ser produzido, porque ele é este vaso.
13. Sem dúvida, a produção faz entrar o cântaro no que lhe é próprio. Apenas, este próprio do ser do cântaro não é produto da produção. Uma vez fabricado, o cântaro que está por si mesmo tem de se conter reunido no estar por si mesmo, no entrar no que lhe é próprio. Certamente, o cântaro, quando do processo da produção, de antemão tem de mostrar seu aspecto ao produtor. Mas o que se mostra, o aspecto (eidos, ideia), só caracteriza o cântaro segundo a perspectiva na qual o vaso, como afazer, se confronta com o produtor. (203)
14. Todavia, o que é o vaso que tem tal aspecto, enquanto seja este cântaro — o que e como é o cântaro, enquanto esta coisa-cântaro jamais se pode conhecer e, muito menos, adequadamente pensar, através do enfoque do aspecto, da «ideia». Eis por que Platão, que se representa a presença do que se apresenta, a partir do aspecto, tão-pouco pensou o ser da coisa, quanto Aristóteles e todos os pensadores subsequentes. Pelo contrário, Platão apreendeu, de maneira determinante para as épocas posteriores, todo o presente como objeto do produzir. Em vez de objeto, digamos com mais exatidão: «pro-veniente» (Her-stand). No pleno ser do «pro-veniente» domina um duplo provir: de um lado, o provir no sentido de «originar-se de» (Herstammen… aus), seja ele um produzir-se ou um ser produzido; de outro lado, o provir no sentido da vinda do produzido à não-ocultação do já presente.
15. No entanto, nenhum representar do presente, no sentido de «pro-vindo» e de «objetado», alcança a coisa enquanto coisa. A coisidade da coisa assenta no que ele, cântaro, é enquanto vaso. Nós percebemos o continente (Gefässfassen) do vaso quando enchemos o cântaro. Fundo e paredes do cântaro assumem, evidentemente, o conter (ubernehmen das Fassen). Mas, devagar! Quando enchemos o cântaro de vinho, vertemos o vinho nas paredes e no fundo? No máximo, vertemos entre as paredes sobre o fundo. Paredes e fundo são, precisamente, no vaso, «o que não deixa passar» (das Undurchlässig). Apenas, «o que não deixa passar» ainda não é «o que contém». Quando enchemos o cântaro, o líquido cai, no ato de encher, no cântaro vazio. O vazio é o continente do vaso. O vazio, esse nada no cântaro, é o que o cântaro é enquanto vaso continente (fassende Gefäss).
16. Todavia, o cântaro consiste de paredes e fundo. O cântaro está de pé (steht), por aquilo de que consiste. Que seria um cântaro que não permanecesse de pé? Pelo menos, um cântaro defeituoso; porém, ainda um cântaro, isto é, que conteria; mas um cântaro que, virando continuamente, deixaria escorrer o conteúdo. Mas só um vaso pode escorrer.
17. As paredes e o fundo, de que consiste o cântaro, e pelo que está de pé, não são propriamente o que contém. Mas se o continente reside no vazio do cântaro, então o oleiro que em seu torno forma (bildet) paredes e fundo não fabrica propriamente o cântaro. Apenas conforma (gestaltet) a argila. Não; conforma o vazio. Por ele, nele e a partir dele, o oleiro modela a argila numa forma. Em primeiro lugar e sempre, o oleiro «capta e concebe» (fasst) o incaptável e inconcebível (das Unfasslich) do vazio, e o (204) produz, como continente, na forma do vaso. O vazio do vaso determina cada gesto do produzir. A coisidade do vaso não reside, de modo nenhum, na matéria de que ele consiste, mas no vazio que contém.
18. Contudo é o cântaro realmente vazio?
19. A ciência física nos assegura de que o cântaro está cheio de ar e de tudo o que constitui a mistura do ar. Nós nos deixamos iludir por uma maneira de ver meio poética, quando apelamos para o vazio do cântaro, para determinar o que nele é continente.
