Salanskis (1997b:48-50) – O enunciado “a ciência não pensa” e a ontologia

O primeiro modo como a afirmação de Heidegger faz sentido no interior da palavra heideggeriana é o que poderíamos chamar o modo ontológico. É primordial em três sentidos sobrepostos: na medida em que corresponde à primeira época do pensamento de Heidegger, quer ao nível da cronologia estrita, na medida em que faz parte de uma espécie de camada fundadora de todo este pensamento, quer ao nível da ordem interna do desenvolvimento do enunciado heideggeriano, na medida em que é, finalmente, a forma escolhida com mais frequência para apresentar aquilo que o enunciado visa, no nível quase quantitativo da insistência, portanto. Em suma, e para evitar problemas de momento, o sentido do enunciado nesta primeira perspectiva é que a ciência não pensa porque não é ontologia fundamental. Vamos deter-nos apenas um pouco neste nível de significado da frase: o suficiente para compreender que não é nem suficiente nem autônomo. Nas suas várias nuances, este juízo sobre o que a ciência não é ou não faz é completamente controlado por uma certa ideia “positiva” do pensamento, por uma certa maneira de representar o seu “gesto” mais próprio. É por isso melhor, pensamos nós, olhar as coisas por esse outro lado, e é isso que faremos na segunda seção deste estudo. Mas consideremos primeiro este nível “ontológico”, para experimentarmos, o mais rapidamente possível, mas com autenticidade, os seus limites.

Encontramos em Heidegger uma certa “teoria” do lugar da ciência no caminho para a compreensão do ser, que a situa “depois” da pré-compreensão “utensilitária” (onde o ser do ente é já de certo modo “compreendido”, sem no entanto ser de modo algum tematizado, uma vez que o Dasein apenas se move a partir de um movimento que é essa pré-compreensão), mas “abaixo”, “antes” da “meditação temática do ser” propriamente dita. Um texto em que este ponto de vista é muito claramente exposto é o § 2 da Interpretação Fenomenológica da Crítica da Razão Pura de Kant [GA25:38-56]. Esta determinação da essência da ciência, que provoca a divisão entre ciência e filosofia, pode ser analisada de acordo com as duas teses seguintes:

– o discurso científico é local em relação ao discurso abrangente da filosofia; os “conceitos fundamentais” elaborados pelo discurso da ciência são elaborados apenas tendo em vista o ente e o “resultado” efetivo do lado do ente, enquanto o discurso filosófico pensa o significado de qualquer conceito “regional” em relação a um pensamento da regionalidade enquanto tal, que pressupõe a meditação do ser enquanto tal. 1. É neste sentido que Heidegger pode dizer que o discurso científico nunca saberá por si próprio o que pensa efetivamente nos seus conceitos, mesmo que neles se realize a elaboração explícita da “constituição do ser” de uma região do ente 2.

– o enunciado filosófico é metacientífico, tal como o enunciado científico é meta-utensilitário. Se a “viragem para a ciência” tematiza o que está implícito no ser-no-mundo utensilitário, a “viragem para a filosofia” tematiza a elaboração do ser do ente que está implícito no ser-no-mundo científico: tematiza-a como albergando um visada de Ser em sentido estrito (no sentido da diferença ontológica) 3.

Até aqui, o fato de a ciência não ser considerada como pensamento está, portanto, “simplesmente” ligado a uma determinação implícita do pensamento como pensamento do Ser, e ao pressuposto correlativo da impotência da ciência para delimitar essências em profundidade: qualquer delimitação de essência ao nível mais profundo tem de ser uma delimitação no horizonte aberto do Ser, e não no fechamento de uma regionalidade já tomada como assegurada, admitida na sua implicitude pré-filosófica.

No pensamento de Heidegger, esta impotência manifesta-se na incapacidade de assumir um questionamento reflexivo, sobre a essência da sua própria operação, da sua própria posição, da sua própria dimensão. Muitas das frases 4 de Heidegger expõem este aspecto fundamental e não problemático da demarcação ciência-filosofia para ele: a física não questiona verdadeiramente o que são o espaço, o tempo e o movimento, não pode dizer o que é a física, e assim por diante.

