Como acontecimento temporal e verbal, Dasein não corresponde a um acontecimento no tempo, mas à temporalidade do acontecer. Este é o sentido da temporalidade para Heidegger. Temporalidade não é um termo mais elaborado para insistir na sucessão das ekstases do tempo – passado, presente e futuro. Temporalidade, diz Heidegger, temporaliza-se como “porvir atualizante do vigor do ter-sido” 1. Distintamente dos acontecimentos no tempo, a temporalidade do acontecer fala em um tempo que é porvindouro, mas não [20] futuro, que é vigência mas não passado, que se faz presença para uma atualidade. Ao afirmar que “o porvir é o fenômeno primário da temporalidade originária e própria” 2, Heidegger não fala do futuro de um tempo que virá depois, mas de um tempo que está advindo, expondo-se na concretude do real como temporalidade de uma realização inteira. As dificuldades linguísticas que caracterizam a segunda parte de Ser e tempo devem-se a que o tempo não apenas se verbaliza, mas o tempo se verbaliza em se dessubstantivando. É preciso mostrar que o tempo se conjuga enquanto modo, enquanto um como e não enquanto um quando ou um quê. Grande parte das dificuldades linguísticas de Ser e tempo surgem da tentativa feita por Heidegger de exprimir a característica do sistema verbal grego, presente de forma mais intensa nas línguas eslavas e mesmo no português, que os gramáticos costumam designar de “aspecto”, de “modo ou temporalidade interna da ação”. Heidegger fala sobre isso de maneira sucinta no § 68 de Ser e tempo e também na Introdução à metafísica 3, ressaltando com clareza a necessidade de se distinguir o tempo cronológico da temporalidade intrínseca ou interna do verbo. Fundamental para se entender o que Heidegger chama de temporalidade é a distinção de base entre o sentido cronológico do tempo e a temporalidade interna da ação, a temporalidade dos aspectos. O caráter aspectual da verbalidade do tempo apresenta-se, como explica Schwyzer, um dos grandes teóricos da gramática grega, em formas que são indiferentes ao tempo cronológico 4. Exemplos disso são o uso do presente para exprimir o futuro, quando dizemos “eu venho”, ou então quando dizemos “isso seria possível” para dizer “isso é possível”, ou ainda o aoristo e o perfeito no grego, a chamada forma contínua no inglês, be reading, etc. Nessas várias formas, o que se exprime não é quando a ação se realiza e sim a dinâmica, o modo, o ritmo próprios da ação. A temporalidade do acontecer fala num presente muito singular, que nada tem a ver com o “agora” e sua atualidade. Ao usar o gerúndio, referindo-nos ao “andando”, próprio ao andar, ao sendo, do ser, falamos num termo que independe da cronologia dos agora. [21] O que assim se descreve não é o “tempo”, mas o acontecer do verbo, o como verbal, o ritmo do verbo.
O aspecto apresenta a temporalidade interna que constitui o verbo como verbo e que pertence à estrutura própria do acontecer. O aspecto expõe a “tensão de duração”, o durante, constitutivo da ação verbal. Numa linguagem mais próxima de Heidegger, o aspecto exprime a “tensão do durante”, a tensão do entre, a tensão do perdurar e de-morar-se. Se de fato ocorre uma “virada” no pensamento de Heidegger, essa virada deve ser entendida como uma intensificação e radicalização do sentido aspectual da temporalidade de ser. O chamado Heidegger tardio vai usar de maneira intensa os verbos gewähren, währen, de onde se deriva während, isto é, durante, enquanto, e também Wahrnis, wahr, verdadeiro. Os verbos währen, gewähren, “propiciar”, “garantir’, dizem fundamentalmente per-durar, de-morar-se, tendo o sentido primordial de ser o enquanto, ser o entre, a vida do durante, a vida do entre. “Só o enquanto (durante) dá o quanto. A tensão do enquanto que se resguarda desde o primeiro é propiciador” 5, ouvimos Heidegger dizer em A questão da técnica. O andando do andar, o dizendo do dizer, o pensando do pensar, o traduzindo do traduzir, o superando do superar, o sendo do ser, oferecem o mundo como a temporalidade e temporalização do acontecer. É nesse sentido eminentemente aspectual que se deve entender o privilégio do porvir na temporalidade originária e própria. E é nesse sentido eminentemente aspectual que se pode também compreender não só a medida fenomenológica de que a possibilidade é mais elevada que a realidade, mas sobretudo o sentido fenomenológico existencial do possível. A nova gramática que Heidegger tentou criar em Ser e tempo, para corresponder ao primado fenomenológico da possibilidade frente à realidade, significou uma tentativa de “traduzir a questão sobre o sentido” do ser para a terminologia do enquanto, da duração e do entre-ser, liberando-a assim da gramática dos por quês, dos quê e para quê. Com base nessa tradução, Heidegger faz aparecer não apenas que Dasein é temporalidade, mas que temporalidade é ser. Tempo é em sendo, ou seja, é como tensão do durante, do entre, do perdurar. Traduzir a palavra-fonte e indicadora Dasein em Ser e tempo [22] significa assim fazer aparecer a dimensão desse durante, desse ente ontológico. Essa é a principal motivação filosófica que guiou a tradução brasileira de Ser e tempo e, em particular, do termo Dasein.
- Ser e tempo, [§ 65->ET65].[↩]
- Ibidem.[↩]
- Cf. Ser e tempo, [§ 68 d->ET68]) A temporalidade da fala e Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, p. 91-93.[↩]
- E. Schwyzer, Griechische Grammatik, München, C. H. Beck, 1953, p. 248.[↩]
- Cf. “A questão da técnica”, in: Ensaios e conferências, Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, Edusf, 2002.[↩]