20. Logo que aceitemos investigar cientificamente o cântaro real, sobre sua realidade, outro estado de coisas se nos apresenta. Quando vertemos o vinho no cântaro, o ar, que já o enche, é simplesmente desalojado e substituído por um líquido. O encher o cântaro, cientificamente visto, significa trocar um conteúdo por outro.
21. Estas afirmações da física são corretas. Através delas a ciência representa algo real, a modo como ela se regula objetivamente. Mas… é este real o cântaro? Não. A ciência nunca atinge senão o que seu modo de representar admitiu a priori como seu objeto possível.
22. Diz-se que o saber da ciência é cogente. Decerto. Mas de que consiste o que nela coage? Para o nosso caso, na coação de abandonar o cântaro cheio de vinho e de pôr em seu lugar um espaço oco, no qual o líquido se espalha. A ciência converte em nada a coisa-cântaro, desde que não admite as coisas como um real determinante.
23. O saber cogente da ciência, em seu domínio, que é dos objetos, já aniquilou as coisas enquanto coisas, muito antes que a bomba atômica explodisse — explosão que é apenas a mais grosseira de todas as grosseiras confirmações do aniquilamento da coisa, já há muito acontecida, qual é que a coisa enquanto coisa permanece nula. A coisidade da coisa está oculta, olvidada. Jamais o ser da coisa vem à luz, isto é, jamais assoma ao nível da linguagem. É a isto que alude o falar-se do aniquilamento da coisa enquanto coisa. O aniquilamento é tão pavoroso, porque leva, diante de si, um duplo ofuscamento: de um lado, a opinião de que a ciência, antes de qualquer outro conhecimento, atinge o real em sua realidade; de outro, a aparência de que, sem detrimento da investigação científica do real, as coisas possam ainda ser coisas, o que pressupõe que, afinal, elas já eram coisas «essentes». Porém, se as coisas já se tivessem mostrado como coisas, na sua coisidade, (205) então, esta se teria tornado manifesta. Seu apelo teria alcançado o pensamento. A verdade, no entanto, é que a coisa como coisa permanece vedada, nula, e, neste sentido, aniquilada. Isto aconteceu e acontece de modo tão essencial que as coisas não só não são mais admitidas como coisas, mas ainda puderam aparecer como coisas, ao pensamento.
24. Sobre que assenta o não aparecer a coisa enquanto coisa? Teria o homem simplesmente negligenciado o representar-se a coisa enquanto coisa? O homem só pode negligenciar o que já lhe foi assinalado. De qualquer maneira, o homem só pode representar-se aquilo que, previamente, a partir de si mesmo se tenha iluminado, e a ele se tenha mostrado à luz que traz consigo.
25. Que é, então, a coisa enquanto coisa, para que seu ser ainda não tenha podido aparecer?
26. Ainda não veio a coisa à suficiente proximidade, para que o homem não tenha aprendido bastante a atentar na coisa enquanto coisa? Que é a proximidade? Já o perguntamos. Para sabê-lo, interroguemos o cântaro na proximidade.
27. Em que reside a cantaridade do cântaro? Perdemo-lo subitamente de vista, no próprio momento em que se impunha a aparência de que a ciência nos pudesse prestar uma explicação sobre a realidade do cântaro real. Nós nos representamos o atuante do vaso (das Wirkende des Gefässes), seu continente, o vazio, como um espaço oco, repleto de ar. Isso é o vaso real, fisicamente pensado; mas isso não é o vazio do cântaro. Não deixamos, nós, que o vazio do cântaro seja o seu vazio. Não consideramos o que no vaso é continente. Não refletimos sobre o que o conter mesmo é. Por isso, também nos devia escapar aquilo que o cântaro contém. Para a representação científica, o vinho se volve em simples líquido, e este, num estado geral de agregação da matéria, possível em qualquer parte. Omitimo-nos de refletir no que o cântaro contém e em como ele contém.