É claro que se poderia argumentar uma série de coisas contra esta estimativa relativamente coerente da essência não pensante da ciência e, em particular, submetê-la a uma crítica “interna” baseada nos próprios textos em que Heidegger a apresenta: parece que, ao distinguir ontologia fundamental e ontologia regional, Heidegger implica que a intenção mais própria da elaboração ontológica “regional” implementada pelas ciências é a “clarificação” no seio de um questionamento ontológico que abarca o Ser na sua totalidade, ou se apresenta a atitude científica como estando em continuidade com a atitude filosófica, não sendo esta última mais do que a assunção até ao fim da urgência de compreender, numa espécie de “amor necessitatis” que é o pano de fundo do Dasein.

Mais radicalmente, e ainda seguindo a linha lógica da crítica interna, podemos mostrar que a frase “Die Wissenschaft denkt nicht”, relida na perspectiva do segundo Heidegger, neste caso o seu tema da “superação da metafísica”, apenas visa a ciência enquanto membro do corpo da metafísica, que inclui toda a tradição filosófica: esta última observação, perfeitamente plausível face aos textos, parece dissolver de uma só vez e sem descanso o problema que estamos a colocar.

Exceto que Heidegger nunca deitou fora o aforismo “Die Metaphysik denkt nicht”, nem “Die Philosophie denkt nicht”. Para ele, portanto, há certamente um tom, um acento, próprio da Ciência, que significa que representa a metafísica na sua má luz, a parte com a qual procura divorciar-se. É esta mesma “face” profunda da Ciência, que não se reflete nas proposições teóricas até agora analisadas, que justifica a atribuição do seu discurso à regionalidade e à não-reflexividade. Os “critérios” explicitados na demarcação heideggeriana da Ciência no todo “ontológico”, mesmo numa altura em que o segundo Heidegger parece abandonar a demarcação em profundidade, são apenas o traço de uma outra coisa, que é de outra ordem, e que tentaremos agora trazer à luz. Como dissemos, vamos debruçar-nos sobre o discurso positivo de Heidegger, sobre o seu modo de exprimir o pensamento tal como ele é efetivamente pensado, de exprimir o “bom” pensamento.

Ora, o traço que caracteriza o bom pensamento enquanto tal, na obra de Heidegger, de acordo com o sentimento que adquirimos ao viajar de texto em texto, é a sua essência hermenêutica.

  1. Os métodos científicos foram desenvolvidos precisamente com o objetivo de examinar o ente; eles não têm qualquer missão de explorar o ser desse ser. Porque, para o fazer, é necessário que o ser seja um ser. Porque, para o fazer, é necessário objetivação não do ente, isto é, a sua natureza como um todo, mas a constituição do ser da natureza ou do ente…”. (Heidegger 1928, GA25:53)[]
  2. “Torna-se subitamente evidente a falta de um método seguro para questionar o que se pretende nos conceitos fundamentais enquanto tais, e do fundamento para justificar, isto é, para fundar realmente os próprios conceitos fundamentais…”. Heidegger 1928, GA25:52[]
  3. “Assim, a refundação de uma ciência não lhe é anexada a partir do exterior, é antes a elaboração da compreensão do ser pré-ontológico já nela necessariamente implicada numa exploração e numa ciência do ser, em ontologia.” (Heidegger 1928, GA25:53)[]
  4. Citaremos duas destas frases:

    “Um homem nunca descobrirá no caminho da história o que é a história, tal como um matemático no caminho da matemática, isto é, através da sua ciência, isto é, finalmente em fórmulas matemáticas, nunca poderá mostrar o que é a matemática.” (Heidegger 1954, GA8:98), e

    “… o físico define de fato o que entende por movimento, fixa o sentido do lugar e do tempo, e fá-lo invocando parcialmente conceitos vulgares. Mas não toma a essência do movimento como tal como objeto da sua investigação; estuda apenas movimentos específicos. O físico não investiga a essência do tempo, ele usa o tempo como um meio de medir movimentos”. (Heidegger 1928, GA25:52).[]