28. Como contém o vazio do cântaro? Contém, enquanto acolhe (nimmt) o que nele é vertido. Contém enquanto retém o que recebeu. O vazio contém de dupla maneira: recebendo e retendo. A palavra «contém» é, por isso, equívoca (zweideutig). O receber a «in-versão» e o «em-reter» a versão são, contudo, solidários. Mas sua unidade determina-se a partir do «e-verter» (Aus-giessen), ao qual o cântaro se adequa. O duplo conter do vazio repousa no «e-verter». Como «e-verter», o conter é propriamente como ele é. «E-verter» do cântaro é o oferecer (Schenken). No oferecer a versão (Guss) está o ser de conter do vaso. O conter necessita do vazio (206) como continente. O Ser do vazio continente está reunido no oferecer. Porém, o oferecer é mais rico do que o cântaro, reúne-se no duplo conter, isto é, no «everter». A reunião das montanhas chamamos «maciço» (Gebirg). À reunião do duplo conter, no «e-verter», a qual, só enquanto «juntamente» (dia als Zusammen erst…) consuma o pleno ser do oferecer, chamamos nós «oferta» (Geschenk). A cantaridade do cântaro tem o ser na oferta da versão. Mesmo vazio, o cântaro retém seu ser, a partir da oferta, embora o cântaro vazio não permita um servir. Mas este não-permitir é próprio do cântaro e só do cântaro. Uma foice ou um martelo são, pelo contrário, incapazes de um não-permitir tal oferecer. A oferta da versão pode ser uma bebida. Ela dá água, ela dá vinho para beber.
29. Na água da oferta demora-se a fonte. Na fonte demora-se a rocha e, nesta, o sono escuro da terra 171 que recebe do céu a chuva e o orvalho. Na água da fonte perduram as núpcias do céu e da terra. Elas duram no vinho que o fruto da vinha dá, no qual o nutriente da terra e o sol do céu um ao outro estão confiados. Na oferta da água, na oferta do vinho, se demoram céu e terra. Ora a oferta da versão é a cantaridade do cântaro. No ser do cântaro duram o céu e a terra.
30. A oferta da versão é a bebida para os mortais. Ela mitiga a sede. Deleita seus ócios. Alegra seu convívio. Mas, às vezes, também a oferta do cântaro é ofertada em consagração, já não estanca uma sede. Sereniza, elevando-a, a cerimônia da festa. Então, a oferta da versão não é oferecida numa taverna, nem é oferta uma bebida para os mortais. A versão é a libação ofertada aos deuses imortais. A oferta da versão como libação é a verdadeira oferta. No oferecer da libação consagrada está o ser do cântaro vertente, como oferta ofertante. A libação consagrada é o que a palavra «Guss» («versão») propriamente designa: oferenda e sacrifício. «Guss», «giessen», diz-se em grego Khéein, em indo-europeu, ghu. Isto significa: sacrificar. Quando essencialmente consumado, suficientemente pensado e autenticamente pronunciado, «giessen» («verter») é oferendar, sacrificar e, portanto, ofertar (spenden, opfern, schenken). Só por isso pode o verter, quando se atrofia o seu ser, volver-se em mero encher e servir, até que finalmente degenere no regalo comum. Verter não é simples encher e despejar.
31. Na oferta da versão que é bebida, perduram os mortais a seu modo. Na oferta da versão que é libação, perduram, a seu modo, os divinos, que recebem de volta a oferta do oferecer como oferta da oferenda. De maneira diversa duram os mortais e os (207) divinos, na oferta da versão. Na oferta da versão duram terra e céu. Na oferta da versão «conduram», no mesmo tempo, a terra e o céu, os divinos e os mortais. Unidos de dentro, estes Quatro uns a outros pertencem, conjuntamente. Antecipando todo o presente, eles são «unificados» em um Quadrado único.
32. Na oferta da versão perdura a «unificidade» (Einfalt) dos Quatro.
33. A oferta da versão é oferta na medida em que retém a terra e o céu, os divinos e os mortais. Pois reter já não é, agora, mero persistir de algo que está à mão. Reter manifesta (acontece). Traz os Quatro para a luz do que lhes é próprio, a partir de cuja «unificidade» uns aos outros se confiam. Unidos nesta mutualidade, estão desocultos. A oferta da versão retém a «unificidade» do Quadrado dos Quatro. Ora, na oferta, está o ser do cântaro enquanto cântaro. A oferta reúne o que ao oferecer pertence: o duplo conter, o continente, o vazio e o «e-verter» como oferenda. O reunido na oferta a si mesmo se une nisto, no reter, manifestando o Quadrado. Este múltiplo-simples reunir é o ser do cântaro. O que é reunião, nossa língua o designa por uma antiga palavra: «thing». O ser do cântaro é a pura reunião do Quadrado «unifico», numa duração. O cântaro é enquanto coisa. O cântaro é o cântaro enquanto uma coisa. Como, porém, a coisa é? A coisa (substantivo) «coisa» (verbo; daqui por diante o verbo virá sempre entre aspas). O «coisar» reúne. Manifestando o Quadrado, ele une a duração deste em cada algo durável: nesta coisa, naquela coisa.
34. Nós damos ao ser do cântaro, assim experimentado e pensado, o nome de coisa. Pensamos agora este nome, a partir do ser pensado da coisa, a partir do «coisar», como o reuninte-manifestante reter do Quadrado. Todavia, com isso nos recordamos, ao mesmo tempo, da palavra do antigo alto-alemão «thing». Esta indicação histórico-linguística leva facilmente a mal-entender a maneira como pensamos agora o ser da coisa. Poderia parecer que o ser da coisa, agora pensado, teria sido, por assim dizer, «desenovelado» a partir da significação, fortuitamente colhida, do antigo alto-alemão «thing». Levanta-se a suspeita de que a experiência do ser da coisa, agora tentada, se fundamenta na arbitrariedade de um jogo etimológico. Reforça-se e já se torna costumeira a opinião de que, aqui, em vez de se considerar o comportamento do ser, se utiliza simplesmente o dicionário.
35. Aqui, no entanto, o caso vai ao contrário de tais receios. E certo que no antigo alto-alemão «thing» significa a reunião e, precisamente, a assembleia para deliberação de um assunto em (208) causa, de um litígio. Por conseguinte, as antigas palavras alemãs, «thing» e «dinc» volvem-se em nomes para «caso»; designam tudo o que, de algum modo, importa ao homem, que lhe concerne, tudo o que, consequentemente, está em questão. Ao que está em questão, os Romanos chamam «res»; «eíro» (rhetós, rhetra, rhema) significa, em grego, «falar sobre alguma coisa, deliberar acerca dela»; «res publica» não quer dizer «estado», mas aquilo que, entre o povo, concerne notoriamente a cada qual, que «o tem» (ihm hat), e, por isso, é publicamente discutido.
36. Só por isso, porque «res» significa o «concernente», pode a palavra surgir nas expressões «res adversae», «res secundae»; aquela designa o que concerne ao homem de maneira adversa; esta, o que favoravelmente é conduzido a ele. Os dicionários traduzem, sem dúvida, corretamente, «res adversae» por «infortúnio», «res secundae» por «fortuna». Do que, porém, as palavras dizem, enquanto pensadas e faladas, pouco os dicionários informam. Eis por que, em verdade, neste como nos demais casos sucede, não que o nosso pensamento viva de etimologia, mas que a etimologia permaneça atenta, em primeiro lugar, à consideração do comportamento do ser, àquilo que as palavras enquanto palavras designam de modo inexplícito.
37. A palavra romana «res» designa o que concerne ao homem, o negócio, o litígio, o caso (Fall). Para que os Romanos também usam a palavra «causa» (Ursache); «causa» quer dizer o caso (Fall) e, por isso, também o que constitui o caso, o que nele se passa e se decide. Somente porque «causa», quase sinônimo de «res», significa o caso, pode a palavra «causa» chegar depois à significação de causa (Ursache), no sentido de causalidade de um efeito. A palavra do antigo alto-alemão «thing» e «dinc», com seu significado de reunião para deliberação de um assunto, é apropriada, como nenhuma outra, para traduzir convenientemente a palavra romana «res», o concernente. Daquela outra palavra da língua romana que corresponde intimamente à palavra «res», da palavra «causa», no sentido de caso de assunto, deriva o romântico «la cosa» e o francês «la chose»; nós dizemos «das Ding». Em inglês, «Thing» conserva ainda a plena força denominativa da palavra «res»: «he knows his things», «ele entende de suas coisas», daquilo que lhe concerne; «he knows how to handle things», «ele sabe como se deve lidar com as coisas», isto é, com aquilo acerca de que se trata, caso por caso; «That’s a great thing», «isto é uma grande (bela, poderosa, magnífica) coisa», isto é, algo que vem por si, concernente ao homem. (209)
38. Decisiva, porém, não é, de maneira nenhuma, a história semântica, a que brevemente se aludiu, das palavras «res», «Ding», «coisa» e «chose», «thing», mas algo totalmente diverso e até aqui ainda não considerado. A palavra romana «res» nomeia aquilo que, de qualquer maneira, concerne ao homem. O concernente é o real da «res». Romanamente experienciada, a «realidade» da «res» volve-se em concernimento. Porém, os Romanos jamais pensaram este seu experienciado, expressamente, em seu ser. Em vez disso, a «realitas» romana da «res» é representada, por aceitação da filosofia grega tardia, no sentido do «ón» grego; «ón», em latim, «ens», significa o que é presente, no sentido do a-presentado (como pro-duzido) e do representado. A «realitas» própria da «res», original e romanamente experimentada, o concernimento, permanece encoberta enquanto ser do que é presente. Pelo contrário, posteriormente, em especial na Idade Média, o nome «res» serve para designar todo o «ens qua ens», isto é, tudo o que de qualquer maneira é presente, mesmo quando «pro-vém» só da representação e fica presente como «ens rationis». O mesmo que se dá com a palavra «res» se dá com o «dinc» que lhe corresponde; pois «dinc» significa tudo o que é de alguma maneira. Assim, Mestre Eckhardt usa a palavra «dinc» tanto para Deus como para a alma. Deus é, para ele, «das hoechste und oberste dinc» (a coisa mais alta e suprema). A alma é uma «groz dinc» (grande coisa). Com isto, quer este mestre do pensamento dizer que Deus e alma sejam semelhantes a uma rocha, um objeto material? «Dinc» é aqui o nome cauteloso e discreto para algo que, pura e simplesmente, é. Assim, Mestre Eckhardt diz, seguindo Dionísio Areopagita: «diu minne ist der natur, daz si den menschen wandelt in die dinc, die er minnet» (o amor é de tal natureza, que transforma o homem nas coisas que ele ama).
39. Porque a palavra «coisa», na linguagem da metafísica ocidental, designa o que, em geral e de qualquer maneira, é algo, por isso a significação do nome «coisa» varia conforme a interpretação daquilo que é, do ente. Da mesma maneira como Mestre Eckhardt, Kant fala das coisas e entende por este nome algo que é. Mas para Kant, o que é volve-se em objeto do representar, que se desenrola na autoconsciência do eu humano. A coisa em si significa para Kant o objeto em si. O caráter do «em si» significa para Kant que o objeto em si é «ob-jeto» sem relação com o representar, isto é, sem o «ob», por meio do qual, antes de mais, ele está para este representar. «Coisa em si» significa, pensada de modo estritamente kantiano, um «ob-jeto» que não é nenhum (210) para nós, porque ele deve estar sem um «ob» possível, para o representar humano que se lhe opõe.
40. Todavia, nem a significação geral, há muito utilizada, do nome «coisa», na linguagem da filosofia, nem a significação em antigo alto-alemão da palavra «thing», nos ajudam um mínimo sequer, na necessidade de aprender e de pensar suficientemente a origem do ser daquilo que nós dizemos agora do ser do cântaro. Em compensação, é certo que um momento de significação, tomado do antigo uso da linguagem, quando se diz a palavra «thing», a saber, «reunir», interessa o ser do cântaro, antes pensado.
41. O cântaro não é uma coisa, nem no sentido da «res» romanamente entendida, nem no sentido do «ens» representado à medieval, e menos ainda no sentido do objecto modernamente representado. O cântaro é coisa na medida em que ela «coisa». Da mesma forma, é somente a partir do «coisar» da coisa que a presença do que é presente, tal como o cântaro, se manifesta e determina.
42. Hoje, tudo o que é presente está igualmente perto e igualmente distante. Reina o sem-distância. Entretanto, todo o encurtar e alongar das distâncias não traz nenhuma proximidade. Que é a proximidade? Para descobrir o ser da proximidade, consideramos o cântaro na proximidade. Procuramos o ser da proximidade e encontramos o ser do cântaro como coisa. Mas, nesta descoberta, percebemos, simultaneamente, o ser da proximidade. A coisa «coisa». «Coisando», ela retém a terra e o céu, os divinos e os mortais; retendo, a coisa traz os Quatro, nas suas distâncias, para a proximidade uns dos outros. Este trazer próximo é o aproximar. Aproximar é o ser da proximidade. A proximidade aproxima o distante, precisamente enquanto distante. A proximidade guarda a lonjura. Guardando a lonjura, a proximidade tem o seu ser no seu aproximar. Aproximando, desta maneira, a proximidade oculta-se a si mesma e permanece, a seu modo, o mais próximo.
43. A coisa não está «na» proximidade, como se esta fosse um receptáculo. A proximidade reina no aproximar, enquanto «coisar» da coisa.
44. «Coisando», a coisa retém unidos os Quatro, a terra e o céu, os divinos e os mortais, na «unificidade» do seu Quadrado, unido a partir de si mesmo.
45. A terra é a sustentante-construinte, a frutificante-nutriente, velando pela água e a rocha, a planta e o animal.
46. Se dizemos terra, com ela pensamos já os outros três, desde a «unificidade» dos Quatro. (211)
47. O céu é a passagem do sol, o curso da lua, o esplendor dos astros, as estações do ano, a luz e o alvorecer do dia, a escuridão e a claridade da noite, a suavidade e o rigor do tempo, o deslizar das nuvens e a profundidade aulada do éter.
48. Se dizemos céu, com ele já pensamos os outros três, desde a «unificidade» dos Quatro.
49. Os divinos são os acenantes mensageiros da Divindade. A partir de seu oculto reinar, o Deus aparece no seu ser, que o subtrai a todo o confronto com o que é presente.
50. Se nomeamos os divinos, já com eles pensamos os outros três, desde a «unificidade» dos Quatro.
51. Os mortais são os homens. Eles se chamam mortais porque podem morrer. Morrer significa: poder a morte enquanto morte. Só o homem morre. O animal acaba. Ele não tem a morte nem ante si nem atrás de si. A morte é o Santuário do Nada, isto é, daquilo que, em todas as maneiras de ver, não é jamais um simples ente, mas que, não obstante, é, até mesmo como o mistério do próprio ser. A morte, enquanto Santuário do Nada, abriga em si o ser do ser. Aos mortais, chamamo-los agora os mortais, não porque sua vida terrestre tem fim, mas porque eles podem a morte enquanto morte. Os mortais são o que eles são como mortais, sendo (o que são) no abrigo do ser. Eles são a relação «essente» ao ser enquanto ser.
52. A metafísica, pelo contrário, representa o homem como «animal», como ser vivente. Mesmo quando a «ratio» pergoverna (durchwaltet) a «animalitas», o ser humano permanece determinado a partir do viver e do experimentar. Os seres vivos racionais devem primeiro tornar-se mortais.
53. Se dizemos os mortais, já com eles pensamos os outros três, desde a «unificidade» dos Quatro.
54. A terra e o céu, os divinos e os mortais, unidos uns aos outros a partir de si mesmos, a partir da «unificidade» unida do Quadrado, uns aos outros se pertencem. Cada um dos quatro reflete, à sua maneira, o ser dos demais, com isso, cada um se reflete, à sua maneira, no seu próprio ser, o seio da «unificidade» dos Quatro. Este refletir-se não é nenhum produzir de uma imagem. Iluminando cada um dos Quatro, o refletir manifesta mutuamente o ser próprio de cada um, na transpropriação simples de uns nos outros. Refletindo deste modo iluminante-manifestante, cada um dos Quatro se joga em cada um dos outros. O refletir-manifestante libera cada um dos Quatro para o seu «próprio», liga, porém, os livres na «unificidade» da sua interpertinência ôntica. (272)
55. O refletir que liga no livre é o jogo que cada um dos Quatro confia a cada um dos outros, desde o recôndito centro da «transpropriação». Nenhum dos Quatro se retesa quanto ao que lhe é apartadamente singular. Antes, cada um dos Quatro é, no interior de sua transpropriação, expropriado para algo que lhe é «próprio». Este transpropriar expropriante é o jogo de espelhos do Quadrado. A partir dele, se confia a «unificidade» dos Quatro.
56. Ao manifestante jogo de espelhos da «unificidade» de terra e céu, divinos e mortais, nós chamamos mundo. O mundo é, enquanto ele «munda». Isto quer dizer, o «mundar» do mundo não é explicável por qualquer outra coisa, nem perscrutável a partir de qualquer outra coisa. Este impossível não está em que o nosso pensamento humano seja incapaz de um tal explicar e fundamentar. Antes se diria, o inexplicável e infundamentável do «mundar» do mundo reside em que coisas tais, como causas e fundamentos, permanecem inadequadas ao «mundar» do mundo. Tão logo, aqui, o conhecer humano reclama um explicar, não ultrapassa, ele, o ser do mundo. A humana vontade de explicar não penetra, de modo nenhum, no simples do «unificar» do «mundar». Os Quatro unidos são logo sufocados no seu ser, quando os representamos apenas como realidades desmembradas, que devem ser fundadas umas sobre as outras e explicadas umas a partir das outras.
57. A unidade do Quadrado é a Quadratura (Vierung). Mas a Quadratura de maneira nenhuma se põe (ou «se faz») a modo que envolva os Quatro e, como envolvente destes, a estes só se junte posteriormente. Tão-pouco se consuma a Quadratura, em que os Quatro, uma vez presentes, estejam só uns junto dos outros.
58. A Quadratura é, enquanto é o manifestante jogo de espelhos do «unifico» estar confiados uns aos outros. A quadratura é, enquanto «mundar» de mundo. O jogo de espelhos do mundo é a ronda do manifestar. Eis por que a ronda não abarca primeiramente os Quatro, como um aro. A ronda é o anel que gira, enquanto este joga como o espelhar. Manifestando, ele ilumina os Quatro no esplendor da sua «unificidade». Resplandecendo, o Anel, por toda a parte e abertamente, transpropria os Quatro para o enigma do ser. O ser conjunto do jogo de espelhos do mundo, assim girando, é a Circulatura. Na Circulatura do Anel que reflete e joga, os Quatro se infletem no seu ser único e, portanto, próprio de cada um. Assim flexíveis, docilmente «mundando», reúnem eles o mundo. (213)
59. Flexível, maleável, amoldável, dócil, leve, se dizem em nosso antigo alemão «ring» e «gering». O jogo de espelhos do mundo «mundante», como Circulatura do Anel, libera os Quatro unidos, para o próprio dócil, para o amoldável do seu ser. A partir do jogo de espelhos da Circulatura do amoldável, se origina o «coisar» da coisa.
60. A coisa retém o Quadrado. A coisa «coisa» mundo. Cada coisa retém o Quadrado em um durável-de-«unificável»-do-mundo.
61. Quando deixamos a coisa ser no seu «coisar», a partir do mundo «mundante», nós pensamos na coisa enquanto coisa. Pensando de tal maneira, nós nos deixamos «tocar» pelo «mundante» ser da coisa. Pensando assim, chamados somos pela coisa enquanto coisa. Somos — no rigoroso sentido da palavra — os providos de coisas (Bedingten). Deixamos para trás de nós a pretensão de todo o desprovido-de-coisas (alies Un-bedingten).
62. Se pensamos a coisa enquanto coisa, preservamos o ser da coisa, no domínio a partir do qual ela é. «Coisa» é aproximar de mundo. Aproximar é o ser da proximidade. Enquanto nós preservamos a coisa, habitamos a proximidade. O aproximar da proximidade é a única Dimensão do jogo de espelhos do mundo.
63. A ausência da proximidade em todo o remover de distâncias trouxe o sem-distância à dominação. Na ausência da proximidade, a coisa permanece aniquilada como coisa, no sentido já referido. Mas quando e como são as coisas como coisas? Assim interrogamos nós em meio do domínio do sem-distância.
64. Quando e como as coisas vêm a nós como coisas? Elas não vêm pelo artifício dos homens. Mas também não vêm elas sem a vigilância dos mortais. O primeiro passo para tal vigilância é o passo de retorno, do pensar que apenas representa, isto é, explica, no só pensar que lembra.
65. O passo de retomo de um pensar ao outro não é, porém, uma simples mudança de posição. Nunca poderá ser algo semelhante, porque todas as posições, juntamente com os modos de suas mudanças, permanecem jungidas no âmbito do pensar que representa. Em verdade, o passo de retorno deixa o âmbito do simples tomar posição. O passo de retorno toma sua estância em um corresponder que, no ser do mundo, por este «e-vocado», lhe responde do seu íntimo. Para o advento da coisa como coisa, nada pode uma simples mudança de posição, como também jamais se pode, simplesmente, converter em coisa tudo aquilo que hoje está, como objeto, no sem-distância. Também nunca as coisas vêm como coisas, mediante o tão-só esquivar-nos ante os objetos e o (214) recordar antigos de outrora, que estiveram, talvez, um dia, em vias de se tornarem coisas e mesmo de serem presentes como coisas.
66. O que se volve em coisa origina-se a partir da Circulatura, do jogo de espelhos do mundo. Só quando subitamente parece mundo, enquanto mundo «munda», resplandece o Anel, do qual a Circulatura de terra e céu, divinos e mortais, se libera para o dócil de sua «unificidade».
67. Conforme a este ser dócil, é dócil o próprio «coisar», e a coisa, de cada vez dócil, sem aparência, é dócil a seu ser. Dócil é a coisa: o cântaro e o banco, a pontezinha e o arado. Mas coisas são também, à sua maneira, a árvore e a lagoa, o arroio e a montanha. Coisas são, cada uma «coisando» a seu modo, a garça e o cervo, o cavalo e o touro. Coisas são, cada uma «coisando» à sua maneira, espelho e argola, livro e quadro, coroa e cruz.
68. Dóceis e tenras, todavia, são as coisas também em número, comparadas ao sem-número de objetos, por a parte de valor indiferente, comparadas ao desmesurado dos maciços do homem como ser vivente.
69. Antes de mais, são os homens, enquanto mortais, que conseguem o mundo como mundo, habitando-o. Só o que, dócil, nasce do mundo um dia se volve em coisa. (225)
Original
- in das Verweilen bringen[
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- die Versammlung des einfaltenden Fügens des Zusammengehörens der Vier[
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- was versammelt in das Ringende das schließende Binden das doch freigibt das Wahren des Offenen = Freien[
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- worin die Einfalt der Welt weilt[
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- sich löst ins Freie – das Gering: das Versammeln in das Sichbefreien – Sichfügen – in das Zusammengehören der Vier[
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- sich im Unscheinbaren zurückhalten – das Schlichte[
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